quinta-feira, 28 de agosto de 2014

7 motivos pelos quais Marina Silva não representa a “nova política”

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Neca Setúbal, herdeira do Itaú e coordenadora do programa de governo de Marina Silva, a candidata e seu vice, Beto Albuquerque


Se a sua intenção este ano é votar em uma "nova forma de fazer política", leia este texto antes de encarar a urna eletrônica.



É comum eleitores justificarem o voto em Marina Silva para presidente nas Eleições 2014 afirmando que ela representaria uma “nova forma de fazer política”. Abaixo, sete razões pelas quais essa afirmação não faz sentido:

1. Marina Silva virou candidata fazendo uma aliança de ocasião. Marina abandonou o PT para ser candidata a presidente pelo PV. Desentendeu-se também com o novo partido e saiu para fundar a Rede -- e ser novamente candidata a presidente. Não conseguiu apoio suficiente e, no último dia do prazo legal, com a ameaça de ficar de fora da eleição, filiou-se ao PSB. Os dois lados assumem que a aliança é puramente eleitoral e será desfeita assim que a Rede for criada. Ou seja: sua candidatura nasce de uma necessidade clara (ser candidata), sem base alguma em propostas ou ideologia. Velha política em estado puro.

2. A chapa de Marina Silva está coligada com o que de mais atrasado existe na política. Em São Paulo, o PSB apoia a reeleição de Geraldo Alckmin, e é inclusive o partido de seu candidato a vice, Márcio França. No Paraná, apoia o também tucano Beto Richa, famoso por censurar blogs e pesquisas. A estratégia de “preservá-la” de tais palanques nada mais é do que isso, uma estratégia. Seu vice, seu partido, seus apoiadores próximos, seus financiadores e sua equipe estão a serviço de tais candidatos. Seu vice, Beto Albuquerque, aliás, é historicamente ligado ao agronegócio. Tudo normal, necessário até. Mas não é “nova política”.

3. As escolhas econômicas de Marina Silva são ainda mais conservadoras que as de Aécio Neves. A campanha de Marina é a que defende de forma mais contundente a independência do Banco Central. Na prática, isso significa deixar na mão do mercado a função de regular a si próprio. Nesse modelo, a política econômica fica nas mãos dos banqueiros, e não com o governo eleito pela população. Nem Aécio Neves é tão contundente em seu neoliberalismo. Os mentores de sua política econômica (futuros ministros?) são dois nomes ligados a Fernando Henrique: Eduardo Giannetti da Fonseca e André Lara Rezende, ex-presidente do BNDES e um dos líderes da política de privatizações de FHC. Algum problema? Para quem gosta, nenhum. Não é, contudo, “uma nova forma de se fazer política”.

4. O plano de governo de Marina Silva é feito por megaempresários bilionários. Sua coordenadora de programa de governo e principal arrecadadora de fundos é Maria Alice Setúbal, filha de Olavo Setúbal e acionista do Itaú. Outro parceiro antigo é Guilherme Leal. O sócio da Natura foi seu candidato a vice e um grande doador financeiro individual em 2010. A proximidade ainda mais explícita no debate da Band desta terça-feira. Para defendê-los, Marina chegou a comparar Neca, herdeira do maior banco do Brasil, com um lucro líquido de mais de R$ 9,3 bilhões no primeiro semestre, ao líder seringueiro Chico Mendes, que morreu pobre, assassinado com tiros de escopeta nos fundos de sua casa em Xapuri (AC) em dezembro de 1988. Devemos ter ojeriza dos muito ricos? Claro que não. Deixar o programa de governo a cargo de bilionários, contudo, não é exatamente algo inovador.

5. Marina Silva tem posições conservadoras em relação a gays, drogas e aborto. O discurso ensaiado vem se sofisticando, mas é grande a coleção de vídeos e entrevistas da ex-senadora nas quais ela se alinha aos mais fundamentalistas dogmas evangélicos. Devota da Assembleia de Deus, Marina já colocou-se diversas vezes contra o casamento gay, contra o aborto mesmo nos casos definidos por lei, contra a pesquisa com células-tronco e contra qualquer flexibilização na legislação das drogas. Nesses temas, a sua posição é a mais conservadora dentre os três principais postulantes à Presidência.

6. Marina Silva usa o marketing político convencional. Como qualquer candidato convencional, Marina tem uma estrutura robusta e profissionalizada de marketing. É defendida por uma assessoria de imprensa forte, age guiada por pesquisas qualitativas, ouve marqueteiros, publicitários e consultores de imagem. A grande diferença é que Marina usa sua equipe de marketing justamente para passar a imagem de não ter uma equipe de marketing.

7. Marina Silva mente ao negar a política. A cada vez que nega qualquer um dos pontos descritos acima, a candidata falta com a verdade. Ou, de forma mais clara: ela mente. E faz isso diariamente, como boa parte dos políticos dos quais diz ser diferente.

Há algum mal no uso de elementos da política tradicional? Nenhum. Dentro do atual sistema político, é assim que as coisas funcionam. E é bom para a democracia que pessoas com ideias diferentes conversem e cheguem a acordos sobre determinados pontos. Isso só vai mudar com uma reforma política para valer, algo que ainda não se sabe quando, como e se de fato será feita no Brasil.


Aécio tem objetivos claros. Quer resgatar as bandeiras históricas do PSDB, fala em enxugamento do Estado, moralização da máquina pública, melhora da economia e o fim do que considera um assistencialismo com a população mais pobre. Dilma também faz política calcada em propósitos claros: manter e aprofundar o conjunto de medidas do governo petista que estão reduzindo a desigualdade social no País.

Se você, entretanto, não gosta da plataforma de Dilma ou da de Aécio e quer fortalecer “uma nova forma de fazer política”, esqueça Marina e ouça Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) com mais atenção.

De Marina Silva, espere tudo menos a tal “nova forma de fazer política”. Até agora a sua principal e quase que única proposta é negar o que faz diariamente: política.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Com 'imensa satisfação', Pelé serviu Médici no ano do tri

Encontro em Brasília: Pelé levanta a taça da Copa de 1970 ao lado de Médici
Encontro em Brasília: Pelé levanta a taça da Copa de 1970 ao lado de Médici

No período da repressão mais intensa do regime militar, o general Médici teve ao seu lado, como representante do governo, o maior embaixador que poderia ter: um entusiasmado Edson Arantes do Nascimento. Pelé.

