domingo, 27 de dezembro de 2015

Assim se prepara uma nova Guerra Mundial

Soldados das Forças Especiais norte-americanas desembarcam para intervir na Síria. “A situação geopolítica é hoje mais explosiva que em qualquer outro momento anterior, desde as vésperas da II Guerra Mundial”


França, Grã-Bretanha e Alemanha, além dos EUA, ampliam intervenção no Oriente Médio. Seu alvo principal não é o ISIS, mas a Rússia. Oposição popular ao conflito é solenemente ignorada

Por Joseph Kishore, do World Socialist Website | Tradução Vila Vudu

Os eventos da semana passada passarão à história como divisor de águas na constituição do imperialismo no século XXI. No período de poucos dias, EUA, Grã-Bretanha e Alemanha ampliaram o respectivo envolvimento militar na Síria, depois que a França intensificou sua campanha de bombardeio no mês passado.

O pretexto para essas operações são os ataques terroristas de 13 de novembro em Paris, seguido agora pelo horrendo ataque a tiros em San Bernardino, Califórnia, na 4ª-feira passada. As razões declaradas publicamente, contudo, pouco têm a ver com discussões estratégicas que estão acontecendo nos escalões superiores das forças militares e das agências de inteligência.

Por trágica que seja a matança de 130 pessoas em Paris e 14 em San Bernardino, não explicam a repentina convulsiva escalada militar das principais potências imperialistas, contra o Oriente Médio. Não é difícil ver semelhanças/diferenças em relação a 1915, quando os EUA recusaram-se a entrar na 1ª Guerra Mundial, mesmo depois do afundamento do RMS Lusitania, com perda de 1.198 vidas. Naquele momento, a classe capitalista norte-americana ainda estava dividida sobre se seria aconselhável intervir na então chamada “Grande Guerra” (que só passou a ser chamada “primeira guerra mundial”, depois que houve a segunda).

A força básica por trás da guerra na Síria é a mesma que motivou a formatação imperialista de todo o Oriente Médio: os interesses do capital financeiro internacional. As grandes potências imperialistas sabem que, se quiserem pôr a mão no butim, têm também de fazer sua parte da matança.

Esse movimento de guerra no Oriente Médio é altamente impopular, o que explica o frenesi para utilizar os ataques recentes na Europa, além da atmosfera de medo que a mídia-empresa cria e infla, para ativar as ações o mais rapidamente possível. Considerem-se os eventos da semana passada:


Na 3ª-feira, o governo Obama anunciou que estaria enviando novo contingente de Forças de Operações Especiais, oficialmente contra o Estado Islâmico no Iraque e Levante [ing. ISIL] e/ou Síria [ing. ISIS]. Em conferência de imprensa no mesmo dia, Obama repetiu que qualquer acordo na Síria terá de incluir a derrubada do presidente Assad da Síria, aliado chave da Rússia.

Na 4ª-feira, o parlamento britânico aprovou apoio a ação militar na Síria, depois de o líder do Partido Labour, Jeremy Corbyn, desimpediu qualquer caminho rumo à guerra, ao aceitar “livre votação” sobre o tema, para os deputados de seu partido. Aviões britânicos decolaram imediatamente para bombardear alguns alvos na Síria já na 4ª-feira à noite, com o primeiro-ministro Cameron declarando “simpatizante de terroristas” quem se opusesse à guerra.

Na 6ª-feira, o parlamento alemão correu a aprovar moção para que a Alemanha também se juntasse à guerra contra a Síria, praticamente sem nem discutir a questão. A aprovação parlamentar ao envolvimento da Alemanha na guerra veio depois da decisão do governo Merkel, no início da semana, de enviar 1.200 soldados, seis jatos Tornado e um navio de guerra para a região.

E então, durante o fim de semana, a mídia-empresa nos EUA e todos os políticos do establishment dedicaram-se a explorar o tiroteio em San Bernardino, Califórnia, para pressionar a favor da expansão da guerra no Oriente Médio. Os candidatos Republicanos à presidência dispararam ‘declarações’ beligerantes insistindo em que os EUA estariam diante da “próxima guerra mundial” (governado de New Jersey, Chris Christie); que “o país precisa de presidente para tempos de guerra” (senador Ted Cruz, do Texas), e que “eles declararam guerra contra nós e nós temos de declarar guerra contra eles” (ex-governador da Flórida, Jeb Bush).

Em discurso no domingo à noite, Obama defendeu, contra os críticos Republicanos, a própria política na Síria; repetiu que se opõe ao envio massivo de soldados de solo para a área de Iraque e Síria, e que é a favor de acelerar os ataques aéreos; o financiamento para grupos dentro da Síria; e o uso de tropas de países vizinhos. Elogiou os movimentos de França, Alemanha e Reino Unido, e declarou: “Desde os ataques em Paris [dia 13/11], nossos mais próximos aliados (…) aceleraram a contribuição deles à nossa campanha militar, que nos ajudará a acelerar nossos esforços para destruir o ISIS.”

Por mais que pressionem e pressionem a favor de mais guerra, nem Obama nem qualquer outro setor do establishment político nos EUA diz sequer uma palavra sobre as raízes reais do ISIS, que já serviu de pretexto para a “guerra ao terror” a partir do qual começou, e nunca mais se alterou, a política externa dos EUA para 15 anos.

No discurso de domingo, Obama fez uma referência oblíqua ao crescimento do ISIS “em pleno caos da guerra do Iraque e depois na Síria” – como se nada tivesse a ver com a própria política dos EUA. A verdade é que EUA e aliados é que ocuparam (ilegalmente) e devastaram (consequentemente) o Iraque, e na sequência criaram e ou inflaram grupos de islamistas fundamentalistas na Síria, a partir dos quais o ISIS emergiu como cabeça de ponte da guerra contra o presidente Bashar al-Assad da Síria.

Os terroristas do ISIS que executaram os atentados em Paris puderam viajar livremente, entrando e saindo da Síria, porque milhares de jovens como eles viajavam da Europa para a Síria, livremente, e com o apoio de autoridades, para que se unissem ao golpe e à guerra contra Assad.

Quanto ao ataque em San Bernardino, funcionários citaram a viagem dos dois atiradores à Arábia Saudita e seus contatos com indivíduos da Frente Al-Nusra, para poderem referir-se ao tiroteio como ataque terrorista. A Arábia Saudita, centro de financiamento e apoio para os grupos fundamentalistas islamistas em todo o Oriente Médio, é aliada chave dos EUA na região, e a Frente Al-Nusra, afiliada da Al-Qaeda, é aliada de factodos EUA na Síria.

Em vez de resposta contra os ataques recentes, as ações das potências imperialistas são a realização de planos já existentes e de ambições já conhecidas há muito tempo.

Na Grã-Bretanha, votação dessa semana reverteu a decisão de 2013, da Câmara de Comuns, segundo a qual o país não participaria de guerra planejada e liderada pelos EUA contra a presidência da Síria. A elite governante alemã não para de ‘exigir’ que o país participe mais ativamente do avanço militar na Síria, para afirmar a própria posição como potência dominante na Europa.

Nos EUA, antes dos ataques em San Bernardino, ouviam-se vozes insistentes do establishment político e da mídia-empresa a favor do envio de tropas de solo e da imposição de uma zona aérea de exclusão sobre a Síria.

Com os EUA à frente, as potências imperialistas já se engajaram numa guerra infinita, centrada no Oriente Médio e Ásia Central, já há um quarto de século. Mais de um milhão de pessoas já foram mortas e outros muitos milhões foram convertidos em refugiados. Depois das guerras no Afeganistão e no Iraque durante o governo Bush, Obama supervisionou a guerra na Líbia e as campanhas conduzidas pela CIA para mudança de regime na Ucrânia e na Síria. As consequências desastrosas de cada operação prepararam o terreno para que o governo Obama expandisse e intensificasse a guerra.

