quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Revista Veja censura seu próprio colunista


Rodrigo Constantino afirmou que, mesmo torturada, era Miriam Leitão quem deveria pedir desculpas ao País. Texto foi apagado logo em seguida

Por Redação

O colunista da Veja Rodrigo Constantino teve um texto tirado do ar pela própria revista. Na coluna da última quarta-feira (20), ele ironizou o depoimento da jornalista Miriam Leitão ao portal Observatório da Imprensa, em que relatava as torturas sofridas durante a ditadura militar.

Membro do PCdoB nos anos 1970, ela descreveu momentos de terror passados em uma prisão do Espírito Santo. Miriam contou que, grávida, foi submetida a sessões de espancamento, ameaças de estupro, além de ser trancada com uma cobra em uma sala escura, em uma espécie de tortura psicológica. Ao final do relato, a jornalista pede uma retratação das Forças Armadas. “Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo”, afirmou.

Esse foi o gancho usado pelo colunista da Veja, que, em tom de deboche, disse que era Miriam quem deveria pedir desculpas ao País por sua atuação durante a oposição ao regime. Nas palavras dele, a então militante não era uma heroína, mas uma comunista que pretendia transformar o Brasil em uma “imensa Cuba”. As ideias de Rodrigo duraram pouco na rede e logo foram retiradas pelo editor.

No Twitter, Constantino confirmou a interferência em sua publicação e reforçou o ataque à jornalista. “A pedido do editor da Veja.com, retirei do ar (…) Ainda acho que ela deveria fazer um reconhecimento público de que não lutava por uma democracia e não era uma heroína, mas faço isso em outra ocasião”, escreveu.

Parece que, até para a Veja, Rodrigo dessa vez passou de todos os limites.


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Mike Brown, ou qualquer outro nome



Brecht advertia que num tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. 


Há que desconfiar do mais trivial e examinar sobretudo o que parece habitual. No dia 9 de Agosto foi assassinado um jovem afro-americano em Ferguson, Missouri, nos EUA. Não, não é déjà-vu: já aqui escrevi sobre esta notícia, pelo que irão os leitores perdoar-me tão incômoda iteração. Só o nome era diferente. Os meios de comunicação social da classe dominante não cometeram o mesmo erro que eu: perceberam que a história era a mesmíssima de sempre e já não interessava. O guião é sempre igual: Um jovem desarmado a caminho de casa. É interceptado pela polícia por razão nenhuma. Acaba trespassado de balas. Por ser negro. Ao contrário de Trayvon Martin, o nome de Mike Brown não mereceu manchetes nem parangonas, o público já estava habituado à história e, muito sinceramente, farto de a ouvir. Não há, com efeito, pior hábito do que nos habituarmos.


Esta crônica não é sobre estatísticas

Mas estranho seria se, à semelhança dos passavantes do deus-dinheiro, também nós comunistas aceitássemos não repetir as palavras de sempre, quando é sempre tão chocante a repetição dos velhos crimes. Michael Brown está morto. E continuará a morrer com outros nomes ainda mais anônimos enquanto não os soubermos a todos de cor. É por isso que o podem matar. Só desde Janeiro, mais de 400 homens negros foram mortos a tiro pela polícia norte-americana, uma estatística considerada normal no paradigma capitalista de democracia e liberdade. Mas Michael Brown não era uma estatística e esta crônica é sobre ele. Mike tinha 18 anos e na próxima semana entraria pela primeira vez na faculdade, um feito que a mãe, lavada em lágrimas, gritava aos polícias «Sabem como me foi difícil mantê-lo na escola até ao fim? Sabem quantos rapazes negros conseguem entrar na faculdade?». A terrível resposta é menos de 15%, mas não vamos falar sobre isso porque Michael Brown não era uma estatística. Nesse dia, Mike ia a caminho da casa da avó num subúrbio operário da cidade quando um carro de patrulha estacionou ao seu lado e o mandou parar, uma rotina em Ferguson, onde 87,5% de todas as pessoas que a polícia manda parar são negros. Mas como esta crônica não é sobre estatísticas, vamos seguir adiante. Agora sabemos que Michael não era suspeito de qualquer crime, mas mesmo assim os polícias quiseram revistá-lo: mais um número para os 92.3% de negros entre as pessoas revistadas pela polícia em Ferguson. Afinal se calhar há uma pequena parte de estatística sobre esta crônica. Segundo várias testemunhas, Michael recusou-se a ser interrogado e revistado. Nessa altura, um polícia tentou empurrá-lo para dentro do carro. Michael conseguiu libertar-se e correu. Então, o polícia disparou um tiro certeiro, que atingiu o jovem pelas costas. Tudo isto aconteceu pelas duas da tarde e as várias testemunhas são unânimes sobre o que se seguiu: quando recebeu o disparo, Michael levantou os braços para se render mas o polícia saiu do carro e, a uma distância de menos de dez metros, alvejou novamente Michael Brown. Mais sete vezes. Sobre a identidade do polícia assassino conhecemos apenas a cor da pele: era branco como 94% dos polícias de uma cidade 67% negra. Esta crônica não é sobre estatísticas, é sobre o Michael Brown, mas foram as estatísticas que o mataram.