Por Lúcio de Castro, em ESPN

Com "imensa satisfação", o maior jogador de todos os tempos voltou ao México quatro meses depois da conquista do tricampeonato com "a honrosa missão de representar o ilustre governo" na inauguração da Plaza Brasil, em Guadalajara, entre os dias 2 e 5 de novembro de 1970. É o que mostra uma carta do próprio Pelé ao "muito digno Presidente", até aqui inédita, parte do arquivo pessoal do presidente dos anos mais violentos da ditadura no país. Doado em 2004 ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) por Roberto Médici, filho do ditador, o "Acervo Médici" só foi aberto a pesquisadores agora. A peça é um relato do craque diretamente ao mandatário sobre as atividades realizadas naquele país por ocasião dos festejos. Pelo caráter oficial da viagem, Pelé recebeu às vésperas do embarque um passaporte diplomático com a distinção: "O titular viaja em missão oficial".

Pelé vai além da alegada satisfação em representar o governo Médici. Agradece a "honra em representar v.excia". E mesmo tendo vivido pouco tempo antes a emoção do tricampeonato e de sair definitivamente consagrado como o maior jogador de todos os tempos, afirma sobre a viagem em nome de Médici que "tal missão se constituiu numa das mais marcantes experiências de minha vida". No acervo está ainda o recibo pelo saque por parte de Pelé para as despesas de viagem, paga pelo Ministério das Relações Exteriores, em agência do Banco do Brasil, em Santos.

ESPN.com.br
A carta enviada por Pelé ao presidente Médici: cinco páginas em papel timbrado

Reprodução

Trecho da carta em que Pelé fala em "representar esse ilustre governo" 

Reprodução
Em outro trecho, os passaportes comprovam a missão oficial de Pelé no México

Naqueles dias em que Pelé representou o governo Médici, o Brasil seguia sob as amarras do AI-5, de 13 de dezembro de 1968, que dava amplos poderes ao presidente e recrudesceu a repressão, ampliando o regime de exceção, a tortura e os assassinatos em dependências do estado.

Em cinco folhas de papel timbrado com o nome de Edson Arantes do Nascimento e o apelido "Pelé", estão as palavras reverenciais do craque em relação ao presidente Médici e ao governo e o relato completo dos compromissos no México, que incluíram encontro com Luiz Echeverria Alvarez, que assumiria a presidência daquele país poucos dias depois, em 1º de dezembro e teria seu mandato marcado por um traço em comum com o governante brasileiro: a chamada "Guerra Sucia", onde se matou e torturou grande quantidade de oposicionistas. Contraditoriamente, recebeu exilados do mundo inteiro, inclusive do Brasil.

A comitiva brasileira foi representada por Pelé e sua então mulher, Rose, com quem foi casado entre 1966 e 1978, e do professor Júlio Mazzei, também acompanhado pela mulher. Além das entrevistas coletivas e das cerimônias oficiais representando o governo brasileiro, Pelé encontrou tempo para um momento de lazer no único dia livre, sendo recebido em jantar pelo cantor Lucho Gatica.

Para desempenhar a função de representante do governo Médici, Pelé e Rose receberam os passaportes diplomáticos nºs 021.621 e 021.622. Júlio Mazzei e sua mulher não foram agraciados com passaportes diplomáticos mas receberam passaportes especiais. Todos expedidos às vésperas da viagem, em 29 de outubro. Um funcionário do cerimonial do Ministério das Relações Exteriores foi até Santos entregar os passaportes, os formulários para saques da verba para a viagem e os detalhes da programação. Na inauguração da Plaza Brasil, Júlio Mazzei leu mensagem do governo em castelhano e Pelé discursou posteriormente.

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Recibo pelo saque por parte de Pelé para as despesas de viagem, pagas pelo Ministério das Relações Exteriores

Não foi a primeira demonstração de apreço de Pelé ao regime militar. Poucos dias antes dessa viagem ao México como representante do governo Médici, Pelé esteve numa dependência do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social, responsável pelos interrogatórios e ações de combate do regime militar) em São Paulo, e, no gabinete do diretor, se prontificou a tornar pública sua defesa do governo e a se pronunciar ser contrário ao "comunismo". A visita foi no dia 21 de outubro de 1970, como mostrou relatório do DOPS obtido pelo documentário"Memórias do Chumbo - O Futebol nos Tempos do Condor", exibido na ESPN Brasil evencedor do Prêmio Gabriel García Márquez de jornalismo.
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Pelé no DOPS: defesa do governo e contrário ao "comunismo"

A estreita relação entre Pelé e Médici transformou o jogador no principal agente de propaganda do governo Médici, posando seguidamente ao lado de vários ministros em diferentes campanhas, como Delfim Neto e Jarbas Passarinho. Tais laços valeram a Pelé a Ordem do Rio Branco, mesmo antes da Copa, em 20 de abril de 1970.

O "Acervo Médici" tem mais importantes revelações sobre as relações do regime militar com o futebol. É possível saber que Médici tinha mais olhos e informantes sobre os bastidores da seleção do que os que já estavam oficialmente na delegação para isso, como Roberto Ypiranga Guaranis, envolvido em casos de tortura na repressão e diretamente com o caso Parasar dois anos antes, chefe da segurança da delegação brasileira. Uma detalhada carta de Paulo Planet Buarque, membro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, conselheiro do São Paulo Futebol Clube, tendo chegado a ser presidente do conselho deliberativo e que já havia feito parte da delegação do Brasil em 1958, relata os bastidores da seleção, ambiente e analisa os jogadores. Em 1970, mesmo não estando oficialmente na delegação, escreveu periodicamente do México para Médici dando conta dos passos da seleção.

Em uma das cartas de Paulo Planet, com data de 21 de maio, antes da estreia brasileira, depois de abrir o texto com o cortejo inicial de praxe e de breve parecer político, onde deseja a vitória da Arena nas eleições para que Médici "possa tratar com exclusividade dos problemas administrativos", o amigo de Médici passa ao relato do ambiente da concentração da seleção brasileira e não se furta aos palpites sobre melhores formações e jogadores.

De acordo com o relato, "o ambiente entre os jogadores não poderia ser melhor". Afirma também existir "clima de euforia, de enorme desejo de ganhar". Ao falar sobre jogadores e eventual escalação para a estreia contra a Tchecoslováquia, que seria em duas semanas, o relator de Médici no México escreve frase dúbia sobre Tostão, permitindo que se alimente a famosa lenda de que o então craque cruzeirense não chegava a ser um xodó de Médici, lugar, de acordo com tal história, ocupado por Dario. "O quadro é aquele mesmo, com Tostão e tudo, embora Zagalo tenha informado que poderia aproveitar Dario ou Roberto, no decorrer da partida, dependendo do seu transcorrer", diz a Médici.

