sábado, 26 de julho de 2014

Os sete tipos de reacionário (e como debater com eles)



Se você já perdeu tempo tentando discutir política com reacionários, deve ter percebido que existem tipos diferentes desses indivíduos, cada um com um estilo particular de “argumentação”. Nesse artigo bem humorado tentaremos desvendar os sete tipos de reacionário, o que há de errado com eles e como devemos agir.

“Quem são os reaças? Onde vivem? De que se alimentam?” (Sérgio Chapelin, sobre reacionários)

Começaremos pelos mais inteligentes e depois seguiremos em direção aos de comunicação mais difícil.

Reacionários Educados

Esses são os mais raros. Eventualmente você esbarra em um em público ou num fórum on-line. Podem ser os mais difíceis de lidar. Eles aprenderam tudo o que há pra se aprender sobre suas posições (de uma perspectiva reacionária). Educaram-se sobre todas as razões que justificam seus posicionamentos como corretos, mas não estão interessados em nada que contradiga suas crenças.
O problema: Qualquer um com internet e cinco minutos livres consegue encontrar algo que descredite completamente sua versão dos “fatos”. Mesmo quando rebatidos, continuam a voltar aos argumentos iniciais, tentam mudar o assunto para algo onde se sintam mais confortáveis ou começam a expressar opiniões sem mérito factual.
Debatendo: Mantenha-os no assunto. Não deixe que ignorem seus contrapontos e mudem o assunto para você. São mestres nisso, mas se você conseguir mantê-los no assunto, começarão a expressar opiniões para as quais você poderá dizer “você tem fatos ou estatísticas que sustentem essa opinião?”.

Reacionários “Globais”

Estes estão entre os mais raivosos. Assistem aos jornais da Globo ou outras mídias de massa burguesas, leem a Veja e acreditam que isso os faz especialistas em política (do mesmo modo que acreditam que assistir ao jogo os faz técnicos e assistir à missa os faz santos). O único conhecimento político que apresentam é uma papagaiada sem base. Quando você os contrapõe, te chamam de “esquerdopata”, “comuna”, “socialista”, etc. Eles acham que todo revolucionário é um socialista que quer tirar seu dinheiro e entregar para pessoas que não merecem.
O problema: Eles não têm ideia do que estão falando. Geralmente estão repetindo coisas ditas pelo Arnaldo Jabor ou, com mais azar, pelo Olavo de Carvalho. Eles acreditam que movimentos anticapitalistas querem roubar sua liberdade (toda a liberdade que o dinheiro possa comprar), mas não compreendem o conceito de capitalismo, nem reconhecem como esses movimentos foram cruciais para que ele tivesse os direitos que têm hoje. Eles acham que o PT é comunista, e se você discorda dizem que você é um leitor da Carta Capital. Dizem que você é uma ovelha, mas esperam que você aceite cegamente tudo o que dizem, sem questionar.
Debatendo: Mantenha-se pedindo fatos e comprovações para as afirmações que fazem até que se desesperem e te chamem dos nomes já citados. Peça-os para enumerar quais os direitos que os movimentos anti-capitalistas já o roubaram (talvez eles digam que perderam o “direito de proibir a união homossexual” ou coisa do tipo, mantenha-se cobrando fatos). Eles tendem a ser violentos, então se estiver cara-a-cara, fique de olho em suas mãos.

Reacionários Cristãos

Estes reacionários são hipócritas. Eles fazem tudo em nome de Jesus, enquanto simultaneamente agem da maneira mais anticristã humanamente possível. Defendem armamento da população, são pró-militares, contrários à igualdade de direitos entre os sexos e à emancipação feminina e, principalmente, ignoram todos os trechos da bíblia que demonstram que Jesus era um personagem revolucionário (e libertário). As partes que mais esquecem são as de “amar o próximo como a si”, “não julgar” e a em que joga filhos contra pais e pais contra filhos. Porque o patriarcado não pode ser agredido, não é mesmo? Eles também acreditam que países em guerra estão assim por falta de Deus no coração, mesmo que quase a totalidade desses países seja de religião abraâmica e siga essencialmente o mesmo deus (com mais rigor!)… E eles odeiam os gays, claro.
O Problema: Eles fazem coisas horríveis em nome do Senhor. Eles acham que aqueles que discordam estão condenados ao inferno, porque são pessoas más. Eles acreditam que somos uma nação cristã, mesmo com uma influência inegável de cultos indígenas e afro-brasileiros em nossa cultura. E eles dizem defender a liberdade religiosa, mas condenam tudo o que não é cristão como “demoníaco”. Ah, eles também negam a evolução…
Debatendo: Insista na mensagem de “amor” cristão. Jesus os orientou a amar incondicionalmente e não julgar. Pergunte como eles acreditam que Cristo agiria no mundo de hoje frente à desigualdade social, e o que ele pensaria do dízimo que se paga às igrejas caça-níqueis. De qualquer forma, eles responderão com citações aleatórias e mostrarão que esse debate em específico é uma perda de tempo.

Reacionários “Contra a Corrupção”

Aqui estão os coleguinhas que vão aos protestos de branco, com a cara pintada de verde e amarelo, cantando o Hino Nacional ou a clássica do Geraldo Vandré. Eles querem um movimento bonito, higiênico, pacífico e, principalmente, passivo. Querem ir às ruas pra protestar por seus direitos, mas não conhecem seus direitos e menos ainda seus deveres. Acham que a polícia tem que sentar a borracha nos “vândalos” do Black Bloc, que eles nem sabem o que é. Dizem que a culpa do tráfico é do usuário, gostam de filmes como Tropa de Elite (alguns até citam Capitão Nascimento). O mais importante: defendem o fim da corrupção. Que corrupção? Não sabem. Mas quando dá preguiça de “vem pra rua”, eles ficam de “luto”.
O Problema: Esses indivíduos defendem pautas vazias. Aliás, eles querem enfiar essas pautas em qualquer lugar onde estejam, dizendo que as pessoas precisam ter foco (nas pautas vazias). São a pior praga dentro da Anonymous. Reproduzem-se como coelhos. Vão tentar levar qualquer debate para o eixo PT/PSDB, vão criminalizar movimentos sociais populares, mas vão defender reforma tributária (ignorando a transferência do poder do estado para o setor privado) e a reforma política (mesmo sem especificar o que é isso, significando, na prática, nada).
Debatendo: Peça que ele defina os conceitos que apresenta. Pergunte a que corrupção se refere, que reforma pretende. A melhor arma contra estes é a história. Tudo aquilo que eles almejam, na prática, até hoje foi conquistado com as práticas que eles condenam. Quando ironizarem o assistencialismo, traga estudos acadêmicos sobre seus resultados e deixe claro que esse é um pilar do capitalismo, para que ele mesmo não desabe em crise. Quando ele disser que o usuário financia o tráfico, pergunte se ele concorda que quem usa gasolina não é igualmente culpado pela guerra por petróleo no Oriente Médio.

Reacionários Xenófobos

Nessa categoria, incluem-se os que pensam que São Paulo é a locomotiva do Brasil, que defendem que o Sul se separe para formar um país de melhor IDH, que chamam tudo o que vive nas regiões Norte e Nordeste de “baiano” e os culpam pela crise urbana no Sudeste e, claro, as patricinhas e os mauricinhos que vão a aeroportos vaiar médicos cubanos. Esse tipo é complicado, porque é do tipo que tem medo de perder o pouquinho que tem pra “esses pobres”.
O Problema: Eles vão defender a superioridade de suas categorias. São meritocratas quando lhes convém, acham que um diploma te faz uma pessoa mais íntegra, mas colam em provas e compram carteiras de motorista. Eles acreditam que o êxodo rural encheu a cidade de gente “vagabunda”, mas dependem do serviço desses “vagabundos” até pra fazer um almoço. Quando você os contrariar, vão tentar te associar ao crime organizado ou ao terrorismo. E também vão dizer que “se usa chinelo não é índio”.
Debatendo: Desse grau pra baixo vai ficar difícil debater, já avisamos. Felizmente, as estatísticas atuam contra esses reacionários, assim como a política internacional, mas essas são esferas que eles não compreendem. E como eles também nunca “sentiram na pele” os problemas sociais, você vai ter que usar metáforas. Só não faça ironias com “Playstation” e “iPhone”, porque isso os deixa fora de controle.

Reacionários Racistas e Sexistas

Esses vêm quase por último por uma razão. Sabemos que racismo e sexismo não são exclusividade de reacionários. Sofremos muito com isso mesmo dentro dos grupos que se afirmam revolucionários. Mas essa junção funesta gera um dos piores tipos: o fascistóide. Eles não odeiam a Dilma pelas contradições de seu governo, mas essencialmente porque ela é mulher. Eles acreditam que liberdade de expressão é poder praticar ódio e discriminação sem sofrer consequências. Eles acreditam numa diferença “natural” fantasiosa entre homens e mulheres, entre brancos e negros, e entre heterossexuais e homossexuais que está muito distante da realidade científica. E por conta disso eles são máquinas de agressão e opressão, ainda que alguns de modo inconsciente.
O Problema: Eles são preconceituosos e discriminadores, mas quando você apontar isso, alegarão perseguição. Eles vão dizer que o dia da consciência negra e as cotas nas universidades é que são racistas, porque desprezam a história e a cultura do país, se pautando num silogismo pobre. Eles não sabem diferenciar a violência do opressor e a resistência do oprimido. Acima de tudo, eles não conseguem compreender porque as pessoas os chamam de machistas, racistas ou homofóbicos quando eles abriram um discurso com “eu tenho vários amigos gays, mas…” ou “eu respeito muito minha mulher e minhas filhas, mas…”. Pra finalizar, eles não entendem que democracia é o governo do povo. Todo o povo, e não só a maioria do povo.
Debatendo: Não se debate com fascistóides. Se os expurga. Você teria mais trabalho tentando convencer algum desses xucros sem educação do que são direitos humanos do que se tentasse convencer uma macieira a dar laranjas.