À flor da pele

À hora do fecho desta edição, os comentadores dos grandes noticiários norte-americanos perguntavam em indignado coro porque é que os negros do Missouri estão a pegar fogo às ruas. Como até aqui ainda só pudemos repetir estatísticas que toda a gente já conhece, faremos o obséquio de lhes responder à pergunta. Ferguson arde porque o corpo de Michael ficou horas descoberto no meio da estrada e porque, quando uma vigília se juntou com fotografias e velas nas mãos, chegaram mais de duzentos polícias de choque, com cassetetes e caçadeiras nas mãos. St. Louis arde porque em 2014 crianças e adolescentes negros são assassinados pela polícia que lhes despreza a vida. O Missouri arde porque sempre que mais um jovem afro-americano é assassinado por este sistema desumano e estruturalmente racista, os media encarregam-se de criminalizar a imagem da vítima. Os EUA ardem porque, escreveu-o Martin Luther King Jr. semanas antes de ser ele próprio assassinado, «a revolta é a linguagem dos que não têm voz». Está embargada de lágrimas, de tanta injustiça e tão velha opressão.





terça-feira, 19 de agosto de 2014

Dissidência ou a arte de dissidiar - Mauro Iasi


Dissidência ou A Arte de Dissidiar

Por Mauro Iasi - PCB

“Há hora de somar
E hora de dividir.
Há tempo de esperar
E tempo de decidir.
Tempos de resistir.
Tempos de explodir.
Tempo de criar asas, romper as cascas
Porque é tempo de partir.
Partir partido,
Parir futuros,
Partilhar amanheceres
Há tanto tempo esquecidos.
Lá no passado tínhamos um futuro
Lá no futuro tem um presente
Pronto pra nascer
Só esperando você se decidir.
Porque são tempos de decidir,
Dissidiar, dissuadir,
Tempos de dizer
Que não são tempos de esperar
Tempos de dizer:
Não mais em nosso nome!
Se não pode se vestir com nossos sonhos
Não fale em nosso nome.
Não mais construir casas
Para que os ricos morem.
Não mais fazer o pão
Que o explorador come.
Não mais em nosso nome!
Não mais nosso suor, o teu descanso.
Não mais nosso sangue, tua vida.
Não mais nossa miséria, tua riqueza.
Tempos de dizer
Que não são tempos de calar
Diante da injustiça e da mentira.
É tempo de lutar
É tempo de festa, tempo de cantar
As velhas canções e as que ainda vamos inventar.
Tempos de criar, tempos de escolher.
Tempos de plantar os tempos que iremos colher.
É tempo de dar nome aos bois,
De levantar a cabeça
Acima da boiada,
Porque é tempo de tudo ou nada.
É tempo de rebeldia.
São tempos de rebelião.
É tempo de dissidência.
Já é tempo dos corações pularem fora do peito
Em passeata, em multidão
Porque é tempo de dissidência
É tempo de revolução”


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A farra do financiamento da campanha eleitoral



Jornal A Verdade


O início do processo eleitoral reacende uma série de debates e polêmicas envolvendo temas recorrentes no Brasil. Um dos aspectos mais abordados pela grande mídia, que se transforma em um fértil campo de batalha entre as mais ricas candidaturas, é a corrupção. Verdadeiras avalanches de fatos e “denuncismos” hipócritas fazem ecoar campanhas chapa branca, projetos de lei que prometem a moralização das eleições, banindo candidatos “fichas sujas” e regulamentando o financiamento das campanhas. Mas de onde vêm tais financiamentos? Qual a relação do processo eleitoral com a corrupção?