O que se vê hoje é uma reformatação para recolonização do mundo. Todas as velhas potências levantam-se, exigindo a parte de cada uma no neobutim. Embora hoje centrado no Oriente Médio rico em petróleo, o conflito na Síria já se vai convertendo em ‘guerra por procuração’ contra a Rússia. Do outro lado da massa de terra eurasiana, os EUA dedicam-se a ações cada vez mais provocativas contra a China no Mar do Sul da China.

A situação geopolítica é hoje mais explosiva que em qualquer outro momento anterior, desde as vésperas da 2ª Guerra Mundial. Acossada por crise econômica e social para a qual a classe das elites governantes não tem resposta progressista a oferecer, aquela classe das sempre mesmas elites cada vez mais recorre à guerra e ao saque, como a única resposta que conhecem para quaisquer das suas dificuldades.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Gandhi era um racista que obrigava meninas a dormir na cama com ele

Seja o hipócrita misógino que você quer ver no mundo. Gandhi em 1942. Foto via Getty Images.

Em agosto de 2013, um pouco antes do 65º Dia da Independência da Índia, a Outlook India, uma das revistas de maior circulação do país, publicou os resultados de uma pesquisa conduzida entre seus leitores. Quem, depois do "Mahatma", era o maior indiano que já viveu? O Mahatma no centro dessa pergunta puxa-saco era, claro, Mohandas Karamchand Gandhi.

Não é surpresa ver a Outlook colocando sua suposição como uma verdade. Gandhi se tornou o barômetro óbvio da grandeza indiana, se não da grandeza em geral. Afinal de contas, quem não gosta do Gandhi? Ele ficou conhecido como esse idoso frágil e nobre, com uma alma pura, moral e piedosa. Ele foi o cara que introduziu a gramática de resistência não violenta na Índia, um país que ele ajudou a escapar do comando imperial britânico. Ele fez greves de fome valentes até que um nacionalista hindu o matou, efetivamente o tornando um mártir.

Meu avô por parte de mãe foi para a cadeia com Gandhi em 1933; então, cresci sabendo que o mito estava remendado com meias-verdades. Meu avô levou as lições que aprendeu na cadeia para começar um ashram nas entranhas da Bengala Ocidental. Como consequência, me criaram com uma compreensão íntima de Gandhi que oscilava entre laudatória e crítica. Minha família o adorava, apesar de nunca acreditar na ideia de que ele orquestrou sozinho o movimento de independência da Índia. O fanatismo de Gandhi nunca era mencionado em nossa casa. Nas décadas seguintes ao assassinato dele, em 1948, a imagem de Gandhi foi construída cuidadosamente, limpa de todos os detalhes sujos, e assim fica fácil esquecer sua retórica racista, sua alergia veemente à sexualidade feminina e sua pouca vontade em ajudar a libertar a casta dalit, ou os "intocáveis".

Gandhi morou na África do Sul por mais de duas décadas, de 1893 a 1914, trabalhando como advogado e lutando pelos direitos dos indianos – e só dos indianos. Como ele expressava abertamente, os sul-africanos negros praticamente não eram humanos para ele. Gandhi se referia a eles usando a expressão depreciativa kaffir. Ele lamentava que os indianos fossem considerados "um pouco melhores que os selvagens ou os nativos da África". Em 1903, ele declarou que a "raça branca na África do Sul deveria ser a raça predominante". Quando foi mandado para a cadeia em 1908, ele detestou o fato de que os indianos eram colocados com os prisioneiros negros, não os brancos. Alguns ativistas sul-africanos têm colocado essa parte da história de Gandhi sob os holofotes novamente, assim como um livro publicado em setembro passado por dois acadêmicos sul-africanos, embora isso sequer tenha gerado arranhões na consciência cultural ocidental além dos círculos concêntricos do Tumblr.

Gandhi na África do Sul. Foto via Wikimedia Commons

Por volta da mesma época, Gandhi começou a cultivar a misoginia que carregaria para o resto da vida. Durante seus anos na África do Sul, uma vez ele respondeu ao abuso sexual de duas de suas seguidoras as obrigando a cortar os cabelos para ter certeza de que elas não atrairiam mais atenção sexual. (Michael Connellan, escrevendo para oGuardian, explicou cuidadosamente que Gandhi achava que as mulheres entregavam sua humanidade no minuto em que eram estupradas.) Ele acreditava que os homens não podiam controlar seus instintos predatórios e que as mulheres eram responsáveis – e estavam completamente à mercê – desses impulsos. Suas visões sobre a sexualidade feminina eram similarmente deploráveis; segundo Rita Banerji, autora de Sex and Power, Gandhi achava que menstruação era "a manifestação da distorção da alma da mulher por sua sexualidade". Ele também acreditava que contraceptivos eram um sinal de devassidão.

Ele confrontou essa incapacidade de controlar a libido masculina quando decidiu ser celibatário (sem discutir isso com a esposa) na Índia, usando mulheres – inclusive meninas menores de idade, como sua sobrinha-neta – para testar sua paciência sexual. Ele dormia nu com elas na cama sem as tocar, se certificando de não ficar excitado – as mulheres eram adereços de seu celibato.

"É fácil esquecer a retórica racista de Gandhi, sua alergia veemente à sexualidade feminina e sua pouca vontade em ajudar a libertar a casta dalit, ou os 'intocáveis'."

Kasturba, a esposa de Gandhi, era seu maior saco de pancadas. "Simplesmente não consigo olhar para o rosto de Ba", ele disse uma vez sobre ela depois de Kasturba ter cuidado dele quando Gandhi ficou doente. "A expressão geralmente é como a da cara de uma vaca mansa, e ela me dá a mesma sensação que as vacas geralmente dão: de que de seu jeito idiota, ela está dizendo alguma coisa." Alguém poderia dar a desculpa de que as vacas são sagradas no hinduísmo – ou seja, chamar a esposa de vaca seria um elogio velado. Ou, talvez, ele só quisesse acabar com esse aborrecimento marital. Quando Kasturba teve pneumonia, Gandhi não deixou que ela recebesse penicilina, mesmo quando os médicos disseram que isso a poderia curar: ele insistiu que o novo medicamento era uma substância estranha que o corpo dela rejeitaria. Ela morreu da doença em 1944. Alguns anos depois, talvez percebendo seu erro, ele voluntariamente tomou quinino para tratar a própria malária. Ele sobreviveu.

Há o impulso ocidental de ver Gandhi como o discreto aniquilador das castas, uma caracterização que é categoricamente falsa. Ele via a emancipação dos dalits como um objetivo inalcançável e achava que eles não mereciam um eleitorado separado. Ele insistia que os dalits continuassem complacentes, esperando por uma virada que a história nunca proporcionou. Os dalits continuam sofrendo com os preconceitos emaranhados ao tecido cultural da Índia.

A história, como Arundhati Roy escreveu no ano passado no ensaio seminal "The Doctor and the Saint", tem sido incrivelmente gentil com Gandhi. Isso deu espaço para apresentar seus preconceitos como meras imperfeições, pequenas marcas em mãos limpas. Apologistas vão insistir que Gandhi era apenas humano. Eles vão tentar metamorfosear os preconceitos dele em algo positivo, provas de que ele era como nós. Outro tipo de deserção histórica: o argumento de que iluminar os preconceitos de Gandhi demonstra como os americanos nutrem um fascínio doentio pelos problemas da Índia, como se os escritores ocidentais estivessem obcecados em concatenar problemas sociais para o subcontinente do nada.