Reacionários Mal Educados

Esses reacionários são reacionários porque eles acham descolado. Eles têm amigos economistas, ou assistiram a uma meia dúzia de vídeos do Olavinho ou do Dâniel Fraga, então eles pensam que sabem do que estão falando. Eles têm uma gramática horrível, ignoram pontuações e têm uma tendência a escrever tudo em caixa alta (caps lock) e com vários pontos de exclamação, ASSIM!!! ACORDA BRASIL!!! ESSE É O PAÍS QUE VAI SEDIAR A COPA!!!???!!!. Irritante, não? Eles também esperam que você acredite em tudo o que eles dizem, só porque estão dizendo. E também citam vídeos de opinião quando você pede fontes que comprovem o que eles dizem.
O Problema: É difícil categorizar problemas num debate de ogros que não sabem se comunicar. Eles mal compreendem qual é seu posicionamento político, só repetem o que ouviram de um amigo ou viram num vídeo. Eventualmente, publicarão essas correntes mentirosas, com casos de um “famoso professor” que nunca existiu, ou do “grande economista” que nunca disse aquilo. Eles são 100% cegos aos fatos e só dão atenção ao que reforça suas crenças irracionais.
Debatendo: Não há lógica ou fatos que os vá convencer de nada. Você pode ser doutor na área, eles vão inventar uma desculpa do tipo “seu professor de história mentiu pra você” ou “esquerda e direita é coisa do passado”. No lugar de discutir com eles, tente explicar álgebra ao seu animal de estimação. Há mais chances de sucesso.

Esperamos que esse informativo lhes seja útil, ou ao menos que tenha servido como um desabafo coletivo. Lembrem-se disso antes de entrar em debates incansáveis nas redes sociais, pois nem sempre vale a pena. E saiba que esses grupos de reacionários reproduzem entre si e evoluem, como pokémons, então você poderá encontrar híbridos ou formas muito extremas de qualquer um deles.

Este artigo da @AnonymousFUEL foi inspirado no artigo “The 7 Types Of Republicans and How To Debate With Them”, de Matthew Desmond, na AddictingInfo.

http://www.addictinginfo.org/2013/08/01/the-seven-types-of-republicans-and-how-to-debate-them/



sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sininho n’O Globo, ou, Como Construir um Inimigo Público



Por Sergio Martins


Há muito não se vê tantas entidades comprometidas com os direitos civis – OAB, Justiça Global, Tortura Nunca Mais, Anistia Internacional, entre outras, além de diversos partidos políticos – num uníssono tão afinado quanto o que vem condenando o inquérito que levou a prisão de dezenas de ativistas no Rio de Janeiro. Desde gravações telefônicas inconclusivas até acusações espúrias – uma das “evidências” que pesa contra a advogada Eloisa Samy é o fato dela, uma militante de direitos humanos, não cobrar honorários –, a inconsistência jurídica do inquérito parece cada dia mais evidente. Mas como explicar a motivação e a eficácia de um documento produzido nesses moldes? A resposta, como foi dito em alto e bom som no ato de repúdio às prisões realizado no dia 22 de julho na OAB/RJ, é que o inquérito já nasce pré-julgado. Para compreender melhor esse processo, nada mais instrutivo do que seguir o rastro daquela parece ter se tornado, aos olhos da grande imprensa, a inimiga pública número um: a ativista Elisa Quadros, mais conhecida como Sininho.

Para dar um foco mais estreito ao trabalho, atenhamo-nos àquele que parece ser o veículo mais obcecado pela figura de Sininho, o jornal O Globo. A primeira aparição de Sininho nas páginas do jornal foi na famigerada capa dos “70 vândalos”, de 17 de outubro 2013, a mesma que rendeu do editor-executivo Pedro Dória elogios à equipe por “revelar personagens”. Lá ela era “Sininho do barulho”. Nas matérias relacionadas à esta manchete, as evidências contra Sininho são o fato dela ter declarado que “vive na rua” e ter, em sua página de Facebook, um símbolo anarquista (a simpatia política, no caso, é o crime). Ainda assim, um depoimento de outra ativista refuta a ideia de que Sininho seja líder do que quer que seja, reiterando que “o movimento não tem líderes.”

O começo da construção do personagem é mais espaçado. Em 25 de outubro, o jornal fotografa Sininho falando para professores em greve. Sua aparição seguinte é mais adiante, em fevereiro de 2014, agora como personagem do conto de terceiros: é a história do advogado Jonas Tadeu, que diz ter ouvido de Sininho um relato sobre as “ligações” entre Fábio Raposo e Marcelo Freixo (para os que não lembram, a manchete do site G1 – também das Organizações Globo – a esse respeito é antológica: “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado estadual Marcelo Freixo”). Em declaração ao jornal, no dia 10, Sininho nega ter sido fonte das declarações e afirma inclusive que sempre repudiou a violência, mesmo como tática de protesto. Nas matérias seguintes, no entanto, seu nome segue flutuando, embora fique claro para o leitor que a acusação real contra ela é, no máximo, a de intermediar apoio jurídico a presos em protestos.

Com a morte do cinegrafista Santiago Andrade, o tom das matérias se inflama. No dia 13, Sininho aparece num box de “perfis”, dentro de uma série de reportagens intitulada “Ataque à Liberdade de Expressão”, na companhia de Jonas Tadeu e Fábio Raposo. O “perfil”, escrito por Elelnice Bottari, vem com o título: “Com nome de fada, mas fama de encrenqueira” – uma reedição do “Sininho do barulho”. Apesar de reconhecer que pouco se sabe da vida da ativista antes das manifestações, a autora afirma que o discurso de Sininho mudou e a retrata como alguém que inicialmente “pedia calma” aos black blocs com quem “caminhava junto”, mas que posteriormente conquistou liderança no Ocupa Câmara e chegou a gritar palavras de ordem e a segurar ovos para atirar contra o vereador Chiquinho Brazão (PMDB), que havia sido empurrado goela abaixo como presidente da CPI dos Ônibus numa manobra da bancada de apoio ao prefeito Eduardo Paes. Bottari diz ainda que Sininho foi presa por desacato após supostamente ter chamado de “macaco” um policial e que ela teria chamado jornalistas de “carniceiros”. Esse último ponto vem junto a uma frase sobre a morte de Santiago, como que para insinuar alguma espécie de simpatia ou concordância com o ocorrido. Logo em seguida, Bottari escreve que Sininho “arrumou mais confusão” ao ser acusada por Jonas Tadeu de ter falado da tal ligação com Freixo. Vale sublinhar: Sininho foi acusada, desmentiu a acusação dias antes, mas aparece na matéria como o sujeito da frase, isto é, como aquela que ativamente “arrumou mais confusão”.

No dia seguinte, 14 de fevereiro, entra em cena o factóide das doações de vereadores e do delegado Orlando Zaccone a manifestantes do Ocupa Câmara, sob o título “Manifestações Violentas em Xeque”. A matéria de Luiz Ernesto Magalhães abre com comentário de que mesmo após sua prisão (com os “70 vândalos”), Sininho continuou “circulando com desenvoltura” nos salões da Câmara de Vereadores. A própria matéria reconhece que a finalidade das doações era uma festa de Natal para a população de rua da Cinelândia, mas o título e o destaque não deixam mentir: o tom é de insinuação de que algo impróprio teria ocorrido. O ato de “dar dinheiro a manifestantes” é retratado praticamente como financiamento ao crime.

Dia 17 de fevereiro, página 2. Na coluna de Ricardo Noblat, a foto de Sininho usando um óculos da moda é contraposta à da jovem guerrilheira Dilma Roussef, também de óculos. A justaposição já diz tudo: embora o governo engrosse o discurso de criminalização das manifestações (Noblat cita inclusive uma fala de José Eduardo Cardozo a esse respeito na mesma coluna), a oposição manifesta d’O Globo faz o jogo do leitor e representa Dilma como uma radical simpática a uma versão deturpada do que seria a agenda das manifestações: a apologia da violência e o ataque à democracia. Mas vejamos o que o colunista tem a dizer sobre Sininho: 1) ela é uma black bloc (o que nesse momento já havia se tornado, graças em grande parte aos esforços do jornal e da Rede Globo, um sinônimo de criminoso); 2) ela “usa a a violência para derrubar… nem ela mesma sabe direito o quê.” – o personagem aqui já se tornou ele próprio violento, ainda que literalmente nenhuma evidência nesse sentido tenha aparecido; 3) “Suponho que Sininho e sua turma desejam ferir gravemente o regime democrático sob o qual vivemos.” – aqui, o colunista distingue Dilma de Sininho, pois esta, acusada de ser parte ativa de uma turma violenta, estaria na verdade lutando contra a democracia pela qual lutaram e sofreram Dilma e tantos outros (o fato d’O Globo ter na época defendido a ditadura e tratado os opositores desta também como uma “turma violenta” e antidemocrática parece não importar).

A moda da justaposição de imagens pega: no final da coluna de Ancelmo Góis, no dia 20 de fevereiro, uma foto de Sininho à uma de Débora Falabella, com a seguinte legenda: “Tem gente achando que Sininho, a espevitada ativista, lembra um pouco Débora Falabella. Nada contra… a talentosa atriz!”. Não é nada, não é nada, é um indício de que o foco no personagem passa pelo casting: o fato de ser mulher, jovem, bonita e aparentemente doce serve tanto para justificar jogos de palavras baratos com sua suposta periculosidade, numa preparação de terreno para que o repúdio do leitor possa tomar a forma de juízos misóginos.

Sininho aparece novamente numa matéria de 16 de abril sobre – mais uma vez – um protesto que terminou em “baderna”. Mais precisamente: “O protesto, que começou pacífico e contou com a presença de ativistas como Elisa Quadros, a Sininho, virou uma verdadeira baderna à tarde”. Qual teria sido o papel de Sininho nisso? O Globo não diz, e nem precisa, uma vez que ela já é, nessa altura do campeonato, uma “vândala” que “usa a violência” para “ferir gravemente a democracia”. Sua mera presença já é caso de página policial.