No Brasil o financiamento de campanha é misto. As doações podem ser provenientes de recursos dos próprios candidatos, com limite de 10% do que declararam no Imposto de Renda, de pessoas jurídicas, com limite de 2% do que declararam, repasses de fundo partidário (quantia repassada pelo Estado proporcionalmente aos partidos legalmente constituídos) e arrecadação de comitês de campanha (cuja origem se dilui nas fontes já citadas). É vedado o financiamento de candidaturas por parte de sindicatos, associações de classe ou entidades e organizações sem fins lucrativos. Ou seja, se um banco ou indústria quiser financiar e eleger um candidato, a lei o garante. Se um sindicato ou grupo de trabalhadores tiver a mesma pretensão, não poderá fazê-lo. Outra fonte importante é a do horário eleitoral gratuito, que, na prática, é pago e consome muito recurso público.

As últimas eleições para a Câmara Federal e o Senado são exemplos de como as políticas executadas pelo Estado burguês e os interesses das grandes corporações são indissociáveis. Disputaram as eleições 4.615 candidatos, o que equivale a cerca de 0,002% da população brasileira. Foram arrecadados R$ 2.098.537.649,76* em doações para os partidos e candidatos, sendo R$ 1.776.172.439,91 provenientes de empresas privadas. Foram oficialmente declarados gastos na ordem de R$ 1.271.293.505,41 nas campanhas. Os gastos dos candidatos eleitos equivaleram a 63,58% dos gastos totais. As empresas foram responsáveis por cerca de 43% do total do financiamento das campanhas, contando que, na outra parcela, ainda há financiamento privado. As construtoras Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e OAS, o Banco Alvorada, a siderúrgica Gerdau e a empresa de agronegócio JBS “doaram”, no total, R$ 371.760.441,50 para campanhas de diversos partidos reformistas e de direita da situação e também da oposição de direita. Várias empresas e bancos financiaram campanhas de diversos partidos, garantindo, assim, que qualquer setor que saísse vitorioso já estivesse comprometido com os interesses da iniciativa privada.

O senador mineiro Aécio Neves da Cunha (PSDB), candidato da direita à Presidência da República nestas eleições, foi o segundo candidato que mais gastou entre todas as campanhas do país, em 2010, declarando R$11.970.313,79 em gastos, e suas maiores financiadoras foram a Tortc Terraplanagem Obras Rodoviárias, Itaú/Unibanco, Metalúrgica Prada, Construtora Aterpa e Banco BMG. A pífia atuação no Senado e os pouquíssimos projetos apresentados demonstraram, na prática, que o senador esteve, e ainda está, a serviço da iniciativa privada, em detrimento dos interesses da população mineira e do país. Já agora, o PSDB apresentou uma estimativa de gastos para a campanha presidencial de R$ 290 milhões.

Agora candidata do PSOL à Presidência da República, a ex-deputada federal Luciana Genro declarou gastos de R$ 230.354,02 com sua campanha de 2010, sendo 88% deste valor oriundo de doações de pessoas físicas. O restante veio de pequenas e médias empresas. A previsão de gastos para sua campanha à Presidência não chega a um milhão de reais.

O resultado prático das campanhas bilionárias com altos investimentos de grandes corporações é o total atrelamento do Estado burguês com seus interesses. Total desrespeito aos direitos do povo, o roubo de dinheiro dos cofres públicos durante os mandatos para pagamento das “dívidas de campanha”, etc.