Essa é a ginástica mental que fazemos quando estamos ansiosos em criar uma mitologia. As características péssimas que Gandhi exibia persistem na sociedade indiana hoje – ataques virulentos aos negros, um desrespeito blasé para com o corpo das mulheres, uma miopia cuidadosa diante do tratamento aos dalits. E não é coincidência que essas mesmas características da retórica da Gandhi tenham sido riscadas de seu legado.

Mas como você responde a uma alcunha ridícula como "o maior indiano"? Esse é um peso colossal para colocar sobre qualquer um: dizer que ele é a pessoa a se saudar num país com bilhões de pessoas. Criar um falso ídolo envolve muito esquecimento. É fácil babar sobre um homem que nunca existiu de verdade.


Este artigo apareceu originalmente no Broadly

Tradução: Marina Schnoor.

Fonte: Vice Brasil

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

“Decidi vingar-me através da educação” – entrevista com o educador José Pacheco

“Decidi vingar-me através da educação” – entrevista com o educador José Pacheco


Diante da caótica situação do ensino público brasileiro, o educador José Pacheco mostra como transformar uma escola que já foi decadente em um exemplo que a tornou a melhor escola de Portugal.

Até o momento do fechamento desse texto, o total de escolas estaduais ocupadas por alunos chegava a 74. Os adolescentes decidiram ocupar as escolas diante do que o governo paulista vem chamando de reestruturação escolar, o que, de acordo com dados da própria Secretaria de Educação, serão 94 as escolas afetadas nessa transição, entre fechamento total, transferência para o poder municipal, escolas de apenas um nível educacional e escolas que, talvez, sejam transformadas em Fatecs ou Etecs ou, quem sabe, numa nova e reluzente Fundação Casa, já que vem se tornando regra encarcerar nossos jovens, principalmente nas periferias das grandes cidades.

A pasta da educação do governo Alckmin é regida, não por um pedagogo ou educador, mas sim por um economista que analisa toda a cadeia de ensino numa planilha de Excel. Herman Voorwald alegou, em entrevista recente, que 10% dos alunos de escolas com ciclo único tem rendimento superior aos de outras unidades e ainda complementou com o dado de que a escolas públicas vem perdendo alunos gradualmente. Tudo são dados numa planilha que visa o enxugamento de custos, não a melhoria da qualidade do ensino. Mas o que leva a essa debandada de jovens? O sucateamento do ensino público, com professores mal pagos, violência nas escolas e uma metodologia de ensino arcaica colaboram e muito para isso, basta ver os último índices do Ideb em que, praticamente, 90% dos adolescentes chegam ao ensino médio sem saber o básico de matemática ou português. Certamente Voorwald não tem a resposta para isso.
Faixas em frente ao E.E. Prof. Heloísa de Assumpção, uma das 74 escolas ocupadas por alunos até o momento. Foto: Camila Eiroa

Transformando “turmas do lixo” em exemplos para a sociedade

Foi em 1976 que o educador José Pacheco decidiu transformar uma das pioras escolas públicas de Portugal, no que é hoje um modelo educacional na formação de jovens. Nasceu então a Escola da Ponte. Pacheco chegou na instituição num momento crítico, até muito parecido com o que passam as escolas públicas brasileiras. “Essas turmas eram maioritariamente constituídas por jovens de 14, 15 anos, que não sabiam ler nem escrever, e que batiam nos professores”, enfatizou o educador. A partir dai percebeu que o erro estava na metodologia de ensino, já muito enraizada na pedagogia da avaliação seletiva, em que apenas os poucos alunos que se destacam é que vão ter seu lugar ao sol na sociedade, o restante seria, bem, o restante, a sobra da parcela da sociedade que vive a margem numa opressão, não por obra de uma mão-de-ferro, mas sim por uma fragilidade de formação e falta de conhecimento, o que os deixam presos num círculo vicioso de exploração por aqueles que estão no topo econômico da sociedade.

José Pacheco nasceu numa região extremamente pobre e numa época em que Portugal vivia sobre a égide de um governo ditatorial. Foi esse um dos motivos pelo qual decidiu ser educador. Assim como Paulo Freire, um de seus maiores exemplos como pensador pedagógico, sentiu que apenas a educação de qualidade, mesclada com participação social, poderia transformar a vida das pessoas e, também, a sociedade num organismo mais justo em que poderemos, quem sabe um dia, diminuir o espaço abissal entre a parcela que vive para sustentar os bens e prazeres de uma minoria que paira sobre o mundo como abutres e que enxerga nessa grande maioria, apenas mão-de-obra para o progresso capitalista.

A Escola da Ponte pode servir de exemplo para esses jovens que hoje estão ocupando as escolas paulistas. Por que não todas as escolas públicas do Brasil? Hoje são eles que estão nos dando aula de cidadania que, além de ocupar o espaço público, estão fazendo assembleias diárias para decidir qual o rumo que eles querem. E não é assim? O próprio aluno, junto de pais e professores, decidir o que ele quer com relação ao ensino, ao invés de aceitar goela abaixo um sistema educacional falido? É assim que funciona na Escola da Ponte e é assim que deveria funcionar.

Leia abaixo a íntegra da entrevista com o educador José Pacheco.

Guerrilha GRR – Como funciona a metodologia de aprendizado da Escola da Ponte e o porquê de abolir formas tradicionais de avaliação dos alunos?

José Pacheco – Em 1976, a Ponte era uma escola como qualquer outra, escola pública degradada, que albergava as chamadas “turmas do lixo”, produtos de uma avaliação seletiva, da prática de um sutil darwinismo social. Essas turmas eram maioritariamente constituídas por jovens de 14, 15 anos, que não sabiam ler nem escrever, e que batiam nos professores. Ali, encontrei duas pessoas, que faziam as mesmas perguntas que eu fazia: “porque eu dou aula tão bem dada e há alunos que não aprendem?”. Substituímos as aulas por uma organização do trabalho escolar que, em poucos anos, fez da Ponte a melhor escola do meu país. E, para novos modos de aprender, concebemos novos modos de avaliar. Prescindimos do recurso a provas (que pouco, ou mesmo nada provam) e passamos a praticar uma avaliação formativa, contínua e sistemática.

GRR – Essa forma tradicional de avaliação está enraizada no Brasil, não apenas nas escolas, mas em toda a sociedade em que o cidadão é sempre visto como uma estatística que, quando chega no mercado de trabalho continua sendo avaliado pelo o que ele produz, isso se reflete também na publicidade das universidades brasileiras com os slogans do tipo “seja o melhor no mercado de trabalho, entre na universidade tal”. Como o senhor avalia essa sociedade que prega o ser humano praticamente como um autômato?

José Pacheco – As escolas carecem de espaços de convivência reflexiva. Precisamos compreender que pessoas são aquelas com quem partilhamos os dias, quais são as suas necessidades (educativas e outras), cuidar da pessoa do professor, para que se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores como pessoas. Por isso, se a um velho for permitido dar conselhos, aconselharia coragem e prudência. Coragem para substituir um obsoleto modelo de ensino por práticas coerentes. Prudência, para usar a ciência numa práxis transformadora e não usar alunos como se fossem cobaias de laboratório.

GRR – O artigo 12° do regulamento da Escola da Ponte se refere as assembleias semanais em que há a participação de todos os alunos em, juntamente com os orientadores, decide-se sobre diversos assuntos que visem a melhoria da escola. Como esse tipo de participação direta pode influenciar na vida social futura desses jovens?

José Pacheco – Decorridos quarenta anos sobre o início dessa prática, são evidentes as suas consequências. Histórias de vida de ex-alunos demonstram que são seres humanos plenamente integrados socialmente, com elevado senso critico, participativos, solidários, a tradução prática da matriz axiológica do projeto. Enfim! São cidadãos avisados, que não elegem políticos corruptos.