Em 14 de junho, Sininho já se encontra indiciada por incitar a violência. Na mesma notícia, é mencionado que ela também é testemunha de acusação do processo contra os PMs que plantaram rojões na mochila de um adolescente na Lapa (momento capturado num vídeo, diga-se de passagem, gravado pelo próprio O Globo). Mas esse não é o ponto de destaque: o que importa é que o personagem finalmente colou na pessoa a ponto de produzir consequências legais graves. Daí em diante, todos conhecem a novela.

Cabe a cada um tirar suas conclusões. A minha é de que o caso da construção do personagem Sininho é um exemplo de como a “jurisprudência muda” de que falou o Vladimir Safatle em uma coluna recente não é restrita aos trâmites da justiça. Seu efeito, segundo Safatle, é o da naturalização progressiva de transgressões da ordem jurídica perpetradas pelo próprio poder judiciário; meu ponto é que um processo semelhante ocorre com o valor de “fato” em narrativas de imprensa: basta repetir uma mesma suposição três ou quatro vezes para poder então abrir mão do tempo condicional e tratá-la como fato. De notícia em notícia, de página em página, disparates sem fundamento viraram suspeitas que viraram condenação pública que viraram alvo de inquérito. Os ingredientes são tóxicos: criminalização, má-fé e misoginia (isso sem nem entrar no capítulo a parte que são as colunas editoriais do jornal).

Se o inquérito em questão não prima pelo zelo à ordem legal, é porque, no fundo, não é este seu objetivo. Mais valor que a consistência jurídica tem a eficácia moral. O que é “fato” para o jornal e “evidência” para o Ministério Público (e para o juiz que acolheu em duas horas o processo de duas mil páginas), não são reconstruções do ocorrido baseadas em investigações rigorosas, mas construções ficcionais feitas sob medida para o gosto moralista de um leitor conservador informalmente alçado a júri popular. Em suma, o que está correndo em sigilo de justiça é só uma parte do inquérito. Uma outra, talvez a mais importante, vem correndo a olhos vistos, na página dos jornais, desde junho do ano passado.




quinta-feira, 24 de julho de 2014

Os 6 motivos pelos quais o Brasil também é culpado pelo massacre em Gaza



Por Thiago Ávila

Com pouco mais de uma semana do início dos ataques de Israel ao povo palestino e com ameaças reais de uma escalada da agressão para os países vizinhos, vemos aumentar o número de pessoas em nosso país lamentando à distância este conflito com profundas raízes históricas. Grande parte destas lamentações são acompanhadas de um grande sentimento de impotência, como se não tivéssemos qualquer relação ou poder de influenciar o que acontece na Faixa de Gaza, na Cisjordânia e nos territórios palestinos já tomados por Israel. Não é verdade. Nós temos, sim, parte da responsabilidade, assim como temos real possibilidade de influenciar nos rumos da história daqueles povos. Eis o porquê:

1. Desde a década de 1990 o motor da economia do estado sionista de Israel é o complexo industrial militar (indústria de armas). Como bem retratado por Naomi Klein, jornalista reconhecida internacionalmente, em seu livro “A Doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre”, hoje 70% da produção de armas israelenses são destinadas à exportação. Segundo a autora, Israel se coloca hoje no mundo como “uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”, utilizando de suas próprias guerras para demonstrar a eficácia de seus produtos “testados em campo”. Para compreender isto basta lembrar a guerra de 2006, na qual Israel não apenas massacrou o povo palestino, mas também invadiu o Líbano (sendo derrotado pelo Hezbollah ao sul do rio Litani) e, apesar da derrota militar, a economia israelense cresceu significativamente (8%). A guerra realmente é um grande negócio para Israel e para a economia capitalista. O Brasil, que ocupa militarmente o Haiti (e lá comete grandes atrocidades) e que consome armas dos países que violam os Direitos Humanos ao redor do mundo, não é inocente nesta história.

2. O governo brasileiro faz propaganda ao redor do mundo manifestando sua solidariedade ao povo palestino; no entanto, mantém amplas relações com Israel. Se alguns países expulsaram embaixadores e realizam boicotes ao estado sionista após a guerra de 2006, onde Israel utilizou armas proibidas pela ONU como o “fósforo branco”, o Brasil fez exatamente o contrário: intermediou e assinou um Acordo de Livre Comércio entre Israel e o Mercosul, aumentando nossa cumplicidade com os crimes de lesa-humanidade cometidos por este país. Enquanto os refugiados palestinos aqui no país (utilizados como moeda de troca pela diplomacia brasileira) são tratados com inegável descaso, o Brasil fortalece a cada dia acordos comerciais e militares com o Estado sionista. Para os palestinos uma solidariedade institucional baseada em vazios discursos de presidentes e assistencialismo panfletário enquanto, para Israel, acordos comerciais e militares significativos e a compra de equipamentos de guerra testados no povo palestino. De que lado o Brasil está?

3. Entre todas as aquisições brasileiras da indústria bélica israelense, uma ocupa lugar de destaque: um DRONE (veículo aéreo não-tripulado) de R$ 18 milhões fabricado pela Elbit Systems. É importante ressaltar que não se trata de qualquer empresa. A fabricante do DRONE é uma das 12 empresas que participaram da construção do Muro da Vergonha, que mantém a população da Faixa de Gaza em uma prisão sem teto e caracteriza um dos maiores crimes de lesa-humanidade de nossos tempos. A compra do DRONE não foi um incidente excepcional, pois recentemente a mesma empresa ganhou dois contratos milionários com o Exército Brasileiro através de sua subsidiária, a Ares Aeroespacial. A participação desta empresa na construção do Muro da Vergonha não é um fato desconhecido pelo governo brasileiro, pois esta informação consta no próprio portfolio de apresentação e em todos os relatórios de investidores da empresa. O que são poucas declarações de solidariedade ao povo palestino perto disso?

4. O Governo do Estado do Rio de Janeiro, individualmente, também ocupa posição de destaque, tendo comprado de Israel oito caveirões blindados, usados pelo BOPE em suas operações nas favelas cariocas. Isto significa que, além de promover o extermínio da juventude pobre e negra em nosso país, o governo do Rio de Janeiro também fornece recursos para que Israel possa aumentar as agressões aos palestinos. O Estado de São Paulo também não sai ileso, tendo comprado óculos com microcâmeras para coleta de vídeos em tempo real nas ações de repressão às manifestações populares, principalmente neste período que antecedeu a Copa do Mundo. Além do governo brasileiro, das empreiteiras, da FIFA e dos patrocinadores oficiais, o “negócio da guerra” também deve ser colocado como um dos poucos beneficiados por este megaevento e este “modelo de desenvolvimento” que causa crises sociais de grandes proporções aqui e no resto do mundo. Os governos hoje se gabam do grande legado de segurança pública que esta Copa nos deixou. Mas a que custo?

5. Parte da estratégia em todo genocídio é invisibilizar a população agredida; portanto, o lobby israelense faz de tudo para impedir que qualquer notícia que traga comoção internacional e solidariedade ao povo palestino seja veiculada na grande imprensa. Basta assistir a uma notícia do Jornal Nacional para entender: “Israel responde aos mísseis atirados por terroristas do Hamas”, ou “Tel-Aviv vive momentos de pânico com mais um alerta de míssil e interrompe uma cerimônia de casamento”. Quase nada se fala das centenas de mortos e milhares de feridos palestinos (até o momento não ocorreu a morte de um israelense sequer). Os grandes veículos de comunicação brasileiros são coniventes com o massacre e as mídias alternativas são o único local de difusão destas tristes imagens que o mundo, infelizmente, precisa conhecer para que parem de acontecer cotidianamente. Lembrem-se sempre que a Guerra do Vietnã só foi interrompida após a opinião pública ver tantas imagens fortes a ponto de se voltar contra os Estados Unidos exigindo o fim da guerra. Depois de lá, a grande imprensa nunca mais cobriu uma guerra mostrando seu lado mais triste e mais brutal. É sempre uma cobertura que ressalta a tecnologia, as declarações de chefes de Estado, ou até escombros à distância. Pense nisso cada vez que você censurar um amigo nas redes sociais por postar fotos duras de cadáveres ou feridos adultos e crianças. O que, para você, é uma imagem feia e triste, para muitas pessoas pode ser também o alerta que as faça reconhecer uma situação grave de violação e agir em prol da paz com justiça social ao redor do mundo.

6. Diante da incapacidade da ONU e da comunidade internacional em frear as agressões israelenses, cidadãos e nações do mundo estão respondendo ao chamado do povo palestino feito em 2005 pedindo o boicote a Israel. E este boicote, que envolve o não-consumo, desinvestimento e sanções está surtindo efeitos, com grandes fundos de pensão europeus anunciando o desinvestimento em Israel e cada vez mais pessoas ao redor do mundo se somando a esta iniciativa. Para quem acredita que esta ferramenta não é capaz de realizar mudanças, basta lembrar o caso da África do Sul, onde o boicote mundial, aliado à intensa mobilização interna e diversas ações internacionalistas neste país e em países vizinhos, foi fundamental para a queda formal do apartheid. Assim como no passado, hoje temos uma possibilidade real de frear o sionismo israelense.

É dever de toda e qualquer pessoa que deseja a paz para o povo palestino se integrar ao boicote multitemático a este país (econômico, cultural, esportivo) e, principalmente, exigir dos governos de seus países o fim de todos os acordos militares e comerciais com Israel. Nós, brasileiros e brasileiras que lutamos tão arduamente contra as violações em nosso país, não podemos nos calar diante do massacre ao povo palestino, sob pena de não apenas carregarmos o fardo de termos hesitado em um momento onde tínhamos a real possibilidade de promover a paz, mas também sabermos que fomos cúmplices de toda esta matança ao povo palestino que entrará para a história como um dos mais tristes momentos de nossa breve passagem pela Terra. Não é deste lado da história que queremos estar.

“A causa palestina não é a causa do povo palestino somente, e sim a causa de cada revolucionário, onde quer que esteja, por ser a causa das massas exploradas e oprimidas do nosso tempo”, Ghassan Kanafani (escritor e militante palestino da FPLP assassinado pelo Mossad em 1972).