O Estado burguês privilegia apenas aqueles que detêm o poder econômico e os meios de produção. Aos candidatos oriundos das massas populares cabe fazer a denúncia, a agitação política e, caso consigam furar o bloqueio das campanhas milionárias, têm o papel de, no Parlamento, desnudar a podridão do sistema eleitoral, das estruturas viciadas do poder, manter-se coerente com os ideais e interesses de classe e lutar pela garantia dos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores.

Raphaella Mendes, Belo Horizonte

Fontes: BBC Brasil/ Portal CEFET – SP/ Portal Os donos do Congresso

domingo, 17 de agosto de 2014

Mussum e o País ingênuo que não existe mais



Vinte anos após a morte do humorista, a sua imagem é hoje usada por quem se ressente por não poder esculachar minorias sem provocar ofensas.




Quem acompanhou as homenagens ao humorista Antonio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, morto há exatos 20 anos, imagina que o Brasil era um lugar puro, ingênuo e agradável no tempo dos Trapalhões. Não havia maldade, não havia patrulha, não havia preconceito. Tal qual Adão e Eva no Paraíso, toda a maldade estava nos olhos de seus criadores, os chatos que inventaram de inventar o pecado e a escuridão e transformaram brincadeira em ofensa e alegria, em constrangimento.

Por algum motivo, o histórico dos Trapalhões se tornou exemplo de como era possível viver em harmonia, sem patrulhas nem amarras politicamente incorretas, até bem pouco tempo atrás. A perda dessa “inocência” é lamentada por quem vê no Mussum, um ator e músico de talento incomparável, o símbolo de um período permissivo, libertário e saudável. Um tempo em que o da poltrona podia ver um negro alcoólatra sacaneando um cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela.

É sempre delicado analisar, de forma isenta, o que formou e faz parte da nossa memória afetiva. Os Trapalhões são parte dessa memória, pelo menos da minha, que passei boa parte da vida chegando em casa ansioso depois dos passeios de domingo para assistir ao programa da TV Globo. Até hoje me pego rindo à toa das esquetes, algumas disponíveis no YouTube graças às almas mais altruístas. Mas me incomoda um discurso comum entre os antigos fãs do quarteto: naquele tempo não tinha maldade. Como me incomoda o uso da imagem do Mussum como prova desse discurso: “Olha só, batíamos nele e ele nem ligava”.

Aparentemente não ligava mesmo, e isso torna a discussão ainda mais complicada – algo como “se ele não se ofendia, quem sou eu para me ofender por ele?” Mas, zapeando pela internet, encontrei recentemente uma entrevista antiga do comediante à revista humorística Casseta. Me perguntei se aquela entrevista seria aceita hoje e os porquês. Foi o encontro de dois tipos de humor, que tiveram o seu tempo, e hoje talvez não produzissem o mesmo efeito por um motivo simples: evoluímos. Aos trancos, e não na velocidade ou totalidade que deveríamos, mas evoluímos.

Na entrevista é possível rir em muitos momentos e vivenciar o clima de despojamento da época e do bar onde foi gravada. Mas há uma certa melancolia ao tropeçar no velho humor sexista e homofóbico do Casseta e Planeta, grupo que fez sucesso nos anos 1990 sem que parte dos seus integrantes tivesse saído da fase anal. A cada quatro perguntas, três tinham alguma pegadinha de duplo sentido. Você deu? Sentou? Entrou? É chegado? É de fora pra dentro? E gargalhadas.

Alguém, certificando-se de não estar sendo vigiado, poderia confessar: “Foi engraçado, vai?”. E outros poderiam dizer: engraçado para quem?

Na história dos movimentos sociais, só quem sofreu todos os preconceitos na carne (ou na pele) pode dizer quantos anos foram congelados no tempo graças às piadas que ridicularizavam determinados tipos sociais. Quantos anos de luta e sofrimento foram desmoralizados pela ofensa preservada no estereótipo da bicha louca, do negro burro, do judeu (ou o turco/árabe) muquirana, da vizinha devassa?