GRR – As escolas brasileiras mantêm o padrão de apostilas, do professor que apenas transmite o conteúdo que o aluno é obrigado a decorar, mesmo assim a defasagem de ensino nas matérias básicas como Português e Matemática é muito alto, fazendo com que o aluno chegue no ensino médio sem saber o básico dessas matérias. O que está errado nesse conceito e como o Brasil pode alterar esses parâmetros?

José Pacheco – De cada cem alunos de início do Fundamental apenas onze chegam à universidade. E, mesmo na universidade, o analfabetismo funcional prospera. Mas não é inevitável que os poucos jovens, que ingressam no ensino médio a ele cheguem “mal preparados”. Nem que metade dos que ingressam na universidade não a completem deverá ser considerada uma fatalidade. Para inverter essa trágica situação basta que a pedagogia prevaleça nas escolas onde hoje reina a burocracia. A situação poderá ser alterada se os critérios de natureza administrativa não estiverem submetidos a ocultos interesses político-partidários. Quando políticos, para os quais a pedagogia é ciência oculta, deixarem de dar opinião, ou decidir em algo que não entendem.

GRR – A formação do professor também não entra nesse padrão? Mesmo que eles aprendam teorias libertárias de educação em sua formação, acabam sendo arrastados para essa metodologia de ensino quando chegam às escolas públicas. Como mudar isso? Apenas com políticas públicas ou cabe também a sindicatos e professores propor uma mudança nas metodologias de ensino?

José Pacheco – A formação dos professores é o nó górdio da questão. E a universidade é o problema da educação, quando recorre a práticas formativas anacrônicas. Porém, algo está a mudar em faculdades, nas quais excelentes profissionais já vão percorrendo novos caminhos de transformação, arrostando com a incompreensão de gestores e reitores. Acredito no trabalho de alguns formadores de profissionais do desenvolvimento humano, que, corajosa e prudentemente, preparam novas gerações de professores capazes de operar a mudança de que a educação do Brasil carece.

GRR – Nos anos 90 o governo de São Paulo instituiu a progressão continuada, o que seria um pouco parecido com a Escola da Ponte, onde o aluno progrediria de ano sem ter uma avaliação tradicional, o que gerou um desconforto na sociedade. No artigo “Carta para Darcy” o senhor afirmou que a progressão continuada que foi aplicada aqui é uma mentira, pode dizer o porquê. Como seria de fato a progressão continuada?

José Pacheco – Para se assegurar uma efetiva progressão continuada, seria indispensável que as escolas reconfigurassem as suas práticas. Isso não aconteceu. Em teoria, as escolas seriam organizadas em ciclos, mas continuaram a trabalhar na lógica da série/ano e a praticar a “aprovação automática”, o que considero um crime. As escolas não enveredaram por uma avaliação formativa, contínua e sistemática. Continuaram a aplicar provas, que nada provam. Então, como se poderia afirmar, como o fizeram os candidatos à prefeitura de São Paulo, que iriam acabar com a progressão continuada? Como se poderá acabar com algo que nunca começou?

GRR – Outra medida que o governo estadual paulista vem adotando, é a de reorganizar as escolas por períodos letivos, sendo que algumas escolas passarão a ensinar apenas o fundamental, outras o básico e, por fim, o ensino médio, segundo o secretário de educação, essa medida é importante para que haja uma melhoria no aprendizado, focando em faixas etárias. Como o senhor avalia essa proposta?

José Pacheco – Poderia responder que apenas comento medidas de política educativa que sejam sérias, isto é, baseadas na ciência e na lei. A medida tomada pela Secretaria de Educação não é uma coisa, nem outra. É uma aberração.

GRR – Por que seria uma aberração?

José Pacheco – Por muitas razões, entre as quais a falta de fundamentação científica. E até mesmo de fundamento legal. Infelizmente, não é raro que titulares de cargos públicos venham a terreiro para anunciar “reformas” e outras inutilidades, através de um discurso tão arrogante como ignorante. É lamentável. E mais não digo, porque, como já afirmei, é inútil comentar aberrações.

GRR – O senhor sempre cita Darcy Ribeiro e Paulo Freire, que têm como contraponto a educação como forma libertária de uma sociedade, podemos colocar também nesse nicho o geógrafo e anarquista francês Elisèe Reclús, que via que somente atingiríamos o verdadeiros socialismo através da igualdade educacional e que cada pessoa pode e deve ser tornar um transmissor de conhecimento para os menos afortunados. Você também enxerga a educação dessa maneira, como forma de moldar, libertar de opressões e igualar homens e mulheres? Como seria essa sociedade no seu ponto de vista?

José Pacheco – A libertação de oprimidos e opressores poderá ser tornada realidade, se Paulo Freire for para o chão das escolas e não permanecer sequestrado nos arquivos de teses da universidade…

GRR – Por falar em Paulo Freire, uma parcela da sociedade brasileira e até mesmo alguns políticos dizem que suas teorias são usadas como doutrinamento marxista. O que senhor pensa sobre isso?

José Pacheco – Penso que quem assim pensa, ou age, não leu Paulo Freire. Ou, tendo-o lido, não o entendeu.


sábado, 5 de dezembro de 2015

Opressivo e cinzento? Não, crescer no comunismo foi a época mais feliz de minha vida

A autora do artigo, Zsuzsanna Clark, como estudante de Ensino Primário na Hungria socialista

Hungria - Diário Liberdade - [Zsuzsanna Clark, tradução do Diário Liberdade] 


Quando as pessoas me perguntam como era crescer atrás da Cortina de Ferro, na Hungria nos anos setenta e oitenta, a maioria espera escutar contos sobre polícia secreta, as filas nas padarias e outras declarações desagradáveis sobre a vida em um Estado de partido único.

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Eles ficam sempre desapontados quando explico que a realidade era muito diferente, e a Hungria comunista, longe de ser o inferno na terra, era, na verdade, um ótimo local para viver. Os comunistas proporcionavam a todos com trabalho garantido, boa educação e atendimento médico gratuito.

Mas talvez o melhor de tudo fosse a sensação primordial da camaradagem, o espírito que falta em minha adotada Grã-Bretanha e, de igual forma, a cada vez que volto à Hungria atual.

Eu nasci em uma família de classe trabalhadora em Esztergom, uma cidade no norte da Hungria, em 1968. Minha mãe, Juliana, veio do este do país, a parte mais pobre. Nascida em 1939, teve uma infância dura. Deixou a escola aos 11 anos e foi diretamente trabalhar nos campos. Ela recorda ter tido que se levantar às 4 da manhã para caminhar cinco quilômetros e comprar um pão. De menina, ela tinha tanta fome que com frequência esperavam junto à galinha até que pusesse um ovo. Então abria-o e engoliam, crua, a gema e a clara.

Foi o descontentamento com aquelas condições dos primeiros anos do comunismo, que conduziu à revolta húngara de 1956.

Os distúrbios fizeram com que as lideranças comunistas compreendessem que só poderiam consolidar suas posições tornando as nossas vidas mais toleráveis. O estalinismo acabou e o 'comunismo goulash' -um tipo original de comunismo liberal- chegou.

Janos Kadar, o novo líder do país, transformou a Hungria na barraca mais feliz do Leste da Europa. Tínhamos provavelmente mais liberdades que em qualquer outro país comunista.

Uma das melhores coisas foi a maneira como as oportunidades de lazer e férias se abriram a todos. Antes da Segunda Guerra Mundial, as férias estavam reservadas para as classes altas e médias. Nos imediatos anos da pós-guerra também, a maioria dos húngaros estava trabalhando muito duro para reconstruir o país, as férias ficavam fora de questão.

Porém, nos anos sessenta, como em muitos outros aspectos da vida, as coisas mudaram para melhor. No final da década, quase todo mundo podia se dar ao luxo de viajar, graças à rede de subsídios a sindicatos, empresas e cooperativas de centros de férias.