Governo brasileiro, rompa relações e todos os acordos comerciais e militares com Israel imediatamente! Não queremos ser cúmplices do massacre!

BOICOTE ISRAEL!


Fonte: Carta Maior

quarta-feira, 23 de julho de 2014

“Eu questiono porque não basta ser”, Mano Brown

Foto- Daryan Dornelles

Entrevista exclusiva de Mano Brown, líder do Racionais MC’s

Endrigo Chiri Braz

CULT: Qual sua memória musical mais antiga, o primeiro som que lembra que bateu forte quando era moleque?

MANO BROWN: Acho que foi aquele som que eu fiz “Vida Loka − Parte 1” [musica do disco Nada como um dia após o outro dia, de 2002] em cima, do Liverpool Express, “You are my love”. É um som que lembro que gostei há bastante tempo.

Que idade você tinha?

Tinha uns seis anos, estava no colégio interno, por isso que eu lembrei.

E que tipo de som rolava na sua casa? Era uma casa musical?

Na minha casa não tinha aparelho de som nessa fase, e eu estava no colégio interno. Quando voltei pra casa, minha mãe tinha um dois em um, era AM e toca-discos, pequenininho. Faz tempo isso aí… nos anos 70 a gente não tinha quase nada.

Com quantos anos você voltou pra casa?

Com oito e meio, quase nove.

E que extrato tira desse período de colégio interno?

Eu tenho TOC de arrumação até hoje [risos]. Se o tênis estiver torto, tenho que arrumar. A roupa, a toalha, a roupa de cama, tem que estar tudo dobrado. É herança de lá isso aí.

Por que o Pedro Paulo decidiu virar rapper?

Não foi bem uma decisão, começou como uma brincadeira. Eu estava sem fazer nada, desempregado e tal, e não tinha nada que chamasse a atenção de ninguém também. Quando começou essa onda de rap, nos bailes, a gente começou a ouvir falar nas rádios, e ouvi falar que estava tendo um concurso, mas não participei. Só fui participar do terceiro concurso, quando fiz minha primeira letra. Era uma grande brincadeira, coisa de festa, de moleque. Uma coisa de você poder subir no palco e chamar a atenção das minas, no máximo; não tinha uma pretensão de “ah, vou fazer a revolução”. Com dezessete pra dezoito anos você não pensa nessas coisas, não naquela época.

Quanto tempo depois surgiu o Mano Brown pra valer?

Não muito depois… Eu também não tinha muito a perder, e nem tinha pra onde ir, certo? Com a terceira música que fiz ganhei um concurso no salão, e despertou uma certa cobiça a partir daí, de pensar um pouco maior. Ganhar o concurso era pouca coisa mas também não era nada. Depois a gente estava na São Bento [estação do metrô de São Paulo que foi berço do hip hop brasileiro no final dos anos 1980] e fomos convidado pra entrar no lugar de um cara que tinha faltado na gravação de uma fita demo. Eu cantava sempre no latão da São Bento, comecei a fazer fama ali, aí o cara da demo chegou perguntando: “Quem são os caras do Capão que rimam pra caralho?”. Aí apontaram pra mim e foi assim que aconteceu. A gente foi num apartamento no Edifício Copan e chegando lá estavam o KL Jay, o Edi Rock, Os Gêmeos, que eram uma dupla de rap [famosa dupla de grafiteiros paulistanos], e a gente gravou aquela demo, que não foi pra frente. Na época eu cantava com o Ice Blue, e o Edi Rock e o KL Jay eram uma outra dupla.

E sua mãe? No começo ela gostava?

Escondi da minha mãe um bom tempo. Aí passou um tempão, apareci em casa com um disco gravado e mostrei pra ela, que nem sabia que eu cantava.

Você já tinha parado de estudar nessa época?

Já tinha. Fazia tempo.

Então não é que você estava trocando uma coisa pela outra…

É. Eu podia estar fazendo coisa errada, né? Daí eu fui gravar música. Quando minha mãe viu minha cara no disco, ela não acreditou.

Você achava que o Racionais chegaria onde está ou foi muito além?

Foi além, mas eu sabia que ia ser foda. Eu sabia como ia cantar cada ideia, tal batida, como ia parecer o som, só não sabia que ia ficar do tamanho que ficou. Eu sabia que quando a gente chegasse com aquela ideia, seríamos os primeiros, e que quando as pessoas parassem pra ouvir, não iam largar mais. E foi assim, mas não que nem é hoje, que realmente às vezes me assusta. Não esperava mesmo… mas lá atrás, em 90, sabia que não tinha ninguém como nós no Brasil. A gente não era nada mas a gente era diferente de todo mundo. Eu sabia que se levasse a sério, se desse continuidade, poderia ser alguma coisa, tinha essa noção.

E quanto tempo depois começou a ganhar dinheiro?

Eu vi dinheiro mesmo com “Homem na estrada”. Antes disso era couro de rato, trocando moedas. Os carros quebravam pra caralho, tudo o que ganhava, gastava. E o Brasil era difícil também. A gravadora era pequena, a gente vivia com problema financeiro sério, que nem o Santos [Futebol Clube, time do coração de Brown]. Quando lançamos “Homem na estrada” e “Fim de semana no parque” [do disco Raio-X Brasil, de 1993] que realmente virou outra coisa. Foi quando a gente mudou os temas, parei de falar só do movimento negro pra falar mais da periferia. Aí já estava perto do que calculei. Não onde está hoje, mas “Homem na estrada” estava perto do que eu calculei naquela época. Eu morava num barraquinho aqui nessa rua, numa casinha de um cômodo e meio. Um dia saí na rua e estava tocando “Fim de semana no parque” em três casas diferentes. Minha música… na minha rua… Alguma coisa estava errada, entendeu, ou estava começando a ficar certa. Ali cresceu.

E como vocês estão planejando comemorar os vinte e cinco anos do Racionais?

Eu não pensava em comemorar nada, mas também sou obrigado a reconhecer que vinte e cinco anos são vinte e cinco anos; vinte e seis já é outra fita, não é a mesma coisa. Então vamos comemorar, tá bom.

O disco novo do Racionais sai este ano ainda?

Eu tenho muita música fora do Racionais, e talvez tenha que apelar para esse arquivo para colocar no disco do grupo. Tem bastante música para o meu disco solo, algumas servem para o Racionais, mas vai contrariar muito a lógica.

Por quê? Seu disco solo está indo por outra linha?

Não quero ficar chato, morou?

Tem previsão de lançamento?

O Racionais está na frente, tem prioridade no momento. E o Racionais exige um pouco mais, vai precisar dar uma atenção.

Os outros integrantes do grupo também têm seus projetos solos. É bom pro Racionais em que sentido?

Fortalece o individual, fortalece a pessoa. E grupo é uma parada ótima para você esconder falhas também. Todo mundo é capaz de se sustentar fora do grupo. É bom isso, essa independência dos quatro.

E como está o esquema de produção hoje? Está mais fácil trabalhar, produzir, gravar, fazer show desde a abertura da Boogie Naipe Produções [escritório próprio criado em 2009 para cuidar da produção do grupo]?

Está mais organizado. Mais fácil não, a luta é a mesma, mas com mais organização você consegue enfrentar os adversários mais fortes. Os resultados são melhores. Por exemplo, a gente fez duas festas no Rio de Janeiro, na Fundição Progresso, com cinco mil pessoas cada. Mas a gente podia se foder também, podia não ir ninguém, mil pessoas só, fracasso. E fracassar no Rio decreta o fim, porque é dali para frente. Igual a São Paulo. São cidades formadoras de opinião, e só com organização você consegue fazer isso acontecer. O Racionais foi vítima de muita desorganização ao longo dos anos.

A ideia de centralizar é justamente pra não passar nervoso na mão dos outros?

Para organizar, na verdade. É um trabalho, eu gostaria que fosse aquela liberdade do começo, mas na verdade os tempos mudaram. Tem muita gente que espera por mim e espera de mim.

Isso te cansa? Às vezes queria ser só o Pedro Paulo?

Queria te responder com sinceridade, deixa eu pensar [pausa]. Às vezes sim, mas o Pedro Paulo talvez não estivesse vivo se não fosse o rap, então também não posso ter essa ingratidão. O Pedro Paulo está vivo até hoje por causa de rap. Quando eu conheci o rap, o Pedro Paulo estava fadado a morrer. E na verdade o Pedro Paulo nunca deixou de existir, mas ele poderia ter morrido em 1988.

No sentido de “era o rap ou o crime”?

É, exatamente. Não tinha para onde correr. O crime já estava virando uma coisa normal – meus amigos faziam parte daquilo. E, mano, se você vê os amigos em quem confia no barato, você acaba entrando. Se a primeira dá certo, você quer ir na segunda e aí você vai ficando frio, desacreditado, essa é a circunstância.

Você está mais confortável na posição de referência pra molecada da periferia…

Tem outras referências. Eu posso ser uma, mas tem muitas outras. Mais de cem, mil.

Isso te incomodava antes. Está mais tranquilo hoje em dia?

Não é que me incomodava, eu não gosto é da cegueira. Você tem que estar com a visão 3D, entendeu? Todas aquelas ideias do começo dos anos 1990 foram muito importantes, elas são importantes, mas dali pra frente é cada um com seus problemas. Não pode ter esse negócio de grupo de rap ser ONG. A responsabilidade é de todos. Cada um tem que ter responsabilidade sobre si, então se a gente ficar nessa ideia de paternalismo de novo, “ah, vem que eu te ajudo, te dou cesta básica, te dou leite…”, isso aí é o que já se faz. Isso está errado, entendeu? Tira as pessoas da condição de igualdade… A condição de igual, de se sentir igual, é que traz liberdade às pessoas. Mesmo que esteja duro, não posso me sentir menos do que você porque me deu um quilo de açúcar, que merda… Não tinha que estar ninguém dando açúcar pra ninguém. É o mínimo que tinha que ter.

Seu processo de composição mudou nesses vinte e cinco anos?

Eu componho aqui, com vinte caras fumando maconha e conversando junto. Já compus muita música também na cama da minha casa, sozinho. Componho de qualquer forma.