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Carta de Paulo Planet conta a Médici como é o ambiente da seleção brasileira

Nas linhas que seguem, transmite alguma preocupação com a zaga e deixa para Médici a ideia de sua formação ideal. "Everaldo no posto de Marco Antônio. Este menino apavorou-se quando fomos atacados. Enfim o técnico é o Zagalo e esperemos pela estreia. Logo darei mais notícias", conta a Médici. Não é possível saber se Médici considerou as ideias do seu correspondente Paulo Planet. Se transmitiu para Zagalo. Ou, neste caso, se Zagalo acatou. De fato, Marco Antônio acabou na reserva e Everaldo foi titular.

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Paulo Planet fala também de futebol e dá palpites sobre a seleção

A reportagem tentou contato com Paulo Planet Buarque mas não obteve resposta.

Pelé também foi procurado, mas, através de seu assessor, afirmou que não tem "nada a declarar".

O acervo "Médici" deve trazer ainda muitas revelações nos próximos tempos, espalhadas em 32 caixas de manuscritos e mais de 700 documentos intactos desde os anos de chumbo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Escravos da moda. Quem se importa com a procedência?

trabalho

O trabalho degradante deixa muita gente indignada, mas, na hora de comprar roupa nova, poucos se preocupam se a loja ou a marca tirou algum proveito dessa prática

Por Cida de Oliveira, na RBA

A foto de um menino paquistanês costurando uma bola de futebol da Nike em 1996, nas páginas da extinta revista Life, causou indignação. No mesmo ano, o documentarista norte-americano Michael Moore filmou conversa com o presidente da multinacional, Phil Knight, para o documentário The Big One. “Você não tem problema de consciência? Sabe como vivem seus empregados na Indonésia?”, questionou. O filme foi exibido em 1998, quando as condições degradantes de trabalhadores da companhia em países da Ásia já eram conhecidas e a marca tinha se tornado sinônimo de exploração.

No mesmo ano, ativistas dos direitos humanos aproveitaram o Mundial da França para denunciar o trabalho de crianças na produção de bolas e chuteiras. Com ajuda da internet, consumidores de todo o mundo boicotaram produtos da marca, derrubaram executivos e ações nas bolsas. Para limpar a barra, a empresa passou a controlar as relações de trabalho nas subsidiárias e a investir em marketing.

No final de 1999, curiosamente, um dos principais garotos-propaganda da marca, o ex-jogador Ronaldo, foi nomeado embaixador do Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), para ajudar a disseminar ações de combate às desigualdades. Mesmo assim, a companhia não conseguiu se desvencilhar da imagem negativa. O caso Nike é emblemático no mundo quando se trata de demonstração de força do consumidor.

No Brasil, é a Zara. Em 2011, a grife espanhola ganhou as manchetes não pelo sucesso da nova coleção de roupas caras, mas pelo trabalho análogo à escravidão flagrado por fiscais na cadeia produtiva. Em São Paulo, bolivianos ganhavam ­­R$ 2 por peça produzida em oficinas de costura terceirizadas para a AHA, que por sua vez prestava serviços para a Zara no Brasil. Os executivos da empresa tentaram desfazer o vínculo. O episódio obteve destaque nas redes sociais e a marca foi alvo de protestos e boicote. “Por mais que eu gostasse de usar, cheguei a deixar de lado uma peça da marca que ganhei de presente. Em vez de status, a roupa passou a dar vergonha”, diz a recepcionista paulistana Bruna Araújo, 17 anos.

O barulho levou acadêmicos a estudar o assunto. Os professores Cintia Rodrigues de Oliveira, Valdir Machado Valadão Júnior e Rodrigo Miranda, da Faculdade de Gestão e Negócios da Universidade Federal de Uberlândia (MG), analisaram comentários de internautas sobre o caso. A conclusão é que o consumidor entende que o crime corporativo é compensador do ponto de vista financeiro e que a empresa deve ser fiscalizada intensamente pelo poder público e punida com multas severas. E mais: que a população aceita tal crime ao continuar comprando da empresa.

Em abril, a grife foi responsabilizada pelo MPT. A justificativa é que, como detentora do poder econômico relevante na cadeia produtiva, pode proteger os 15 mil trabalhadores subordinados a ela e não apenas os das pequenas oficinas. A Zara anunciou que vai recorrer, alegando que não obteve vantagem financeira com a irregularidade cometida pela AHA – que não foi investigada, julgada, nem punida. Esta não é a única a ser envolvida em casos assim.

Nos últimos quatro anos, fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) flagraram trabalhadores bolivianos em condições degradantes em oficinas de costura fornecedoras de marcas populares e caras. Autuada 48 vezes em 2010 e multada, a Marisa assinou um TAC e afirma fiscalizar, mas não divulga os resultados. Absolvida em primeira instância, questiona o governo na Justiça por publicar a “lista suja” do trabalho escravo. O MTE recorre da absolvição.

A C&A não chegou a receber autuação formal, mas passou a fazer auditorias surpresa e divulga na internet casos de trabalho infantil e pagamento abaixo do salário mínimo. A Collins assinou TAC e passou a fiscalizar os parceiros. Já a 775 não fiscaliza nem informa as ações para evitar o trabalho escravo na produção.

Com oficinas flagradas em 2011, as Pernambucanas se recusaram a assinar acordo para sanar os problemas e não publicam dados das auditorias que garantem fazer. A Gregory que, em 2012, recebeu 25 autos de infração, não assinou TAC e não diz o que faz para combater o trabalho escravo.

No ano passado, foi a vez de oficinas da Bo.Bô, Le Lis Blanc e John John, e da Cori, do mesmo grupo de Emme e Luigi Bertolli. As marcas não declaram ações contra trabalho escravo ou se descartam fornecedores. Em maio passado, fiscais encontraram bolivianos costurando para a M. Officer – o que já tinha acontecido em novembro de 2013. Em julho, o MPT pediu à Justiça que responsabilize a marca por trabalho escravo, além de multa de R$10 milhões por danos morais e que seja proibida de atuar no estado de São Paulo.

Em maio, durante desfile da São Paulo Fashion Week, modelos e estilistas da Ellus subiram à passarela com camisetas com a frase: “Abaixo este Brasil atrasado”. A grife que “desabafava”, como alegaram os idealizadores, é a mesma denunciada em 2012 pelo MPT por trabalho análogo à escravidão, tráfico de trabalhadores e trabalho indígena.

O problema é outra face do trabalho degradante, que já foi mais comum no campo. Em 2013, pela primeira vez, o número de trabalhadores resgatados em operações de fiscalização foi maior em áreas urbanas (confira quadro).