Meus pais trabalhavam em Dorog, uma cidade próxima, por Hungaroton, uma companhia discográfica de propriedade estatal, de modo que ficamos no acampamento de férias da fábrica no lago Balaton, 'o mar húngaro'. O acampamento era similar à espécie de colônias de férias na moda na Grã-Bretanha da época, a única diferença era que os hóspedes tinham que fazer seu próprio entretenimento às noites. Nom havia campos de férias tipo Butlins Redcoats.

Algumas das minhas primeiras lembranças da vida no lar são os animais que meus pais mantinham no quintal. A cria de animais era algo que a maioria da gente fazia, bem como o cultivo de hortaliças. Fora de Budapeste e as grandes cidades, nós éramos uma nação de "Tom e Barbara Goods". (nota: referência à série da BBC dos anos 70 'The Good Life', protagonizada por uma família auto-suficiente)

Meus pais tinham por volta de 50 frangos, porcos, coelhos, patos, pombos e gansos. Mantivemos os animais não só para alimentar a nossa família, como também para vender a carne a nossos amigos. Utilizaram-se as penas de ganso para travesseiros e edredões.

O governo entendeu o valor da educação e da cultura. Antes da chegada do comunismo, as oportunidades para os filhos dos camponeses e da classe operária urbana, como eu, para ascender na escala educativa eram limitadas. Tudo isso mudou após a guerra.

O sistema educativo na Huntria era similar ao existente no Reino Unido na época. A Educação Secundária era dividida por níveis: Elementar, Secundário Especializado e Formação Profissional. As principais diferenças eram que estávamos no Ensino Básico até os 14 anos e nom até os 11.

Havia também ensino noturno, para crianças e para pessoas adultas. Os meus pais, que tinham abandonado a escola de novos, iam a aulas de Matemática, História e Literatura Húngara e Gramática.

Eu adorava os ir à escola e principalmente fazer parte dos Pioneiros - um movimento comum a todos os países comunistas.

Muitos em Ocidente achavam que era uma burda tentativa de doutrinar a juventude com a ideologia comunista, mas sendo pioneiros ensinaram-nos habilidades valiosas para a vida, tais como a cultura da amizade e a importância de trabalharmos para o benefício da comunidade. "Juntos um para o outro" era nosso lema, e assim foi como se nos encorajava a pensar.

Com 14 anos, a Zsuzsanna (à direita) com uma amiga ainda antes da volta da Hungria ao capitalismo.

Como pioneiro, se obtinha bons resultados em teus estudos, no trabalho comunal ou em competições escolarres, podia ser premiado com uma viagem a um acampamento de verão. Eu ia todos os anos, porque participava em quase todas as atividades da escola: competições, ginástica, atletismo, coro, fotografia, literatura e biblioteca.

Em nossa última noite no acampamento de Pioneiros, cantávamos canções ao redor da fogueira, como o Hino Pioneiro: 'Mint a mokus fenn a fan, az uttoro oly vidam' ("Somos tão felizes como um esquilo em uma árvore"), e outras canções tradicionais. Nossos sentimentos sempre foram misturados: tristeza ante a perspetiva de irmos embora, mas contentes ante a ideia de vermos nossas famílias.

Hoje em dia, inclusive os que não se consideram comunistas olham para atrás com saudade para seus dias de pioneiros.

As escolas húngaras não seguiam as chamadas ideias "progressistas" sobre a educação dominantes na altura em Ocidente. Os padrões acadêmicos eram extremamente altos e a disciplina era estrita.

Minha professora favorita ensinou-nos que sem o domínio da gramática húngara iriamos carecer de confiança para articular os nossos pensamentos e sentimentos. Só podíamos dar um erro se queríamos atingir a nota mais alta.

Diferentemente do Reino Unido, tínhamos exames orais em todas as matérias. Em Literatura, por exemplo, tínhamos que memorizar e recitar diferentes textos e depois a/o estudante teria que responder perguntas colocadas oralmente pola professora.

Sempre que tínhamos uma celebração nacional, eu era das que pediam para recitar um poema ou verso em frente de toda a escola. A Cultura era considerada extremamente importante pelo governo. Os comunistas não queriam restringir as coisas boas da vida para as classes altas e médias - o melhor da música, a literatura e a dança eram para o desfrute de todos.

Isto significava subsídios generosos para as instituições, incluindo orquestras, óperas, teatros e cinemas. Os preços dos ingressos eram subsidiados pelo Estado, daí que as visitas à ópera e ao teatro fossem acessíveis.

Abriram-se "Casas da Cultura" em cada vila e cidade, também provinciais, para que a classe trabalhadora, como meus pais, pudessem ter fácil acesso às artes cênicas, bem como aos melhores intérpretes.

A programação na televisão húngara refletia a prioridade do regime para levar a cultura às massas, sem estupidização.

Quando eu era adolescente, a noite do sábado em prime time pelo geral significava ver uma aventura de Jules Verne, um recital de poesia, um espetáculo de variedades, uma obra de teatro ao vivo, ou um simples filme de Bud Spencer.

Grande parte da televisão húngara era feita com produção própria, mas alguns programas de qualidade eram importados, não unicamente do Bloco do Leste, mas também do Oeste.

Os húngaros de inícios dos anos 70 acompanharam as aventuras e tribulações de Soames Forsyte em The Forsyte Saga, tal como o público britânico tinha feito poucos anos antes. The Onedin Line foi uma outra das séries populares da BBC que eu desfrutei, assim como os documentários de David Attenborough.

No entanto, o governo estava atento ao perigo de nos tornarmos uma nação de televidentes imbecilizados.

Todas as segundas-feiras, tínhamos 'noite familiar'. Aí a televisão estatal ficava fora do ar e isso encorajava as famílias a fazerem outras coisas juntas. Também era chamada "noite dos planos familiares" e eu tenho certeza que um estudo do número de crianças concebidas durante as segundas-feiras familiares seria uma boa leitura.

Ainda que vivêssemos no 'comunismo goulash' e tivéssemos sempre comida suficiente para comer, não eramos bombardeados com publicidade de produtos que não precisávamos.

Durante a minha juventude, vesti roupas em segunda mão, como a maior parte das pessoas novas. A minha mochila escolar era da fábrica onde meus pais trabalhavam. Que diferença com a Hungria de hoje, onde as crianças são intimidadas, tal como no Reino Unido, por usarem uns ténis da "pior" marca.

Como a maioria da gente na era comunista, meu pai não tinha obsessão com o dinheiro. Como mecânico, ele cobrava às pessoas com justiça. Uma vez vi um carro avariado com o capô aberto - um espetáculo que sempre o fazia reagir. Pertencia a um turista da Alemanha Ocidental. Meu pai arranjou o carro, mas negou-se a cobrar-lhe, nem que fosse com uma garrafa de cerveja. Para ele era natural que a ninguém pudesse aceitar dinheiro por ajudar a alguém com problemas.

Quando o comunismo na Hungria terminou em 1989, não só fui surpreendida, também estava entristecida, tal como muitos outros. Sim, tinha gente se manifestando contra o governo, mas a maioria das pessoas comuns - eu e minha família incluída - não participou nos protestos.

Nossa voz - a voz daqueles cujas vidas foram melhoradas pelo comunismo - rara vez se escuta quando se trata de discussões sobre como era a vida por trás da Cortina de Ferro. Em troca, os relatos que se escutam no Ocidente são quase sempre da perspetiva de emigrantes ricos ou dos dissidentes anticomunistas com um interesse pessoal.

O comunismo na Hungria teve seu lado negativo. Enquanto as viagens a outros países socialistas não tinham nenhuma restrição, viajar para o oeste era problemático e só era permitido a cada dois anos. Poucos húngaros (eu incluída) desfrutaram das aulas de russo obrigatórias.