Mesmo com bagunça?

Bagunça vira música para mim, vira letra.

Você está satisfeito com as coisas que conquistou até agora?

Eu não sei o que eu conquistei. Eu sei o que eu fiz, eu estou bem, não me arrependo de nada não.

E no profissional?

No profissional dava para ter crescido mais, dado um passo além, mas era tudo muito atrasado, muito difícil aqui no Brasil. Era tudo muito turvo. Não tinha uma grande proposta que me confortasse. Tudo o que foi me oferecido ao longo da minha carreira foi perigoso. Não vinha dinheiro de uma fonte boa, tudo de fonte que eu não queria acumular.

Agora seria uma boa hora para…

Ó parceiro, vou te falar, hoje em dia já não penso nisso. Penso que eu preciso trabalhar, certo? Trabalhando eu como, bebo, durmo, visto e já era. Eu não penso na carga, no símbolo, no status de ficar rico. Mas sempre existiu essa possibilidade, e se eu não estou é porque não dei a atenção devida. Houve condições, mas não era aquele dinheiro que me orgulharia de ter ganhado. Eu prefiro vender sapatos, vender calça jeans, vender pão.

Trabalhar com coisas mais palpáveis?

Coisas que não sejam filosóficas, nem ideológicas.

Viver de arte é sofrido?

Não deveria ser. Por exemplo, se eu fosse um sambista, viveria de arte sem muita dor de cabeça, arte pela arte, e é muito respeitável por sinal, tá ligado? Como é o Fundo de Quintal, o Zeca [Pagodinho], o Revelação. São muito respeitáveis e não vivem nessa rota de colisão com filosofia. Eles vivem filosofias próprias, não deixaram que ninguém se apoderasse deles. Eles não quiseram ser a luz da humanidade. Houve ali um momento que foi colocado que o rap que tinha que ser a luz da quebrada, a luz da periferia, a luz dos caras. Uma coisa que veio de fora para dentro, que não foi denominada por nós. A mídia falou, a imprensa falou, os fãs falaram. Eu sempre gostei mais de ser o bandido do que ser o líder nas minhas músicas. Mais como um ombro do que como um mentor. Nada de ser mentor, sempre quis ser ombro, braço. Sempre quis ser braço.

Mano Brown durante o show do Racionais MC's na Virada Cultural de 2013 (Foto: Mumu Silva)
Mano Brown durante o show do Racionais MC’s na Virada Cultural de 2013 (Foto: Mumu Silva)

Você acha que isso podou o rap de certa forma, tirou a liberdade de experimentar outras coisas?

Sim, mas politicamente era prioridade na época. O rap foi usado, e o Racionais de certa forma também foram.

Com todo o cuidado que vocês tinham?

É, fomos usados pela revolução, pela causa, a gente se deixou usar, entende?

E os frutos disso nem sempre são bons?

O fruto disso é a oposição, hoje aparece uns caras dizendo que a gente é do governo, porque a gente participou daquilo que era uma prioridade na época. Hoje em dia eu não sei se é prioridade. Não sei se é prioridade reeleger o PT. Não é uma coisa que a gente está ali de corpo e alma, mas na época era. Faça ou morra, tá ligado? Era isso, questão de prioridade, de praticidade. Era necessário pôr alguém lá que falasse algumas coisas que a gente pensava, e esse alguém era o Lula.

E agora?

Agora somos acusados de ser “governo”. Eu já sabia que isso ia acontecer. Lógico que não esperava que viesse do Lobão, que era um cara que estava do mesmo lado naquela época. Eu não sei o que revoltou ele, com certeza não fui eu, não devo nada pra ele. Não faço parte do governo. Eu participei porque era prioridade para o povo negro que o Lula ganhasse.

E agora não é mais prioridade o PT ganhar?

Não, já não é prioridade. Eu acho que as pessoas têm o direito de questionar mesmo. Eu não vou me deixar cair nessa, de defender antigas filosofias. Eu acho que filosofia existe para ser questionada.

O Lula foi bom nos oito anos que ele…

Foi muito bom.

Por quê?

Eu acho que o mundo precisava disso, e o Brasil experimentou isso. O Obama ganhou lá; e o Lula tinha ganhado aqui, certo? Depois uma mulher foi presidente. Mudanças drásticas! Num país machista uma mulher ganhar. Num país racista um negro ganhar. Aí o Lula, que era um cara limitado, semianalfabeto − tinha essa lenda que o Lula era analfabeto − ganhou. Era impossível o Lula ganhar, entendeu? Ele tinha perdido três eleições direto. Eu participei de todas. Era prioridade o Lula ganhar porque em 2002 era outro Brasil. Era prioridade. Tinha que ganhar. Era vital.

E qual deveria ser nossa prioridade política agora? Isto é, a do povo que quer mudança.

O povo tem que tomar cuidado para não ser manipulado nesse ímpeto político. Querer mudança é muito importante, mas tem que tomar cuidado para não ser manipulado. Porque, realmente, o povo quando quer, muda mesmo. A lição que eu tirei dos protestos do ano passado foi a que existe um povo. Existe um perigo, que pode realmente invadir Brasília. Pode acontecer. Era uma lenda que você imaginava rolar na Argentina, mas no Brasil nunca. E o Brasil mostrou que se quiser, faz. Então é bom todos ficarem bem espertos com isso. Mas tem que tomar cuidado para o povo não ser manipulado, tirar um do cargo pra colocar outro no lugar, virar massa de manobra. Como o Racionais também pode ser, se nos deixarmos ser, entendeu?

Cada vez mais esportistas e artistas estão indo pra Brasília, se envolvendo na atuação política direta. Acha que é um caminho possível ou existem outros interesses envolvidos, como dinheiro?

Eu não acredito que ninguém faça mais nada só por dinheiro. Não é só o dinheiro que conta hoje. É influência, é fazer parte. As pessoas estão lutando pra fazer parte das coisas, né? Nos dias de hoje as lentes estão viradas para essas pessoas mesmo. Então está todo mundo olhando para elas, e a informação é muito rápida. Ter um dinheiro indevido na mão é muito perigoso para qualquer um: pra rapper, pra sambista, pra jogador… Não é só o dinheiro. É estar perto. Os cara chamam de network. É o caldeirão da bruxa. É o lobby, a antiga panela. Eu tenho um pouco de receio disso. Nunca quis estar perto do governo por isso. Fui chamado para muitas reuniões do governo e nunca fui em nenhuma. Não foi pra não se misturar mesmo… É que meu lugar não é lá, entendeu? Mas eu não escondo: a gente se posicionou a favor da eleição do Lula e ficou marcado por isso. Porque o Lula ganhou, fez a diferença e muita gente não gosta do que ele fez. Esses dias eu vi na internet: “É, o Mano Brown votou na Dilma!”. Eu votei na Dilma mesmo. Eu acho que oitenta e cinco porcento da população na época votou na Dilma, mas tem quarenta porcento que vai dizer agora que não votou… Como assim?

E votaria na Dilma de novo?

Questionaria. Ouviria os que estão em volta de mim. Eu ia parar para ouvir.

Em 2007, no “Roda Viva”, você disse que a maioria já estava a favor do povo, que a periferia é a maioria. Eu queria saber de você o que é que falta ainda? Se envolver em Brasília, criar um partido político?

É fazer muito mais fora de Brasília. A sociedade civil, as pessoas, os trabalhadores, os formadores de opinião, os jornalistas, os que fazem, os que escrevem, os que emitem opiniões, que têm contato com o público, eles têm força pra fazer o que o governo não faz. Verdade reta? É isso que tem que ser feito. Todo mundo sabe da sua obrigação. Esperar do governo é ultrapassado. Eu acho que o que tem que fazer é exigir do governo, não esperar. Se a sociedade souber o que quer, dificilmente vai ser enganada. Eu acho que o brasileiro flerta com muita coisa e não sabe exatamente o que quer. O brasileiro acabou de se descobrir, está consumindo pra caralho, está vivendo um momento que nunca viveu, entende? Se a sociedade quer mesmo lutar por hospital e escola, por que não se organiza pra pressionar o governo? Por que sobra para alguns caras, alguns estudantes, reclamarem disso? Porque o restante está acomodado.

Mas às vezes não é só uma faísca que precisa para fazer o acomodado se mexer?

Ah! Mas já tiveram várias faíscas. Está tendo faísca agora. Deve ter alguém que tá com o pé na vitrine agora, em algum lugar da cidade.

Mas não gera pressão?

É, tá, mas é isso mesmo? É hospital e escola? Ou são outras coisas e os cara querem pressionar o governo pra tumultuar? Qual o setor da sociedade que está preocupado com hospital e escola mesmo?

Você sentia que as manifestações batiam aqui? Que a molecada da periferia se ligava?

Olha, foi meio confuso… A gente ficava falando sobre isso aqui, se era certo ou não, se ia participar ou não. No começo parecia ser uma coisa bem clara, depois virou de muitos interesses. Muitas insatisfações até. Isso mostrou que o governo não estava tão bem quanto a gente pensava. Mas muitos motins pré-organizados surgiram, esperando pra poder pegar essa carona, e um movimento inocente foi manipulado.

A que conclusão vocês chegaram?

Que estava sendo manipulado. Que existiu uma pureza no começo, mas tinham manipuladores também. Nunca foi fácil, né?

Mas não é melhor isso do que nada?

Lógico. Para acordar, né? Acordou os que achavam que estavam protegidos… Se o povo quiser e tiver uma boa causa, ele vai pra rua e toma. Deu para ver isso. Agora, que não seja para agradar um setor, para tirar um do governo e colocar outro que é igual no lugar dele. Você vai continuar sendo peça.

O que você está achando do pleito desse ano? Acredita em algum candidato?

Eu vou aguardar um pouco…

Conversa com seus filhos sobre isso?

Meus filhos têm opinião formada. Inclusive, acho que eles são até mais informados do que eu sobre política. Eles estudam, né? Estão sempre em contato com estudantes… E no meio que a gente vive é fácil de se alienar, então ter dois filhos estudantes, traz informações a que você não tem acesso.