O escândalo na moda e os boicotes intensificaram o debate em torno da questão. A ponto de, segundo o jornalista Leonardo Sakamoto, pressionar a instalação de CPIs estaduais e em nível nacional, que influíram na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 81/2014, no final de maio, pelo Senado, depois de quase duas décadas de debates. A PEC prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado e a destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos. A emenda conceitua como escravo o trabalho exaustivo, a jornada exaustiva, o impedimento de ir e vir, mas ainda depende de regulamentação, o que deve ser fonte de novos embates no Congresso.

Coordenador da organização Repórter Brasil, que mantém um portal reconhecido pela atuação em prol do trabalho decente, o jornalista Leonardo Sakamoto diz que o boicote é um instrumento poderoso contra o trabalho escravo por afetar mais que as vendas. Por mais passageiro que seja, arranha a marca e influencia investidores, o maior patrimônio das empresas, como ocorreu com a Nike e, agora, com a Zara.

No entanto, para Sakamoto, o consumidor se preocupa é com qualidade e preço. “Em geral, como não gosta de ser enganado, fica indignado quando paga caro por um produto e descobre que não há garantia social. É aí que fica indignado, insatisfeito e passa a boicotar”, diz.

“É inadmissível as grifes explorarem mão de obra e ainda venderem roupas tão caras. Você não paga menos de R$ 400 em algumas camisetas de marca que pagam R$ 10 por peça bordada e que lançam coleções em desfiles como a São Paulo Fashion Week”, reclama a pesquisadora paulistana Ana Paula Nascimento, 41 anos.

Consultor de conteúdos e metodologias do Instituto Akatu, associação que defende consumo consciente para a sustentabilidade, Dalberto Adulis concorda com Sakamoto, mas entende que o consumidor está ficando mais crítico, que desconfia das promessas das empresas e prefere marcas comprometidas com o meio ambiente e que oferecem boas condições de trabalho a empregados. E o comportamento, em franca evolução, depende de informação para ser ainda mais engajado. “O consumo consciente requer educação e informação que nem todo brasileiro tem. Quando todos tiverem, vão cobrar e pressionar mais”, afirma.

A professora Silvia Cristina Gomes, 31 anos, e o namorado, o militar Paulo­ Henrique de Carvalho, 23, reclamam justamente disso. Eles contam que, muitas vezes, pensam no trabalho degradante na produção das roupas que usam, o que, porém, não faz diferença na hora de comprar. “Nunca me lembro disso nem deixei de comprar por essa razão. Compro conforme a promoção, o preço, o produto. Só depois, vou pensar no trabalho escravo”, diz Silvia. “A gente vê a roupa na loja, no mostruário, mas não tem como saber a procedência”, completa Paulo.

Adulis, do Akatu, destaca que os consumidores de menor renda, que mais se identificam com os trabalhadores, são os que acabam se beneficiando com a oferta de produtos mais baratos em função da exploração da mão de obra. “A questão é como assegurar preço para produto com atributo de sustentabilidade ambiental, social e trabalhista que o mantenha competitivo em relação aos outros.”

“Acho muito triste essa situação; lojas tão grandes, marcas de grife, pagarem tão mal para o trabalhador”, comenta a recepcionista Raimunda Silva, 59 anos, de São Paulo, que afirma nunca ter se arrependido das compras que faz, mesmo em lojas ligadas ao trabalho escravo. “No momento em que estou comprando, com tantos atrativos, nem raciocino.”

A auxiliar de saúde bucal Maria do Carmo Conceição de Santana, 43 anos, vai além: “Sou meio desligada. E quando compro, estou envolvida com a escolha, não lembro de mais nada, mas acho que trabalho escravo deve ser fiscalizado pelo governo, não pela gente”.

Lojas com sinal verde

Ajudar o consumidor a conhecer a conduta de algumas das lojas preferidas e fazer escolhas mais conscientes. Esse é o objetivo do aplicativo para celular Moda Livre, iniciativa da organização Repórter Brasil. Com mais de 5 mil downloads, o aplicativo é destinado a quem gosta de moda, mas não quer que alguém tenha sido explorado para costurar roupas. Traz avaliações de 22 marcas a partir de questionários respondidos pelas próprias empresas.

São classificadas com verde aquelas que têm mecanismos de acompanhamento sobre a cadeia produtiva e histórico negativo em relação ao tema. Recebem amarelo as que demonstram ter mecanismos de acompanhamento, mas apresentam histórico desfavorável em casos de trabalho escravo ou precisam aprimorar esses mecanismos. Já o vermelho é para aquelas que não contam com mecanismos de acompanhamento, têm histórico desfavorável ou não responderam ao questionário.

Segundo o aplicativo, que não tem a pretensão de recomendar a compra ou boicote de determinadas marcas, mostram a pior avaliação 775, Bo.Bô, Centauro, Collins, Gregory, Havan, John John, Leader, Le Lis Blanc e Talita Kume. Ficam no nível intermediário Cori, Dzarm, Emme, Hering, Luigi Bertolli, Marisa, Pernambucanas, PUC, Renner, Riachuelo e Zara. A C&A tem a melhor avaliação. Segundo o coordenador da Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, o Moda Livre vai ser atualizado, com inclusão de outras marcas. Outros setores, como automobilístico e de eletrodomésticos, terão em breve um aplicativo semelhante.

O que é trabalho escravo

• As dificuldades para erradicar a prática se originam da pobreza. “Gatos” (agentes) aliciam trabalhadores em situação vulnerável em várias regiões do país. As despesas de viagem já começam a endividar o trabalhador, 
que ainda será “aprisionado” a custos com alimentação e medicamentos, ­
por exemplo

• O artigo 149 do Código Penal considera crime reduzir alguém à condição análoga à de escravo, “quer submetendo-se a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”

• Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o artigo 149 é consistente com a sua Convenção 29. A entidade considera o Brasil um país “fortemente comprometido” com o combate à prática da escravidão contemporânea

• Em 27 de maio, o Senado aprovou a chamada PEC do Trabalho Escravo, depois de 15 anos de tramitação. A batalha agora é pela regulamentação. Defensores da PEC temem retrocesso. Pela PEC, podem ser expropriadas, para fins de reforma agrária, áreas nas quais seja registrada ocorrência de escravidão

• Em 1995, o governo iniciou as operações de fiscalização móvel, para erradicação do trabalho escravo. Até 2013, foram 1.572 em 3.741 estabelecimentos, com 46.478 pessoas resgatadas

• No ano passado, pela primeira vez o número de trabalhadores no setor urbano (1.068) foi maior que no meio rural. O Ministério do Trabalho e Emprego credita parte desse resultado ao aumento da fiscalização nessas áreas. Construção civil e setor têxtil concentram ocorrências

• Outras iniciativa no combate ao trabalho escravo no Brasil é a chamada “lista suja”, divulgada periodicamente, com nomes de empregadores que usam a prática. A relação atual tem 549 nomes. Acesse em bit.ly/mte_lista_suja

• O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo foi criado em 2005 pelo Instituto Ethos, o Instituto Observatório Brasil, a ONG Repórter Brasil e a OIT. No ano passado, surgiu o InPacto, instituto criado para “fortalecer e ampliar” as ações que visam a conscientizar as empresas sobre ocorrência de trabalho escravo na cadeia produtiva




Fonte: SpressoSP

domingo, 24 de agosto de 2014

José Luís Fiori define a nova ordem mundial: "Multipolar, contraditória e beligerante"



Carta Capital - Entrevista ao economista brasileiro, por Sergio Lirio, para Carta Capital.