Tinha restrições menores e desnecessários setores burocráticos, e a liberdade para criticar o governo estava limitada. No entanto, apesar disto, acho que, em seu conjunto, as caraterísticas positivas ultrapassam as negativas.

Vinte anos depois, a maior parte destes benefícios foram destruídos.

As pessoas já não têm estabilidade no emprego. A pobreza e a delinquência vão em aumento. Pessoas da classe trabalhadora já não podem se dar ao luxo de ir à ópera ou ao teatro. Tal como na Grã-Bretanha, a televisão atonta em um grau preocupante - ironicamente, nunca tivemos Big Brother durante o comunismo, mas hoje temos. E o mais triste de tudo, o espírito de camaradagem que uma vez se desfrutou quase desapareceu.

Nas últimas duas décadas é possível que tenhamos aumentado o número de shoppings, a "democracia" multipartidarista, os celulares e a internet. Mas perdemos muito mais.

Original em inglês no Dailymail.

domingo, 29 de novembro de 2015

14 coisas que provavelmente você não sabe sobre a Síria ou Você sabia isto, da Síria?



por Áurea Braga

1- A família Assad pertence ao Islã tolerante da orientação Alawita.
2- As mulheres sírias têm os mesmos direitos que os homens ao estudo, à saúde e à educação.

Mulher síria participando da campanha política sobre um referendo de mudanças na Constituição em 2012

3- Na Síria as mulheres não são obrigadas a usar burca. A Chária (lei Islâmica) é inconstitucional.
4- A Síria é o único país árabe com uma constituição laica e não tolera os movimentos extremistas islâmicos.
5- Cerca de 10% da população síria pertence a alguma das muitas confissões cristãs presentes desde sempre na vida política e social.
6- Noutros países árabes a população cristã não chega a 1% devido à hostilidade sofrida.
7- A Síria é o único país do Mediterrâneo que continua proprietário da sua empresa petrolífera, que não quis privatizar.


8- A Síria tem uma abertura à sociedade e cultura ocidentais como nenhum outro país árabe.
9- Ao longo da história houve cinco Papas de origem síria. A tolerância religiosa é única na zona.
10- Antes da guerra civil era o único país pacífico da zona, sem guerras nem conflitos internos.
11- A Síria é o único país árabe sem dívidas ao Fundo Monetário Internacional.
12- A Síria foi o único país do mundo que admitiu refugiados iraquianos sem nenhuma discriminação social, política ou religiosa.


13- Bashar Al Assad tem um suporte popular extremamente elevado.
14- Sabia que a Síria possui uma reserva de petróleo de 2500 milhões de barris, cuja exploração está reservada a empresas estatais?


Talvez agora consiga compreender melhor a razão de tanto intere$$e da guerra civil na Síria e de quem a patrocina…


terça-feira, 17 de novembro de 2015

18 Quadrinhos Contundentes Para Entender Por que Colocar uma Criança em uma Escola Tradicional é um Desastre



“Para quem só tem um martelo, todo problema parece um prego.”
- autoria desconhecida


1. A Escola como a conhecemos é uma estratégia de instrução em massa.

A ideia é otimizar a produção e reduzir os custos.

Apenas um funcionário para um bando de aluno.

Funciona bem para produzir clipes de papel ou automóveis. Mas seres humanos não são clipes de papel nem automóveis.

Tratar pessoas como coisas já é, em si, uma forma de violência.

Não tem como fazer bem para a vida emocional de uma criança novinha, em formação, ser inserida em um sistema que, para funcionar, supõe que ela não é diferente de um objeto.

A criança vira aluno. E alunos viram números.

A Escola lança as bases para vivermos em um mundo em que pessoas são tratadas como coisas, e coisas têm mais valor que pessoas.

2. A instrução em massa opera pela lógica da homogeneização.

Agrupamos crianças por idade, séries e classes.

Obrigamos as crianças a estudar os mesmos tópicos ao mesmo tempo, no mesmo ritmo. A fazer os mesmos exames e dar as mesmas respostas.

Depois de passarem pelo longo processo de escolarização, elas ficam treinadas para valorizar os iguais. E sentem medo e intolerância diante de quem é diferente.

O que também acontece em igrejas e quartéis, por exemplo.

E assim — por não aprendermos a conviver com o diferente — se produzem as variadas formas contemporâneas de violência, como o bullying, o racismo, a misoginia, a homofobia, a xenofobia, os Bolsonaros, Cunhas, Malafaias, Olavos e Felicianos.

3. Para crianças saudáveis, o confinamento e as rotinas escolares são uma violência.

O protesto é sinal de saúde. Todo organismo saudável rejeita espontaneamente o que não faz bem.

Quando um adulto desqualifica o protesto afirmando que isso tudo é necessário, que não tem jeito, o mundo é assim mesmo e coisas do gênero, não se trata de ponderação, mas de cinismo.

Ou de identificação com o agressor: O adulto adota o discurso de quem o violentou.

Ou de uma expressão de ódio deslocada para a criança: Eu passei por isso, agora você vai ter que passar também!

Mas a vida já carrega uma dose mais do que suficiente de sofrimento e exigências com que cada um de nós vai ter de aprender a lidar para amadurecer.

A gente não precisa do gigantesco arsenal adicional de cobranças e frustrações (perfeitamente evitáveis) que a Escola impõe.

4. A Escola pretende preparar o ser humano para a vida e o mundo.

Como?

Retirando a criança da vida e do mundo. (!)

Depositando ela em um ambiente artificial e estéril (a sala de aula).

Trancando a porta.

E tratando todo movimento da criança em direção à vida e ao mundo como desvio e distração — passíveis de punição.

5. Toda criança saudável chega ao mundo com um graaaande coração.

É só observar um ser de fraldas.

Amorosa, compassiva, criativa, espontânea, ousada, curiosa, arrojada, vibrante, íntegra, generosa, empreendedora, interessada, divertida, corajosa, cheia de energia.

Aí começa a conviver com adultos escolarizados. E a frequentar a escola. E a ser bombardeada com mensagens publicitárias, que insistem que ela não é boa o suficiente. Que ela precisa de mais, mais, mais.

E o coração vai murchando, fica contraído, rígido, apertado. Doído.

Às vezes, até para de bater.

6. À Escola Tradicional só interessa uma quantidade limitada de talentos humanos.

É uma verdadeira tragédia.

Talentos e paixões massacrados pelo tribunal do Saber Formal — associado aos imperativos do Mercado.

Silenciados.

Seres com potenciais extraordinários atrofiados, convencidos de que não têm valor.

Auto-estima destruída. Geralmente, pelo resto da vida.

7. Pessoas escolarizadas vivem uma desconexão entre a realidade e ‘mapas’ da realidade.

E mal percebem a contradição.

Passam a vida se preparando por meio de livros, programas, manuais, cursos e instruções. Fazendo planos.

Habitam estreitos mundos mentais, enquanto a vida vibra — e passa — em algum outro lugar.

Não à toa. Foram treinadas desde cedo para terem medo da vida e se refugiarem nos pensamentos.

8. A Escola é uma máquina de ajustamento.

Esta ficou conhecida como a tirinha mais triste de todos os tempos.

Eu concordo.

Me contaram que não foi Bill Watterson quem a desenhou. Aparentemente, foi um fã.

A necessidade de ajustamento ao sistema é brutal.

Desvios não são tolerados.

A criança começa a ser medicada pelos adultos quando apresenta sintomas de… infância.

Construímos coletivamente um mundo cujo bom funcionamento transforma a infância em transtorno.

“Para uma seleção justa, todos deverão realizar o mesmo exame: por favor, subam naquela árvore.”
9. A Escola de massas certifica por meio de testes padronizados.

São o equivalente do controle de qualidade nas indústrias.

Notas e exames padronizados não existem na vida e na Natureza.

São uma invenção perversa.