Como você separa o Pedro Paulo do Mano Brown dentro de casa?

Não existe mais separação… Eles são a mesma pessoa. O Pedro Paulo sem o Mano Brown não estaria vivo, já te falei isso. Eles têm que aceitar o Mano Brown de igual. É a mesma coisa. Eu consigo viver bem esse barato aí. É suave. Eu sou um cara comum em qualquer lugar, não só dentro da minha casa. Eu tenho minha opinião formada, e a teria de qualquer forma. Eu não pago de Mano Brown pra cima de ninguém.

Como a ausência da figura paterna influenciou sua vida?

Ah, aprendi a me defender bem… e que a vida é uma guerra. Não tive quem me protegesse. Vi que eu não era perfeito mesmo, por causa disso, né? Já tinha defeito na raiz. Então eu teria que me ajeitar na vida para ser alguma coisa, para conseguir alguma coisa. Eu tinha que melhorar muito como pessoa. Sempre soube que eu tinha muito defeito.

Você acha que isso te deixou mais arisco? Ou mais ressabiado com as coisas?

Não. Nem mais ressabiado nem mais arisco. Eu não sou nem tão arisco. Eu sou destemido. E não posso dizer que sou um cara ressabiado porque já fui traído. Eu sou um cara sem medo. Não tenho medo do futuro. Não tenho nem medo de ser traído. Eu só quero fazer o que eu faço e já era. Não tenho medo de nada.

Você já pensou em procurar seu pai? Como é que é isso pra você?

O meu pai talvez nem esteja mais vivo, né? Já faz tempo. Acho que meu pai não está vivo há muitos anos.

E isso influencia na criação dos seus filhos?

Meus filhos já nasceram numa casa com pai e mãe. Pai e mãe vividos, de vida sofrida mesmo. Então a gente soube mostrar pra eles que a vida não era um mar de rosas, que é difícil. Minha casa nunca foi de luxo, de coisas caras. É uma casa comum. Se você entrar na casa de qualquer pessoa aqui, é igual. Tem televisão, geladeira, sofá. Então eles foram criados de forma bem comum mesmo. Não teve esse lance de Brown.

Mas você faz questão de deixar o canal da comunicação aberto, especialmente com seu filho?

Eu falo com meu filho do mesmo jeito que eu falo com você. De homem pra homem. Minha filha sim, eu já trato com um pouco mais de cuidado, é mulher e tal… Mas ela é bastante inteligente também. É independente. Então tá suave.

Você pensa no futuro dos seus filhos?

Meus filhos têm que fazer as próprias vidas. Não penso no futuro. Eu não projeto as vidas deles.

Mas você se preocupa com o mundo que está deixando para eles, ou isso é problema deles também?

Problema deles também. Cada um com a sua missão. Não tem essa, eu aprendi que a gente tem que criar o filho para o mundo, e não para a gente. E tem que ser forte, que nem eu sou. Tem que ser guerreiro, saber que as coisas não são fáceis. Aqui é uma guerra.

O rap é um meio machista…

Mas está melhorando…

E muitas vezes quem segura a bronca são as mães, as mulheres, não é uma contradição?

O Brasil é machista, e o rap é retrato do Brasil. Feito para o brasileiro, certo? Machista. Ponto.

E você acha que tem melhorado por quê?

Porque as mulheres estão ocupando espaço. Não é que o homem está cedendo, ele está perdendo. A mulher está avançando. Mas quem cria os caras mimados, fracos, são elas, então as mulheres têm lá sua parcela de culpa dos caras serem assim. Elas estão ocupando espaço porque eles também não estão conseguindo segurar os ímpetos das mulheres. E as mulheres estão chegando. A nova ordem, né? Mulher liberta, né? Mulher moderna. Essa liberdade que estão loucas para ter, estão começando a construir agora.

E você acha bom ou ruim?

Acho bom. Sou a favor das mulheres! Desde que o mundo é mundo o homem esteve no comando da situação. Quem sabe com as mulheres mude. Mulher é mãe, é mais apegada à vida.

Acha que está na hora do rap nacional esquecer os Estados Unidos pra trilhar um caminho mais…

Difícil… Quase impossível.

Por quê?

Porque os Estados Unidos são a torre. O mundo está globalizado, então tudo tem influência americana. Não é só o brasileiro que segue, o mundo inteiro segue. E o negro brasileiro deve muito ao negro americano. Porque quando se fala de rap, se fala de negro, e foi baseado na postura do negro americano que o negro brasileiro começou a reivindicar coisas básicas.

A música negra americana é rica, mas a música negra brasileira é tão ou…

Mais… Mas aí é que está! O poder bélico. O negro americano sempre teve aquela postura combatível, passou a ter dos anos 1960 pra frente. Então isso serviu de inspiração para os negros daqui. Foi um canal pra trazer essa ideia de periferia também, de classe. Aí sai do quesito raça e vai pra classe. É praticamente impossível separar uma coisa da outra. Aí vira uma coisa politizada. Eu nunca abri mão da liberdade da música, de fazer música livre. Nunca gostei de ter que falar disso ou daquilo. Mas que serviu, serviu.

Lá atrás, você esperava gravar com o Jorge Ben um dia?

Esperava. Era uma meta. Eu quando quero uma coisa é foda.

No começo do Racionais vocês sampleavam o Jorge Ben, e muito tempo depois você gravou com ele. Acha que os grupos de hoje estão mais conectados com outros artistas? O Emicida gravou com os sambistas Juçara Marçal e Wilson das Neves recentemente, por exemplo.

É, mas o Emicida já vem com a grife de artista que a gente não tinha. O Emicida tem essa grife de artista. O cara é reconhecido pelos outros músicos. Ele foi reconhecido muito mais rapidamente do que a gente na época.

Mas por causa de vocês também, não?

Não. Por causa dele. Tem músicos da época dele que também ouviram a gente e não deram em nada. Foi inteligência dele. A gente não deu nada pra ele. Ele que aprendeu isso. Ponto dele.

Você acha que, com a ajuda da internet, ele conseguiu mudar o jogo do rap?

Ele é um bom jogador. É um cara que sobrevive, um cara forte, inteligente.

Nesse sentido, hoje, a música é mais democrática?

Completamente. Você consegue comunicar com as pessoas, com a sua rede. Eu sempre falei que periferia é massa, e essa massa existe, desde que você não negligencie e nem ignore, eles vão estar com você. É simples assim. Eu cantei para aquele povo que não tinha acesso à internet. Ele canta para o povo que já tem acesso à internet. Sou totalmente consciente da minha situação no jogo.

Gosta do disco do Criolo? Acha que ele é um cara que…

Inteligente.

Ele ter chegado em outros ouvidos acrescenta o que para o rap?

Ele não tem que acrescentar nada para o rap. Ele tem que acrescentar para as pessoas. O rap é só uma classe e eu não sou a favor de defender classes. O rap tem que servir e não ser servido. A gente não pode esperar, por exemplo, que quando o cara do rap chega lá em cima, que ele vá olhar para baixo e começar a ajudar. Não tem nada a ver! Não pode ser assim, não deve ser isso. Tem que ser forte o bastante pra chegar lá também. Não é chegar lá em cima e olhar para baixo para resgatar. Já está no trabalho, normalmente, o resgate.

Só de chegar lá, automaticamente já…

Automaticamente já vem um bolão de gente junto com você. Você já teve que construir para chegar lá. Você não chega lá e vai começar a resgatar um por um. Não dá para chegar lá assim.

Como é que você vê a indústria fonográfica no momento?

Existe um comércio sim, só que não é só a música, certo? Você tem que ter outras coisas para oferecer às pessoas. É som e imagem. Então já não é mais o fonográfico, já é um monte de coisa, já é uma calda longa. É a musica mais a imagem, mais a roupa, mais a pessoa, mais o posicionamento dela. É um monte de coisa. Já foi a época em que você vendia o CD e bastava. Hoje não basta mais. É muito pouco. Precisa de um monte de coisa. É um trabalho mesmo.

E vocês têm pensado nisso?

Tenho vivido isso. De 2002 a 2010 passamos uma crise profunda. Deu para aprender um pouco. Teve uma crise fodida, de realmente a moeda bater no fundo da lata. Da época, né? Eu vi o rap subir de novo de 2010 pra frente. Nesses últimos quatro anos foi o grande lance. Cresceu mais do que nos últimos vinte anos que antecederam.

Por quê?

Por essa visão profissional que está sendo instaurada agora. De que é um movimento estabelecido, de que tem que ser levado a serio, de que tem que ter compromisso com horário, organização. Não é só um discurso, não é mais aquele bagulho de adolescente. Agora são homens.

E tem uma história a ser respeitada…

Qual é o maior compromisso da “revolução”, entre aspas? É mostrar envolvimento, você pôr sua inteligência dentro dela, sua mão de obra, o conhecimento que você aprendeu naquela causa. Como é que você consegue mostrar isso? Quando a sua empresa vai bem, quando você paga as pessoas direito, quando você dá emprego para mais pessoas. Aí é trabalho! Não é movimento, onde um faz e fica um monte de gente sem condições de fazer nada. Tem que dar condições das pessoas fazerem para ganharem seu dinheiro. Esse é o momento que a gente está vivendo hoje. Essa é a maior evolução. Já não é revolução do discurso, das coisas abstratas, morou? É do trabalho. Se fosse no campo, seria enxada e terra. É na cidade. É trabalho. É envolvimento. É vida, sabe? E é ideologia também.

Então a expectativa para os próximos anos é boa?

Boa. Talvez melhor para os caras do que para mim, mas vai ser boa.

Melhor para o sangue novo que está chegando?

Com menos cobrança, menos questionamento. Uma visão mais ampla, mais livre.

Você sempre se questionou muito?

Eu questiono porque não basta ser.

Mas ultimamente você está mais de boa?

De boa mesmo nunca. Eu me questiono porque é fácil você parar no tempo. Então eu tenho que estar sempre procurando ser útil, né? Você tem que conseguir fazer sua parte, saber que muito mais gente vai ser beneficiada com aquela atitude que você tomou. Não uma atitude que vai fazer bem para você, encher seu ego. Então, o “revolucionário” tem que passar a ser útil. Parar de ser mentor dos comuns. Não! Vai crescer junto.