Um mundo multipolar será necessariamente um ambiente conflituoso, afirma o cientista político José Luís Fiori. Enquanto os Estados Unidos tentam exercer seu poder de forma mais indireta, as potências regionais buscam firmar sua influência e, em último grau, se unem em estratégias comuns contra o império. Dessa contradição nascem as possibilidades de conflito. “O sistema interestatal capitalista se estabiliza por meio de sua própria expansão contínua e, portanto, em última instância, através das guerras”, afirma. Na entrevista a seguir, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o mais arguto analista de relações internacionais do País, analisa as mudanças globais e o papel do Brasil na nova ordem.


CartaCapital: O Brasil tem atuado, por meio de grupos como o G-20 e o BRICS, de forma a fazer a governança global mais democrática. Quais são os limites dessa iniciativa? E como avaliar seu poder real frente ao grupo do G7?

José Luís Fiori: O G20 e o BRICS são dois grupos ou organismos internacionais absolutamente diferentes, pela sua origem, natureza e significado dentro do sistema internacional. Considero que eles não têm a ver com democracia. O G20 nasceu em 1999, à sombra das crises financeiras da década de 90 e adquiriu um significado emergencial com a crise de 2008/09, envolvendo a participação de chefes de Estado, ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais de 19 países e mais a representação da União Europeia. Sua importância naquele momento deveu-se muito à gravidade da crise, e ao forte apoio inicial dos EUA. Mas esses dois fatores perderam força depois que o Congresso norte-americano bloqueou a reforma da estrutura de tomada de decisões do FMI, decidida pelo G20 em Seul, em 2010. Depois disso, o G20 foi esvaziado progressivamente e hoje está transformado num fórum informal de debate e consultas, sem nenhuma capacidade de decisão importante, e sem nenhum instrumento concreto de ação. Foi uma resposta emergencial à crise e serviu como âncora na hora do naufrágio, mas está fadado a ser mais uma instância mundial de troca anual de ideias inúteis, em geral bem intencionadas. Por outro lado, o grupo do BRICS, como sabemos, nasceu de forma inteiramente diferente, quase acidental, mas foi adquirindo progressivamente uma dimensão cada vez mais interessante, por sua própria conta, e também por conta de outras transformações paralelas do panorama geopolítico mundial. Essas mudanças deram um destaque cada vez mais importante ao grupo. Ainda é um clube informal, mas reúne quatro das sete maiores economias do mundo, com cerca de 50% da população e 26% da massa do planeta, além de já produzir atualmente 25% do PIB mundial. Para além do campo econômico, o BRICS tem aparecido cada vez mais como o único polo real e alternativo de poder no mundo frente ao G7, cada vez mais parecido a um grupo de amigos íntimos incondicionais dos EUA. Efetivamente, não há mais como explicar a presença de países como a Itália ou o Canadá neste verdadeiro “comité central” das antigas potências do mundo euro-americano. O avanço do BRICS aponta para um processo longo e talvez para um exercício mais equilibrado e oligárquico do poder global, mas com certeza isto não tem nada a ver com democracia.

Leia artigos de José Luís Fiori no Diário Liberdade.

CC: É possível manter essa iniciativa sem incomodar os Estados Unidos? Como atuar para diluir o poder de influência norte-americano?

JLF: Não, não é possível. Neste ponto o sistema interestatal e capitalista criado, difundido e liderado pelos europeus e pelos EUA nos últimos quatro séculos, não deixa nenhuma dúvida nem alternativa. Neste sistema, quem não sobe, cai, e quem está em cima bloqueia de todas maneiras possíveis a tentativa de subir dos novos pretendentes que se propõem a alcançar a condição de potencias regionais ou globais. É o que se vê hoje, por exemplo, com relação à reivindicação dos chamados “emergentes” a respeito do acesso e participação nas decisões do FMI e do Banco Mundial. Ou de forma mais crua e dura, com relação ao esforço norte-americano de contenção da expansão política da China, da Alemanha, do Irã ou mesmo da Rússia. Neste sentido, o Brasil também não tem como escapar a esta regra geral na medida em que suas iniciativas internacionais o afastem do seu antigo alinhamento incondicional ao lado das potências anglo-saxônicas, e dos EUA, em particular. Sua crescente projeção econômica e politica regional dentro da América do Sul não tem como não preocupar os EUA, que sempre foram a potência líder inquestionável de todo o chamado “hemisfério ocidental”. Mas isto não significa de maneira alguma que o Brasil tenha de confrontar os EUA, porque já hoje o Brasil faz parte de um pequeno grupo de potências que podem - e devem - fazer alianças de todo tipo e com todo e qualquer país, dependendo apenas dos seus objetivos políticos e institucionais, dos seus valores éticos e dos seus interesses econômicos.

CC: Que papel o Brasil viria a desempenhar em uma nova ordem?

JLF: No século XX, o Brasil deu um salto gigantesco. No início daquele século, era apenas um país agrário, com um Estado fraco, fragmentado, e um poder econômico e militar muito inferior ao da Argentina. Neste início do século XXI, é a sétima maior economia do mundo, a maior da América Latina e tem um potencial de crescimento sem paralelo no continente. Na primeira década deste novo século, deu passos importantes para assumir sua liderança sul-americana e projetar sua influência para fora do seu próprio continente, sobretudo na África e nos países chamados de “emergentes”. Mas esse caminho de expansão e projeção da presença e da liderança brasileira no mundo, ética, política e econômica, não será fácil, pelas dificuldades próprias de uma época de grande turbulência e transformação mundial, e pela oposição permanente e poderosa de um segmento da elite intelectual e de muitos grupos de interesse internos que se opõem à estratégia de autonomização internacional do Brasil. Esses grupos se utilizam, em geral, de uma ideologia globalizante e cosmopolita, mas de fato defendem uma volta atrás e um alinhamento econômico e político mais estreito com os EUA, e mais subordinado à estratégia de poder global das potências anglo-saxônicas. Uma volta atrás que hoje teria um imenso custo para o Brasil e sua imagem internacional.