Por que perversa?

Vou citar dois motivos:
Testes padronizados só fazem sentido para certificar a qualidade de produtos produzidos em massa. Eles identificam defeitos em cópias.
No sistema escolar, a nota acaba ficando associada ao valor da pessoa.

Quem tira nota baixa é ‘reprovado’. Punido.

Chamam os pais para conversar. A criança sente-se mal consigo mesma, com vergonha. É recriminada em casa e na escola.

Não tem futuro.

Todo mundo acredita e vira uma profecia auto-realizadora.

Mas não tem como medir o valor de uma pessoa com notas e exames.

(É também na Escola de massas que toma fôlego a ideia bizarra de Meritocracia — que desconsidera retumbantemente as singularidades e as condições particulares de cada pessoa.)

Veja o quadrinho de novo.

10. O Mundo do Trabalho é uma extensão do Mundo da Escola.

Às vezes parece que foi Zeus quem determinou que temos de passar por longos anos de escola e depois o resto da vida em empregos medíocres.

Observar agoniados o tempo escorrendo pelo ralo em meio a tarefas e cobranças sem sentido.

Como se não houvesse alternativa.

Mas não. Basta estudar História.

A estratégia de educar seres humanos por meio de instrução em massa é uma invenção recente. Pela maior parte da história da humanidade, os seres humanos foram educados de outras maneiras.

E, portanto, há alternativas.

A ideia da escola de massas é produzir um amplo contingente de trabalhadores domesticados, sem crítica ou senso político.

Somos necessários para operar as máquinas nas indústrias — ou os computadores nas empresas — sem enchermos muito o saco.

11. Da palmatória à Ritalina.

Como criamos uma sociedade hipócrita?

Silenciando os impulsos naturais e saudáveis de todo ser humano.

Botando-os sentados em silêncio durante longas horas até que se acostumem a aceitar as palavras de uma autoridade externa.

A quem não se enquadra, a palmatória.

Quando a criança não se comporta do jeito que a escola espera, com frequência como protesto saudável a um sistema hostil, refratário a suas necessidades humanas, ela precisa ser silenciada. É intolerável que aponte as contradições do sistema.

A Ritalina é muito mais sofisticada — e brutal — que a palmatória. Funciona como uma mordaça química, da qual a criança não tem como fugir.

Uma traição covarde à confiança que a criança deposita nos adultos.

A medicação atua de dentro para fora, silenciosa e potente. Abafa os protestos e força a criança, quimicamente, a se enquadrar.

Medicar as crianças que não se encaixam atende perfeitamente aos anseios dos pais, professores e médicos (mas sobretudo da indústria farmacêutica).

Ou seja, não foram os pais, os professores ou a sociedade que falharam, por meio de um sistema obtuso e violento — a criança é que tem algum defeito biológico que a leva a se comportar daquele jeito.

Isso se chama ‘culpabilização da vítima’.

12. Como adestrar um cavalo?

A gente ‘quebra’ o ímpeto dele. Elimina o que nele há de selvagem.

É o que a gente também faz para adestrar seres humanos. Transformamos energia e vitalidade em sono, tédio e apatia.

Assim podemos montar neles e conduzi-los para onde quisermos.

13. Linhas, uniformes, grades curriculares.

A arquitetura da Escola Tradicional imita uma penitenciária.

Celas trancadas (salas de aula) e corredores.

Ambiente, rotinas e relações institucionalizadas. Um mundo à parte.

Não é socialização, de verdade. É um simulacro esquelético de socialização.

O recreio equivale ao banho de sol diário dos prisioneiros. Sempre curto demais e barulhento de energia acumulada.

Crianças saudáveis vivem a Escola como uma prisão.

Em nível sutil, é mais grave: a colonização do corpo e da subjetividade por programas disciplinares funciona como uma prisão invisível, que acompanha a pessoa aonde ela for.

14. A terceirização da infância

A gente quer trabalhar mais, para ganhar mais e poder comprar mais, não é?

Tem muuuita coisa legal pra comprar e usar atualmente. Lugares para conhecer, restaurantes, filmes e livros, games. Mídias sociais.

É bom para a empresa e para a economia do país.

Mas o que a gente faz com as crianças? Eles dão trabalho, exigem atenção.

A gente precisa tirar elas do meio.

É só mandar para a escola em tempo integral. Babá. Mais aulas de judô, natação, teatro, inglês, chinês, espanhol e informática. Ou larga na rua. Ou deixa na frente da televisão, de repente jogando o dia inteiro no tablet, celular ou computador.

Para muitas famílias, a escola vira um depósito de crianças. É conveniente.

O problema são as férias e finais de semana, quando os adultos precisam lidar com aqueles pentelhinhos que eles mal conhecem. E não fazem ideia de como tratar.

E as crianças intuem que estão sendo tratadas como estorvos.



15. Em poucas palavras, é isso mesmo, Dinho.

O Mercado precisa de mão de obra barata e consumidores ávidos.

E se alimenta de nossos sonhos e realizações.

“Eu espero que se tornem pessoas independentes, inovadoras e
críticas que façam exatamente o que eu mandar!”
16. A Escola de massas não muda.

Ela é uma instituição guardiã do status quo.

Os discursos e as modas mudam.

Para agradar aos clientes.

Mas as práticas seguem rigorosamente as mesmas.

Os alunos respiram hipocrisia e contradições. E passam a achar que é normal.

Depois Alckmin recebe prêmio por gestão da água em São Paulo. Dilma adota o slogan de Pátria Educadora, aí faz um mega corte de verbas e coloca o Cid Gomes na direção do MEC.

E a gente aceita.


É, eu sei, este aqui não é um quadrinho. É só a foto de um livro.

Tudo bem, pausei a contagem.

Agora, para mim, não é um livro qualquer — é um livro que mudou a minha vida.

Isso faz 20 anos, mais ou menos.

Foi o tempo que levei da crítica à instituição-escola até conhecer a desescolarização.

Ler esse cara aí foi como a primeira vez que um míope usa óculos. Comecei a enxergar a educação formal com uma nitidez de perder o fôlego.

Ah, e ele é todo feito com quadrinhos e cartuns.

Como, por exemplo, os últimos dois desta série:

17. A Escola compartimentaliza o saber.

A gente vai de uma disciplina para outra como se fosse uma linha de montagem.

Eu sei, é uma manobra epistemológica que permite a especialização. No conjunto, o avanço do conhecimento é maior.

Mas o preço é alto.

Na formação da criança, a compartimentalização causa uma espécie de esquizofrenia na relação com o mundo. A criança substitui a experiência direta, una, da realidade por fórmulas e representações abstratas, organizadas em disciplinas que, com frequência, mal conversam entre si.

18. A Escola foca apenas em desenvolvimento intelectual.

Conteúdo e memorização.

O resto não dá para medir por meio de provas e exames, então deixa pra lá.

A gente faz de conta que não existe.

A consequência: nos tornamos seres mentais.

Cabeça grande, coração atrofiado.

Nosso intelecto funciona bem, mas somos extremamente desajeitados para lidar com afetos, emoções e relacionamentos, por exemplo.

Somos desajeitados para viver uma vida com sentido e significado.

Sofremos de baixa auto-estima, carência, solidão, excesso de auto-crítica, insegurança, angústia, ansiedade, inibições e oscilações de humor. Pânico e Depressão. Tornamo-nos dependentes de remédio, de sexo, de comida, de elogios, das mídias sociais ou do consumismo vazio.

Como diz Daniel Goleman, no livro Inteligência Emocional, a escola não forma para a vida; a escola só prepara o ser humano para a escola.

Em outras palavras, a gente estuda um cagalhão de coisas que, afinal, serão úteis para…

…fazer a prova.

Depois esquece tudo.