É essa revolução interna que você está passando agora?

É interna também, mas não é uma coisa que eu mudei. Nunca achei que o movimento tinha que ser uma ONG. Houve um momento em que a ideia da ONG era prioridade, mas na melhor oportunidade, o mais rápido possível, tem que deixar de ser ONG. É questão de sobrevivência. É que nem o lance de cotas. É polêmico, mas fundamental agora. Um dia vai deixar de ser. Vai chegar o dia em que o negro não vai precisar de cotas. As pessoas vão disputar a vaga de igual para igual. Naquele momento do rap era necessário ser uma ONG. Em 1992, não em 2014.

E a revolução vem de dentro?

Vem de dentro e de fora. A revolução está em volta de você. E dentro de você. Está acontecendo. Mas se você não fizer, alguém vai fazer de qualquer forma.

Esse novo momento do rap tem relação com vocês estarem mais abertos para falar com a imprensa?

Mas quem está mais aberto a falar com a imprensa?

Nós queremos te entrevistar faz tempo… É uma vontade não só da CULT, mas de toda imprensa…

Hoje mesmo eu fui convidado para fazer uma entrevista para o Estadão. E falei não.

A postura é a mesma de sempre ou…

Eu escolho com quem quero fazer e na época que quero fazer. Quando me é conveniente, eu faço.

Pode ser útil…

Considero útil. Mas eu sou imprensa também. Se quiser soltar uma nota agora eu solto, escrita por mim mesmo. Tenho cento e vinte mil seguidores no Instagram. Tem jornal que não tem tantos assinantes.

E serve para semear ideias?

Semear ideias eu já faço há muito tempo. Tem muita gente semeando ideias, todas dignas de serem ouvidas. Tem muita gente falando o que pensa e não é só o Brown, né? Senão vira chavão. Eu virei chavão dessas ideias, de ter que falar essas coisas. “É assunto de racismo? Chama o Brown.” De todas as palestras que teve sobre racismo nos últimos anos eu corri.

Mas mesmo assim o chavão continua?

É. Tem alguns encontros que já viraram chavão. Se eu for no movimento negro pra falar dos negros para os negros é fazer o de sempre. É fazer o óbvio. E dá pra viver de óbvio também, fingindo que está fazendo. Eu não quero isso, entendeu? Que evolução tem nisso? “Solta as músicas revolucionárias aí, Brown!” É assim? Oxe! Revolução é assim? Como assim? Tá louco? Não é assim não. Revolução de 2014 é o quê? É Regina Casé, tá ligado? Melhor programa [“Esquenta!”] da televisão brasileira hoje, querendo ou não. O movimento negro vai vomitar quando ler isso. É uma pessoa que vem lutando, vem disputando, vem acompanhando e chega um momento que faz um grande programa de TV, morou? Do jeito que as pessoas são, fazendo o que elas são, vivendo o que elas são. Não tenho vergonha de ninguém ali, tenho orgulho. Eu me vejo em todos eles ali.

O disco solo funciona pra isso, pra você se libertar?

Eu sou livre! Está fodido quem quiser me aprisionar. Quando falei que vou fazer soul music, vou fazer doa a quem doer. Não estou nem aí. Eu sou rebelado. Se falar de amor é rebelião, eu tô nessa, entendeu?



Fonte: Revista Cult

terça-feira, 22 de julho de 2014

O sonho Americano agora é nosso!



Por Emma Toska


A ninguém terá surpreendido artigo publicado no New York Times em Abril passado revelando que os Americanos finalmente acordaram, beliscaram-se e descobriram que o “sonho americano” fora só sonho mesmo; que os ricos ficam cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres (e ainda têm que dividir seu quinhão com a classe média) e isso se chama capitalismo. Bem, essa parte não é seguro que entenderam, mas ao que parece o gigante de lá também acordou.

Enquanto isso, com essa confusão de gigante acordando para lá e para cá, alguns têm se dado conta de que parece que o sonho americano está no Brasil. Não se sabe bem como entrou no país: se disfarçado entre bugigangas eletrônicas, se na bagagem repatriada de algum imigrante ilegal ou enfiado no pacote de algum cosmético importado de lá por um terço do que se paga aqui – e nesse caso não se explica como escapou da alfândega ou de ser surrupiado no caminho, Deus sabe por quem. O fato é que parece mesmo que tem andado por aí o sonho americano – essa fantasia fantástica do sucesso e prosperidade acessíveis a qualquer um que trabalhe duro. Bem, essa parte do “trabalhar duro” teve que ser ligeiramente adaptada. Combina mais com o frio, labuta, seriedade, dureza mesmo. Aqui a coisa vai melhor com a malemolência, a ginga, a alegria e a malandragem. Mas com jeitinho todo mundo poderá ter seu lugar ao sol. Entenda-se bem, não “ao sol” significando “de sol a sol” – que isso nem combina bem com sonho – mas as luzes! Sim senhor, todo mundo pode ser atriz, modelo, cantor ou… Jogador de futebol. Cantor de Funk Carioca, claro, que fatura alto, ostenta e nem precisa saber cantar. E por acaso ser atriz, modelo ou jogador do Barcelona exige muito? É preciso saber alguma coisa especial… Ler, escrever bem, por exemplo? De jeito nenhum. Estrelas não aprendem, estrelas nascem. E sonho tem que ser completo, senão é delírio de otário, como o dos Americanos. Fama, sucesso, prosperidade tem que vir fácil, porque se incluir estudar ou pegar no pesado, não é sonho, é pesadelo. Exemplos não faltam. Veja-se o MC Guime que é brother do Neymar Junior, que é praticamente noivo da Bruna Marquezine, que é atriz da Globo, que escolheu para tema da sua ultima novela, o que? O “País do Futebol” de MC Guime e Emicida! Tudo a ver. Tudo se encaixa.

E quem andar por aí vai logo notar as pegadas do sonho americano brasileiro. Vai encontrar muitos como aquele rapazinho de 19 anos, um preto do subúrbio, claro, cheio de talento para ator, modelo, cantor, embora já passado um pouco para o futebol, pena! Se tudo der errado volta para a escola. Isso me garantiu. Está seguro que não tem erro. O sonho é real, tem que se acreditar, isso quem garante é o próprio Neymar, no vídeoclip dos MCs. E o que mais impressiona são os números do sonho; alucinantes: um simples boné que eu calculei não valer mais do que uns 30 reais, me disseram custar centenas de verdinhas nacionais (verdinhas… por assim dizer). A etiqueta da marca está por ali escondida, quem conhece sabe, me informou. O tênis, a camiseta, a bermuda, tudo pode valer centenas, até milhares de reais. O conceito é ostentar. Ter para ostentar, ostentar para adquirir mais. Tudo muito factível. Acreditar no impossível, essa é a manha. Qualquer um pode nascer jogador de futebol. É verdade que tem as famosas peneiras dos clubes, como me informou aquele outro de 14 anos, que já se prepara para essa fase.

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O sonho americano tem também arrebatado um batalhão de atrizes e modelos em potencial – já que sendo a vaidade o único traço distintivo da identidade nacional (aparte o futebol) – não são muitas as que parecem sonhar com o corpicho de uma jogadora de futebol, mesmo famosa e endinheirada. Além disso, futebol de mulher só empolga mesmo Sueco e Americano que não entendem muito da arte. No mais é igual fazer sexo com outra mulher, sempre vai ficar faltando um… je ne sais quoi muito essencial (com o perdão dos que apreciam). Mas fato é que encontrei por aí até gente adulta e diplomada tomada pela obsessão do descobrimento. Na modalidade brasileira de sonho americano existe este ingrediente peculiar da descoberta. É como se uma nação inteira vivesse alucinadamente procurando por uma câmera escondida, um olheiro disfarçado, um caça talentos, um Headhunter. Ninguém liga para o fato de que esses profissionais da caça não miram gente desempregada, despossuída, desocupada ou desiludida, como frequentemente acontece ser o caso. Esse elemento da descoberta é tão peculiar entre nós que quase poderíamos chamar nossa modalidade de sonho americano, “sonho brasileiro”. Mas isso seria plagio, pirataria, ou no mínimo uma cópia desautorizada do sonho dos outros. Não que copiar seja exatamente um drama aqui. Por exemplo, quem pode negar que o Love Theme de “O Poderoso Chefão” não se encaixoubeautifully na introdução do “comando de voz” de MC Smith? E mesmo que não seja humanamente possível entender a letra da musica do MC (e agradecendo aos céus não ter que encarar sua versão handwriting ), ainda é a mesma música que encantou gerações, aprimorada pelo artificioso talento das quebradas. E quem poderá afirmar que não é a beleza da composição interpretada no português tosco e ininteligível do MC que seduz o coraçãozinho dos adolescentes inebriados pela fantasia do luxo, riqueza e fama repentinos?

Haverá quem critique o sonho americano brasileiro assim retratado. Mas lá no fundo, todos tem telhado de vidro. Ou pelo menos o têm aqueles que ficam mumificados diante da TV esperando do pequeno deus Neymar… um milagre em forma de gol. Todos arrebatados por alguma modalidade de sonho americano. A mim confesso que tudo isso provoca sentimentos confusos. Não serei estilingue só desta vez, mas eu sei que seria mesmo tudo muito cômico se não fosse trágico demais. A modalidade brasileira de sonho americano não tem nada de engraçado. A piada é esvaziada pela triste certeza da auto ilusão. Porque só os anjos devem saber a combinação da loteria que leva um Neymar, dentre tantos outros possíveis, ao rico Barcelona; que faz o plágio do MC cair no gosto da multidão, ou transforma em celebridade os olhos miúdos e sem beleza da Marquezine. Aos outros, o que sobra mesmo é o caminho da escola, pelo menos assim acreditavam os antigos. Mas a escola também parece que não andar lá muito bem das pernas. A biblioteca da universidade está em greve há quase quatro meses. Quatro meses em greve! Nem dá mesmo para acreditar… Qualquer ilusão é mais tangível do que esse realismo fantástico.