CC: Há décadas o Brasil fala sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU e sua possível entrada. Esta ainda é uma pauta factível? O País não deveria buscar outras alternativas, como atuar de forma intensa em missões da ONU?

JLF: Acho que o Brasil não precisa mudar sua pauta, desde que tenha claro que se trata de uma bandeira de mobilização internacional talvez útil para criar alianças e avançar negociações, mas que não há nenhuma possibilidade de conquistar esta cadeira permanente no Conselho de Segurança, a menos de uma situação emergencial de ruptura internacional, e mesmo que o Brasil se alinhe de forma incondicional ao lado dos EUA dentro do Conselho. O resto faz parte de uma encenação internacional importante como afirmação da vontade brasileira de ascender na ordem hierárquica internacional, sabendo que ninguém lhe dará passagem gratuitamente, nem mesmo seus sócios do BRICS ou da Unasul.

CC: Nessa iniciativa de reformar a governança global, a Unasul ainda parece ter um papel pouco importante. O senhor acha que a Unasul deveria ter um papel mais ativo?

JLF: Como lhe disse, não acredito que esteja em curso qualquer processo de “reforma” da governança mundial. O que está em curso é uma disputa cada vez mais intensa, em todos os tabuleiros regionais do mundo, pela hegemonia e pela liderança política econômica e militar dentro de cada uma destas regiões, envolvendo sempre os EUA, porque é a única potência global existente no mundo neste momento. Dentro do sistema mundial em que vivemos as “reformas” são sempre o produto final de longos conflitos que em geral passam em algum momento por alguma guerra que acaba desequilibrando o jogo e obrigando uma mudança nas instituições e regras de governança mundial. Neste sistema ninguém abre mão de nada gratuitamente. Neste contexto, a criação da Unasul foi um passo muito importante de construção e afirmação da liderança brasileira do processo de integração da América do Sul. Todos estes processos são muito longos e demandam enorme tenacidade, e não será diferente no caso da Unasul. Não depende apenas dela ter um papel mais ou menos importante no mundo. Depende de sua capacidade de superar suas divisões e lutas internas e de sua capacidade coletiva de aproveitar as brechas criadas pelo terremoto geopolítico e geoeconômico que está em pleno curso dentro do sistema interestatal capitalista.

CC: Como o senhor imagina o balanço das forças no mundo multipolar que aparentemente se desenha? Como se configuraria o planeta sem um império único?

JLF: Nos últimos anos, os Estados Unidos tentam construir uma nova estratégia internacional em todos os grandes “tabuleiros geopolíticos” do sistema mundial. Seu objetivo não é o de abandonar sua posição imperial, ou seu poder global. É exercê-lo de forma mais indireta por meio da promoção ativa das divisões e dos “equilíbrios de poder” regionais, segundo o modelo clássico da administração imperial da Grã-Bretanha durante o século XIX. Mesmo se os EUA tiverem sucesso nesse intento de “terceirização” de poder, isso não impedirá a existência e a multiplicação de guerras e conflitos localizados, a envolvê-los em última instância, pois as demais potências regionais e/ou “emergentes” deverão seguir no trabalho de construir blocos e coalizões capazes de resistir, equilibrar e algum dia superar o poder local dos EUA, e quem sabe, mais à frente, desafiar a própria hegemonia global norte-americana.

CC: Essa mudança está em curso?

JLF: Do meu ponto de vista é o jogo jogado em todo o mundo: de um lado, os EUA a se distanciar, interessados mais no papel de interventores de última instância, e, de outro, as demais potências regionais na tentativa de escapar do “cerco americano” por meio de coalizões de poder que neutralizem o divisionismo estimulado por Washington. Em particular, a China faz um movimento explícito e militarizado de afirmação do seu poder e de disputa da supremacia no mar do Sul do Pacífico e em todo o Leste Asiático. Além de tomar posições cada vez mais nítidas e expansivas na África e na América Latina. O mesmo faz a Rússia na Europa Central e em toda a Eurásia. A Alemanha, na Europa Ocidental e também na Europa Central. A Índia, no sul da Ásia. O Irã, no Oriente Médio. O Brasil, na América do Sul. E em menor escala, a África do Sul e a Indonésia em suas zonas imediatas de influência. A própria expansão do poder americano fortalece a maior parte das potências que deverão competir com os EUA nas próximas décadas pelas hegemonias regionais do mundo.

CC: É um movimento contraditório.

JLF: Sim. E é preciso compreendê-lo. A expansão constante da potência hegemônica fortalece continuamente seus futuros adversários, ao mesmo tempo que desestabiliza o próprio sistema. Não há como desmontar essa armadilha, pois a competição generalizada cria a energia responsável pelo movimento contínuo de expansão do sistema mundial. Por isso também, no horizonte desse sistema, não há nenhuma possibilidade de paz ou estabilidade perpétua. O sistema interestatal capitalista se estabiliza por meio de sua própria expansão contínua e, portanto, em última instância, através das guerras. E se o sistema parasse de se expandir, tampouco haveria paz perpétua. Haveria entropia e desordem, pois sua ordem nasce do seu movimento.

CC: Vladimir Putin tenta recuperar a influência, ainda que limitada, da Rússia no cenário internacional. Até onde ele pode chegar?

JLF: A Rússia já foi atacada, invadida e destruída várias vezes ao longo de sua história milenar, mas sempre voltou a se levantar, se reconstruir e reocupar uma posição de destaque entre os grandes poderes mundiais. A partir de 1991, parecia impossível que isso voltasse a acontecer, depois da derrota soviética e da destruição liberal da economia russa. Vinte e três anos depois, a Rússia está de novo de pé e volta a preocupar o “mundo ocidental”. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Joachim Morgenthau, o pai da teoria política internacional realista, norte-americana, formulou a tese de que a causa das guerras tem a ver com a vontade dos derrotados de recuperar sua posição anterior à derrota, para retomar seu lugar na hierarquia do poder mundial.

CC: Seria essa a situação da Rússia?