No caso do Mussum, apelido dado por Grande Otelo em referência a um peixe liso, a história é um pouco mais complexa. Primeiro porque nem ator nem personagem eram totalmente ingênuos, como hoje parecem ser lembrados. O primeiro aprendeu a se virar desde cedo, quase sempre em grupo, no morro, no bar, na Aeronáutica, no teatro, na roda de samba, no estúdio da tevê. O segundo rebatia provocações e não levava desaforo para casa – “negro é seu passado”.

A negação à questão causava desconforto aos grupos antirracismo já na época. Na entrevista, Mussum comentava a reação do movimento negro a uma frase de Renato Aragão ao ver integrantes de sua família em uma piscina: "Pensei que fosse uma sopa de berinjela”. Mussum dizia não entender a gritaria. Argumentava que também sacaneava os cearenses, caso do colega, chamando-os de cabeça de passar roupa. E que ninguém se ofendia por isso. Talvez seja esse o fator de nostalgia de quem hoje vê no período um tempo de inocência: o tempo em que uma minoria podia sacanear outra minoria em canal aberto e ninguém dizia se ofender por isso.

Na mesma resposta, Mussum dizia não aceitar as críticas de que não ajudava os negros, e citava como exemplo o fato de alimentar vários deles em sua casa. E terminava dizendo estar disposto a debater o racismo apenas em casos de discriminação expressas, caso alguém dissesse, por exemplo, ter sido proibido de entrar em determinados lugares por causa da cor.

A entrevista é de outubro de 1991. Mussum já havia visto e vivido muito da vida. Consolidara uma carreira brilhante com uma generosidade ímpar, como atestam todos os testemunhos sobre ele desde a sua morte. Mas não parecia ter se dado conta a tempo do quanto servia a um discurso violento, que na prática, e fora das telas, provocava mais choro do que gargalhada – ao menos para quem era diariamente maltratado e/ou ridicularizado por causa da cor da pele.

O Brasil dos tempos dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, não era um País inocente. Era um País onde a maioria da população era negra ou morena, mas não era maioria nas universidades, nos postos de destaque de empresas, nos gabinetes públicos, nos sistemas de representação, na produção científica, nos tribunais e até nos shoppings. Era maioria, no entanto, nas ruas, nos grupos de jovens abandonados, nos morros, nas cadeias, nas fotos com tarja preta dos jornais.

No Brasil do tempo dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, poucos admitiam ter preconceito, e poucos seriam capazes de barrar a entrada de alguém em um espaço público pela cor da pele. Como hoje, e como em outros países, havia quem atirasse bananas para jogadores negros ou mulatos no campo, mas só porque eram, como ainda são, protegidos pelo anonimato da arquibancada.

Ao pé do ouvido, e certificando-se de não estar sendo vigiado, havia, como ainda há, quem colocasse em prática os mecanismos invisíveis de seleção, a começar dentro de casa, na escolha das companhias dos filhos (sobretudo das filhas), no discurso de dois pesos e duas medidas a depender da cor de quem prestava um serviço (ou uma barbeiragem no trânsito ou um chute torto no jogo de futebol) ou nas piadas inocentes que mantinham todos na mesma posição herdada dos avós, quando a escravidão formal fora substituída por outras formas de escravidão.

Naquele Brasil, o personagem negro e alcoólatra sacaneava o cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela – para alegria dos patrões brancos que não entravam na trama.

O Brasil de hoje não é tão diferente do Brasil dos Trapalhões, mas o acumulado de anos, lutas, instrumentos de políticas públicas, campanhas e debates começam a produzir um mínimo de constrangimento a velhas gracinhas antigamente aceitas e transmitidas de pais para filhos.

Tempos atrás, o integrante de uma banda de um stand up comedy abandonou o espetáculo ao ser chamado de “macaco” por um comediante branco diante de uma plateia de maioria branca. Esses são os tempos de consciência que a casa grande confunde com hipocrisia: os tempos em que os anos de sofrimento e luta não estão expostos para o riso, nem dos amigos, nem da plateia. Uma pena que Mussum não tenha vivido para ver. E uma pena que sua imagem, entre genial e inocente, seja usada hoje para apelos ao retorno de outros tempos: os tempos em que a risada era a única arma disponível contra o esculacho dos séculos de escravidão não abolida.