O que parece é que sempre haverá Copa. E ter Copa parece ser o de menos. Pior de tudo é o Neymar. O sonho impossível da riqueza fácil em um país onde o fosso da desigualdade social é agora preenchido pela chama do consumo patológico e a ilusão de mobilidade. É o nosso sonho americano. Patrocinado pela brutalidade do dia-a-dia sem graça, sem glória e sem esperança. Pelo menos isso foi o que nos cantaram os filósofos e poetas “das quebradas”. Por falar nisso, não deixe ao menos de prestigiá-los aqui.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

12 coisas que você provavelmente nunca ouviu falar sobre o massacre ao povo palestino


1 – Apenas no primeiro dia deste novo massacre (julho de 2014) foram realizados 273 ataques aéreos (cerca de 11 por hora) em uma área com 40 km de comprimento por 12 km de largura povoada por 1,7 milhão de pessoas (uma das áreas mais densamente povoadas no mundo). Imaginem a catástrofe que é uma área do tamanho do Plano Piloto de Brasília com uma população tão grande assim e recebendo um pesado bombardeio aéreo a cada 6 minutos. A estimativa dos hospitais é que ficarão sem recursos para atender os feridos em dois dias. A eletricidade é intermitente e não existe qualquer indicativo de que Israel parará o massacre, apesar dos pedidos de diversas nações do mundo.

2 – Embora o Acordo de Paz firmado em 1948 entre a Palestina e Israel (país que estava sendo criado naquele momento) garantisse a divisão quase igualitária do território entre estes dois países (55% para Israel e 45% para a Palestina), desde 1967 (ano da Guerra dos Seis Dias), Israel ocupa ilegalmente os territórios palestinos, restringindo cada dia mais seu tamanho. Ainda no ano de 2012, Israel ocupava 78% do território e este número não para de crescer. Cada dia que Israel permanece e avança sobre os territórios palestinos ocupados é uma afronta aos Direitos Humanos e ao acordo internacional que poderia trazer finalmente paz para aquela região.

3 – A ocupação israelense é seletiva, tomando dos palestinos as terras férteis, com acesso a água e recursos naturais, inviabilizando qualquer chance de subsistência ou desenvolvimento soberano. Hoje os territórios palestinos dependem de Israel para ter acesso a tudo (água, energia, alimentação, telecomunicações etc.). Israel tomou o peixe do povo palestino e lhes proibiu de pescar.

4 – Todo tipo de ajuda humanitária precisa passar antes por Israel, que proíbe visitas de ativistas de Direitos Humanos e pessoas interessadas em diminuir a dor dos palestinos. Existem casos de ativistas que morreram tentando impedir a derrubada de casas palestinas em locais que estavam sendo invadidos por Israel. O caso de Rachel Corrie, que foi atropelada a sangue frio por um trator que destruía casas palestinas em áreas que estavam sendo tomadas por Israel, é emblemático. Em 2012, um tribunal israelense foi isentado de qualquer culpa no assassinato, alegando culpa da vítima e não do soldado que assumiu o controle do trator após o trabalhador que o operava ter se recusado a passar por cima da jovem militante.

5 – A Faixa de Gaza está no litoral do Mediterrâneo. No entanto, não é possível enviar ajuda pelo mar para o povo palestino, pois Israel proíbe. Em 2010, um corajoso grupo de onze ativistas de Direitos Humanos de diversas partes do mundo (incluindo uma vencedora do prêmio Nobel da Paz, Mairead Corrigan, uma das poucas premiadas que realmente merecia tal honra) conseguiu um navio para levar comida e materiais escolares para a Faixa de Gaza pelo mar. Embora o navio, batizado de Rachel Corrie, já tivesse sido inspecionado pela ONU e por autoridades iraquianas, com pedidos do governo irlandês para que não fosse interceptado, foi tomado violentamente por Israel, que impediu sua chegada, prendendo e deportando toda a sua tripulação. Não foi a primeira nem a última vez que isto aconteceu, envolvendo casos de assassinatos de ativistas nas invasões e tomada dos barcos.

6 – Para garantir que o povo palestino não fuja ou tente recuperar suas terras definidas pelo acordo de 1948 da ONU, Israel construiu um muro ao redor da Faixa de Gaza. É isso mesmo: a Faixa de Gaza é cercada por fora por Israel através de um muro blindado de 5 metros de altura apelidado pela comunidade internacional de “Muro da Vergonha”. Ele mantém os sobreviventes da Faixa de Gaza em uma prisão sem teto que lembra muito o Gueto de Varsóvia, local onde os judeus poloneses eram colocados pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial e lá sofriam as mais duras violações de Direitos Humanos. Infelizmente, Israel faz hoje como o povo palestino algo muito parecido com o que fez a Alemanha nazista durante o holocausto. No entanto, no caso deles, a resistência judaica no Gueto de Varsóvia é tratada como algo heróico e lembrada na história, nos livros e nos filmes. Hoje, a resistência palestina é tratada como terrorismo e usada como justificativa para mais e mais atrocidades por parte do Estado de Israel.

7 – Imagine que quando você quer viajar, ou quando avalia que as condições em seu país estão difíceis, você pode ir a outro país e retornar ao seu quando quiser. Pois esta não é uma opção para os sobreviventes da Faixa de Gaza. Pelo contrário, Israel busca de todas as formas que o povo palestino abandone seu país e vá para campos de refugiados em outros países, pois, uma vez fora, o Estado judeu não os deixa mais retornar. É uma verdadeira crise humanitária, pois milhões de famílias estão separadas há gerações, sem nenhuma perspectiva de algum dia se reunirem de volta em seu país de origem. A negação do direito de retorno é uma das grandes violações do Estado de Israel perante o povo palestino.

8 – Israel é o país que mais recebe “ajuda militar” dos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com uma média de 1,8 bilhão de dólares anuais. Desde o seu nascimento, Israel se consolidou como um dos mais poderosos e destrutivos exércitos do mundo (a quarta maior potência, segundo a maioria dos especialistas). Apesar de seu elevado potencial nuclear (e sua propensão às agressões e conflitos), Israel se recusou a assinar grande parte dos tratados internacionais que envolvem não-proliferação de armas nucleares, utilização de armas que causam danos a civis, entre outros desrespeitos aos Direitos Humanos mais básicos.

9 – Ao contrário do que dizem, não foram os árabes que “inventaram” o terrorismo como ferramenta de luta. Pelo contrário, o ataque indiscriminado a alvos civis para causar terror foi algo muito praticado pelos judeus entre 1910 e 1950. No entanto, enquanto movimentos populares, partidos políticos e grupos de resistência árabes são condenados por unanimidade pelas potências ocidentais (que também praticam suas violações de Direitos Humanos ao redor do mundo), os movimentos terroristas judaicos (tratados na história hoje como heróis) tinham total apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido com armas, logística e equipamentos. Apoio, aliás, que os governantes israelenses violadores dos Direitos Humanos atuais também possuem.

10 – O lobby israelense para invisibilizar o povo palestino e seu país é tão poderoso que conseguem manter o país ocupado quase como sendo um não-país. Tanto é que a Palestina passou 64 anos desde a criação de Israel para ser reconhecida finalmente em 2012 como “Estado observador” da ONU. E esta mera aceitação como observador foi motivo de revolta de Israel e dos Estados Unidos, que ameaçaram parar de contribuir com o orçamento da ONU após perderem a votação por 138 votos a 9 (votações parecidas com as que demandam o fim do bloqueio econômico a Cuba por parte dos Estados Unidos, até hoje não cumprido). Apesar do ínfimo avanço, a Palestina vergonhosamente ainda não foi reconhecida como membro pleno da ONU, que não tem qualquer poder para parar Israel e suas sucessivas violações dos Direitos Humanos.

11 – Israel utiliza em suas agressões militares armas que foram proibidas pela ONU como o fósforo branco. Desde 2006, quando tentou invadir o Líbano e foi derrotado pelo Hezbollah (“Partido do Povo”, em árabe), crescem as denúncias de que o exército estaria utilizando estas armas em locais densamente povoados, causando terríveis efeitos sobre a população civil.

12 – Outra prática vergonhosa e muito utilizada por Israel e outras potências imperialistas são os auto-atentados, ou seja, provocar ou simular um incidente para que ele seja utilizado como justificativa para ataques a outras nações ou grupos. Esta tática para garantir apoio popular local e internacional foi muito utilizada na história deste país. Basta lembrar do caso de 2006, onde foi divulgado que um “cidadão israelense”, Gilad Shalit, havia sido sequestrado pelos terroristas do Hamas na Faixa de Gaza, dando início à Guerra em que Israel matou milhares de civis, tomou diversos territórios palestinos na Cisjordânia e tentou tomar o Líbano! Depois não tiveram como esconder o fato de que Gilad Shalit era um soldado israelense, infiltrado no território palestino para espionar e divulgar a localização de lideranças do Hamas (partido eleito democraticamente para o governo da Faixa de Gaza) para bombardeio às suas casas posteriormente.

Espero que isto forneça a alguns elementos para ao menos desconfiar cada vez que ouvir da mídia hegemônica que “terroristas palestinos atiram míssil contra Israel” ou, “conflito entre Palestina e Israel deixa tantos mortos”. Gaza não tem exército, força aérea ou marinha. Israel é a quarta potência militar do mundo. A resistência à ocupação é permitida pelo direito internacional. A ocupação de Israel, o cerco e a punição coletiva de Gaza, não.

Nunca esqueça que o que acontece naquele lugar é um verdadeiro massacre a um povo. Uma mancha na breve história da humanidade que precisamos remover e reparar para que possamos finalmente viver em paz com justiça social e fazer desta Terra a Pátria do ser humano e da natureza.

Por Thiago Ávila, consultor internacional e membro da Executiva Nacional da Insurgência

Referências:


Consultar mapa da invasão dos territórios palestinos: http://trueslant.com/matthewsteinglass/files/2010/03/israel-palestine-map.jpg







Fonte: Insurgência