JFL: Desde Alexandre I, que governou de 1825 a 1855, a Rússia já perdeu perto de um quinto do seu território e quase metade de sua população, e deverá tentar de todas as maneiras recuperar esses territórios ocupados, em muitos casos, pelas forças da Otan. A Rússia atual não tem mais a força e a projeção ideológica global da União Soviética, e só se propõe a ser uma grande potência eurasiana. Mas não se deve esquecer que, mesmo retaliada e diminuída, a Rússia atual segue sendo o maior Estado territorial do planeta, dona da maior reserva energética e do segundo arsenal atômico do mundo. E é o único país europeu com capacidade real de intervenção estratégica e de disputa hegemônica em todo o continente eurasiano. Foi isso que percebeu o grande geopolítico inglês Halford John Mackinder, ao propor, no início do século XX, e antes do nascimento da União Soviética, a necessidade de cercar e conter a Rússia de forma permanente. No século XX, a necessidade de “conter o comunismo” caiu como luva para a estratégia geopolítica de longo prazo dos países de língua inglesa, a mesma nesta segunda década do século XXI.

CC: A crise na União Europeia se atenuou um pouco, mas o desemprego continua altíssimo e não há sinais de uma recuperação mais vigorosa. O senhor considera que a ideia da União Europeia ainda continua sob risco?

JLF: Independentemente das flutuações da crise econômica conjuntural, o verdadeiro problema de longo prazo da União Europeia é que ela tem uma “falha de origem” e é prisioneira, há muito tempo, de uma armadilha circular. Ela precisaria de um poder centralizado para poder se transformar numa verdadeira unidade politica e econômica capaz de hierarquizar seus próprios objetivos de curto e longo prazo. Mas ela não tem nem terá jamais este poder centralizado enquanto seus principais Estados nacionais seguirem bloqueando este processo de centralização. Porque, no fundo, a Europa sempre esteve dividida e está cada vez mais dividida, entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. E este quadro piorou depois do fim da Guerra Fria, quando a Alemanha se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente, e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos seus laços econômicos e financeiros com a Europa Central, e com a Rússia. Este comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional, e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União Europeia, e trazendo de volta as suas velhas fraturas e divisões seculares.

CC: E a relação da Europa com os Estados Unidos?

JLF: Esta falta de um poder central capaz de definir e impor objetivos e prioridades estratégicas comuns fica agravada pela submissão militar dos europeus à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e aos EUA, que foi quem impôs a expansão apressada da UE, em direção ao leste, logo depois de 1991, para “ocupar” os Estados que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia, e haviam estado sob controle russo. Presa dentro desta camisa de força, a União Europeia é hoje um “ente político” fraco, com uma moeda falsamente “forte”, e com muito pouca capacidade de iniciativa autônoma, dentro do sistema mundial. Por isto, a União Europeia está se transformando rapidamente numa “carta fora do baralho”, dentro da nova geopolítica mundial, desta primeira metade do século XXI, até porque, isoladamente, suas antigas grandes potências não têm mais a mesma importância que tiveram no passado e só se mantêm no topo do sistema graças a sua associação dependente dos Estados Unidos. Mesmo a Alemanha, que luta para se reafirmar no cenário geopolítico mundial, ainda segue sendo prisioneira do seu passado e de sua condição de “protetorado atômico” dos EUA.

CC: Os BRICS acabam de anunciar a criação de um banco de desenvolvimento e de um fundo de estabilização. Como o acordo entre os emergentes vai afetar a velha ordem econômica do planeta?

JLF: A criação do banco de desenvolvimento e do fundo de compensações representa uma mudança qualitativa na trajetória do grupo. É, de fato, sua primeira materialização concreta. A partir dessa decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem e institucionalização, os BRICS deixaram de ser um grupo diplomático e político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e administração conjunta. Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-americana, mesmo sem confrontá-la. Essa decisão não muda de forma imediata e radical a velha ordem monetário-financeira do planeta, liderada em um primeiro momento pela moeda inglesa e hoje pelo dólar norte-americano. Mas o mais importante é a forma em que foi dado esse passo, assumido como gesto simbólico e político, e como parte de uma estratégia de construção de circuitos monetários e financeiros paralelos e de contenção, não necessariamente contraditórios com a ordem monetária e financeira anglo-saxônica.

CC: O senhor vê alguma possibilidade de o dólar perder espaço para outras moedas, como o yuan, no futuro próximo?

JLF: Sim, em particular no circuito econômico asiático e em todas as áreas do mundo onde cresça a presença comercial e financeira dos chineses. Não quer dizer que as moedas regionais ou setoriais possam substituir a curto prazo o dólar como referência internacional. Moeda é uma criação do poder e um recurso fundamental na competição entre os Estados e as economias do sistema interestatal capitalista. Só houve até hoje duas moedas de referência internacional, a libra e o dólar, e as duas tiveram e continuam a ter papel decisivo na construção e na reprodução do poder global da Inglaterra e dos EUA. Nem a libra nem o dólar se transformaram em referência da noite para o dia, nem foi apenas uma escolha dos mercados. A libra só se generalizou dentro e fora da Europa a partir de 1870, quase dois séculos depois do início da escalada do poder da Inglaterra. E o dólar só ocupou espaço depois da Segunda Guerra Mundial e após mais de um século do início da escalada internacional do poder político, militar e comercial dos EUA

CC: E como a China está posicionada para lutar por esse espaço?

JLF: A conquista de um reconhecimento e aceitação supranacional por parte de uma moeda nacional envolve sempre um processo lento e uma luta contínua, passo a passo junto com a expansão do poder do seu Estado emissor, até se transformar numa potencia regional ou global como foi o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos. No caso da China ainda falta muita estrada, mas não há dúvida que a China está seguindo uma estratégia paulatina de expansão do seu poder e do poder de sua moeda nacional. Neste sentido a decisão recente de criar o banco de desenvolvimento e o fundo de compensação do BRICS deve ser colocada ao lado de outras propostas e iniciativas chinesas. São os casos da criação do Asian Infraastructura Investment Bank (AII), da Chiang Mai Iniciative Multilateralization (CMIM) e do Asian Multilateral Research Organiztaion (AMRO), que já conta com um fundo de 240 bilhões de dólares, destinado a ajudar países asiáticos com dificuldades de balanço de pagamentos. Além disso, deve-se computar nesta mesma direção a iniciativa chinesa de criação do Asian Bond Market, destinado a mobilizar recursos de investimento na região, assim como o rápido desenvolvimento do chamado Dim-Sum Bonds, ou seja o mercado de título designados em yuan. O caminho será longo, porque o chineses parecem ter absoluta claridade que até hoje todos os que tentaram desafiar a supremacia monetário-financeira das duas potencias anglo-saxônicas foram bloqueados, derrotados ou destruídos.