(como aquele cara daquela história grega que ficou condenado pela eternidade a empurrar uma pedra enorme até o topo da montanha e aí ela rolava de volta pra baixo de novo e de novo e de novo)

Esses dias, meses e anos — da infância ao começo da vida adulta — que passamos na escola, infernizados por programas, tarefas e avaliações, nas palavras de Tião Rocha, são como serviço militar obrigatório.

E, o mais grave: depois que passam, não voltam mais.

Um desperdício atroz do que temos de mais precioso.

A vida leve, despreocupada e apaixonante que podia ter sido.

E que não foi.


Fonte: Medium

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Mariana e porque saí da Vale


por Fagner Torres*

Nem sempre fui bom em determinadas escolhas, embora de uma delas possa dizer que me orgulho. Em 2005, trabalhava numa empresa do Grupo Vale – a mineradora que hoje a imprensa finge desconhecer após o rompimento da barragem em Mariana – e fui designado para uma missão no interior de Minas Gerais. Com 22 anos, meu objetivo era visitar instituições para credenciamento médico, depois da Companhia, então em surto megalomaníaco, adquirir a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA).

Na época, missão dada era missão cumprida. Foram meses no eixo entre Belo Horizonte e o sudoeste da Bahia. Com carro, motorista, diária, comida, pinga e cu de burro devidamente pagos – estava em Minas, oba! – segui naquela viagem que iniciara encarando como mais uma grande oportunidade de mostrar muito serviço, conhecer muita gente e ouvir muitas histórias.


Após meses no trajeto, o que era quase uma aventura, foi virando um caminho sem volta. Na vida. Com o tempo, percebi que enquanto esbanjava dinheiro daquele negócio naquela orgia toda, passei a enxergar uma pobreza nunca antes vista. Falta de olhar é algo muito perigoso. Como a pobreza poderia ser novidade, mesmo eu sendo filho do sopé do Complexo do Alemão?

De Belo Horizonte a Corinto, de Corinto a Janaúba, de Janaúba a Espinosa, de Espinosa a Urandi, no rastro da ferrovia e do minério que jorrava, vi muita gente jogada à própria sorte, bem como algumas cidades praticamente fantasmas.

Logradouros com pouco mais de mil habitantes transformados em redutos eleitorais. Ruas com pessoas cujo olhar brilhava só de me ouvir dizer “sou do Rio de Janeiro”. Gente que não tinha o que comer à beira dos trilhos por onde até hoje passa o ouro. Gente que dividia o quarto com ratazanas. Gente que, por sua vida, me pirou a cabeça, e que me fez desistir daquele trabalho.


Voltei para o Rio de Janeiro, para a minha base, e ainda demorei até tomar a decisão final. Deixei-me prostituir ainda por quase dois anos, mas sem ligação direta com aquilo para o qual havia sido designado. Quando o dia chegou, estava convicto de que não havia dinheiro capaz de me manter preso àquilo – e nem era muito. Pensava na minha contrapartida. Afinal, era pra manter o status quo daquele sistema de exploração que eu estava me preparando a vida toda?

Desde então, oito anos se passaram. Atualmente, vejo as notícias da negligência em Mariana. Conheço bem a cidade. A Samarco pertence a Vale. Portanto, nem preciso dizer das atividades mantidas na região afetada. Muitos daqueles que ali moram, trabalham na Vale. Alguns devem ter morrido por ela. Ainda não sabemos. Seus nomes não saíram no noticiário. Aliás, nem o da Vale. Por quê?

Não Foi Acidente!

* Jornalista. Atualmente é colunista do portal ESPN FC Brasil.

@TorresFagner

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Sete Observações sobre Preconceito


Por Antonio Engelke

1 – Preconceito é uma construção subjetiva – crença, perspectiva, leitura da realidade –, não um dado da natureza. Dessa afirmação não se deve inferir, entretanto, que o preconceito derive exclusivamente da experiência pessoal do sujeito que o entretém. Crenças, perspectivas e leituras da realidade são construídas socialmente. Ninguém nasce preconceituoso, aprende a sê-lo. Seria então o caso de reformular nossa alegação inicial, e afirmar o caráter intersubjetivo do preconceito. Seja qual for o seu conteúdo, ele não sobrevive somente enquanto substância psíquica isolada.

2 – Preconceito não é um filtro que distorce a posteriori uma realidade apreendida objetivamente, mas parte integrante da própria moldura perceptiva dentro da qual o sujeito apreende aquilo que lhe parecerá então digno de desprezo. Dito de outro modo, não é que o sujeito preconceituoso deforme conscientemente suas opiniões, adicionando-lhes um excedente ilícito de significado; na verdade, tal excedente já é um dos elementos que conforma as opiniões que sustenta. Operação embebida em dogmatismo: o preconceituoso não sabe que crê, ao contrário, crê que sabe acerca do objeto de seu preconceito.

3 – Preconceito deriva de um desconhecimento que não se reconhece enquanto tal. O desconhecimento é também e sobretudo aquele do sujeito que desconhece, pois que o ignorante, por definição, ignora a extensão da própria ignorância. E é por não saber que não sabe que o preconceituoso insiste na ignorância da qual seu preconceito é expressão. Eis porque o argumento preconceituoso é usualmente tautológico ou baseado em evidência anedótica. Estando suas conclusões dadas nas premissas das quais parte, e ignorando sua incapacidade de questionar, que dirá suspender, as certezas que as condicionam, não resta ao preconceituoso senão fechar-se sobre suas falácias, narcisicamente convicto da justeza de suas convicções.

4 – Todo preconceito reproduz o antagonismo do qual é um sintoma. Antagonismo invariavelmente constituído por um núcleo fantasmático: o que o preconceituoso repudia não é o sujeito de carne e osso que tem diante de si, mas a imagem fantasiosa desse sujeito, sobre a qual irá projetar suas paranoias, fobias ou frustrações. Esta a razão pela qual a violência de um ato de preconceito incide não apenas sobre o sujeito tornado vítima, mas sobre o grupo mais amplo ao qual ele pertence.

5 – Preconceito é uma redução que tem na metonímia e no estereótipo seus principais operadores cognitivos. Os matizes, as nuances, as singularidades, as distinções, as complexidades, os paradoxos, as muitas e variadas formas que coexistem dentro de um determinado conjunto são reduzidas a uma só substância negativa, percebida e alardeada como se fosse a essência mesma de tal conjunto. Tendo conquistado aderência suficiente, o preconceito passa a organizar ou delimitar o terreno discursivo acerca do objeto sobre o qual incide, operando um fechamento que sinaliza a estigmatização da alteridade: a quase impossibilidade de pensar e falar sobre o objeto do preconceito fora dos termos de sua percepção preconceituosa.

6 – Daí a relação entre preconceito e senso comum. Visto que o senso comum jamais explicita a si próprio, os pressupostos que o informam permanecem abaixo do limiar de discussão pública. Esta a invisibilidade de que a mentalidade preconceituosa se alimenta: tudo se passa como se o preconceito fosse não um discurso e uma prática de subjugação, mas juízo auto-evidente amplamente compartilhado e por isso mesmo justificado. A desconstrução de preconceitos é sobretudo um trabalho de exposição, um esforço no sentido de escavar o senso comum, a crosta da convenção, a fim de lhe revelar as elisões, as sombras inconfessáveis.

7 – Preconceitos frequentemente possuem suportes institucionais, uma das razões de sua força. Quando publicamente interpelados, quando sua manifestação não encontra mais meios de passar desapercebida, tais suportes tornam evidente o hiato entre a lei e a justiça. Legislações que resultam da luta de grupos discriminados subtraem da discriminação seu respaldo normativo socialmente reconhecido. Inverte-se a mão do constrangimento: o preconceito não cessará de existir uma vez retirada a chancela do Direito, mas a injustiça cometida em seu nome não passará impune.