CC: Há muitas críticas à crescente “sinodependência” do Brasil. Como o País poderia aproveitar melhor essa relação ou, de outro ponto-de-vista, evitar grandes perdas na aproximação com a China?

JLF: Da mesma forma que com qualquer outra grande potência maior, mais rica e mais poderosa do que o Brasil. Calculando cada passo político e econômico e mantendo sempre claros os objetivos e interesses fundamentais do Brasil naquela aliança circunstancial. Neste sistema não há alianças eternas nem lealdades indissolúveis, que não seja talvez, entre os países de fala e sangue inglês. Neste momento a China é um aliado fundamental do Brasil, em alguns campos, e com vistas a alguns objetivos comuns. Mas pode deixar de ser logo a frente e, mesmo hoje, pode ser em algumas coisas e em outras não. De qualquer maneira, do ponto de vista dos interesses econômicos fundamentais do Brasil, o Brasil tem de batalhar com todos os instrumentos a sua disposição para impedir que a integração econômica entre Brasil e China contribua para a desindustrialização brasileira e a transformação do país numa “periferia de luxo” chinesa, exatamente pelo mesmo motivo que o Brasil se opôs ao projeto norte-americano de criação da Alca.

CC: O Brasil tem uma participação muito pequena na corrente internacional de comércio. Como o País poderia se integrar de forma mais efetiva?

JLF: O caminho, certamente, será longo e complexo, pois nesse campo, como no caso das moedas, não existem milagres ou soluções automáticas. E deve começar pelo correto entendimento de como funcionam os mercados internacionais, que mais se assemelham a uma guerra de movimentos entre forças desiguais do que a um jogo de troca-troca entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica entre Estados e capitais que atuam como grandes predadores na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e lucros extraordinários. Hoje, de novo, o problema não é o de se integrar nas correntes de comércio ou nas cadeias produtivas.

CC: Alguns analistas avaliam o Mercosul e a Aliança do Pacífico como blocos concorrentes. O senhor acredita que sejam mesmo? Se sim, de que forma a competição afeta o status da América do Sul no mundo?

JLF: Em algum momento escrevi que a Aliança do Pacífico tem mais importância estratégica e ideológica do que econômica, dentro da América do Sul, e esta importância seria sobretudo para os EUA e sua rede de apoios dentro do continente sul-americano. Fora disto, os três países sul-americanos que fazem parte da Aliança do Pacífico não representam nenhum ameaça ou competição para o Brasil. Pelo contrário, Colômbia, Chile e Peru já estão praticamente integrados com o mercado brasileiro e devem ter suas barreiras comuns eliminadas até no máximo 2018. Estes países são pequenas economias mono-exportadoras de commodities, sem escala para promover um processo de industrialização autônomo apoiado no seu mercado interno. A Colômbia exporta principalmente combustíveis minerais, que ocupam 66% de sua pauta de exportações; o Peru exporta minérios, metais preciosos e combustíveis minerais que constituem 63% de suas exportações; e, no caso do Chile, a exportação de cobre sozinha já representa 60% de suas exportações. No caso da Colômbia, a China já é seu segundo maior parceiro comercial; e no caso do Peru e do Chile, a China é o primeiro parceiro. Nenhum desses três países se propõe qualquer tipo de desafio econômico, nem representa uma ameaça para o Brasil. Nos três casos, a disputa do Brasil pelos seus mercados internos é com a China e os EUA, e todos os três ocupam um lugar importante como destino das exportações brasileiras de maior valor agregado. No médio prazo, o Brasil pode ganhar posições sem maior conflito, basta aumentar seu ritmo de crescimento e aprofundar a sua integração física com o Pacífico. O Brasil concentra hoje mais da metade do PIB sul-americano e possui uma indústria mais diversificada e uma economia mais sofisticada que a de todos os demais países do continente. Se for capaz de construir essa infraestrutura terá todas condições de se transformar, a médio prazo, no polo econômico de referência de toda esta região.

CC: Como o senhor avalia os resultados da intervenção dos EUA no Oriente Médio e quais os riscos da nova realidade na região?

JLF: Logo após o fim da Guerra Fria, em 1994, a Otan lançou um projeto de intercâmbio militar e de segurança com os países árabes do Norte da África, o chamado Diálogo Mediterrâneo. Dez anos depois, lançou uma nova Iniciativa de Cooperação de Istambul, centrada nos países do Oriente Médio. Nesse mesmo ano, o presidente George Bush, o pai, alargou os objetivos estratégicos americanos e da Otan, e falou pela primeira vez no Grande Médio Oriente, na reunião do G-8, em Sea Islands, nos EUA. A proposta de Bush pai era criar um novo espaço unificado de intervenção geopolítica, do Marrocos ao Paquistão, e deveria ser objeto da preocupação prioritária das chamadas potências ocidentais na sua guerra contra o “terrorismo islâmico”.

CC: Não deu certo.

JLF: Vinte anos depois da primeira iniciativa da Otan, a estratégia, pode-se dizer, foi um rotundo fracasso. A incapacidade demonstrada pelos EUA e europeus de controlar o mais recente ataque israelita à Faixa de Gaza é apenas a última gota de um desastre do tamanho do Grande Médio Oriente. Mesmo após as guerras do Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e, de novo, Afeganistão, ainda seguem em pleno curso vários conflitos civis e inúmeros processos avançados de desintegração de Estados e sociedades no próprio Afeganistão, Iraque, Síria, Líbano, Iêmen, Líbia, Sudão e Palestina, ao lado da desastrosa restauração militar no Egito, da crescente militarização da Arábia Saudita, da instabilidade crônica do Paquistão e do descontrole fundamentalista de Israel. Esse grande fracasso estratégico talvez possa ser considerado como o fim da desastrosa retaliação colonialista do Império Otomano feita por França e Inglaterra, responsáveis pela criação de fronteiras e Estados absolutamente artificiais em todo o Oriente Médio, nascidos para atender aos interesses econômicos e geopolíticos das duas potências e seus aliados. Esse talvez tenha sido um dos maiores atestados de incompetência e egoísmo da parte do “homem branco europeu”, deixando atrás de si um legado de violência na mesma região onde os turcos otomanos tinham demonstrado uma capacidade milenar de estabilização e aceitação pacífica da convivência religiosa. Uma história vergonhosa, mas talvez possamos assistir ao início de uma nova história a ser escrita pelos próprios povos, civilizações e sociedades que pertenceram ao antiquíssimo Império Otomano.

CC: Por que a Primavera Árabe não se tornou o “sopro de democracia” que o Ocidente imaginava?

JLF: A tal Primavera foi apenas mais uma invenção delirante do egocentrismo e da fantasia cinematográfica dos europeus e americanos.