segunda-feira, 23 de junho de 2014

Repressão de protestos no Mundial de Futebol: um negócio em ascensão no Brasil

O Mundial de Futebol e os protestos relacionados a ele por todo país estão a trazer grandes lucros para a empresa com sede no Rio, Condor Tecnologias Não-letais.


Por Anna Feigenbaum


Em 12 de junho, a polícia brasileira atirou gás lacrimogéneo num grupo de 50 manifestantes não armados que bloqueavam a pista que levava até ao estádio do Mundial de Futebol em São Paulo.

No dia 15, no Rio de Janeiro, outros 200 manifestantes levaram com rios de gás lacrimogéneo e bombas de efeito moral à medida que se aproximavam do Maracanã. Armados com um arsenal de armas menos letais e aplicando técnicas importadas da equipa SWAT americana do início dos anos 2000, a polícia com acessórios anti-motim vem implantando táticas truculentas, empunhando cassetetes e disparando substâncias químicas à queima roupa. No Brasil, este tipo de ação policial nos protestos é não somente uma forma comum de controlo político, mas também um negócio crescente.

O Mundial de Futebol e os protestos relacionados a ele por todo país estão a trazer grandes lucros para a empresa com sede no Rio, Condor Tecnologias Não-letais. Como parte do farto orçamento de segurança da Copa, a Condor faturou um contrato de 22 milhões [de dólares], fornecendo gás lacrimogéneo, balas de borracha, armas de choque e granadas de luz e som à polícia e forças de segurança privada. Ao vender armamentos de controlo de protestos e ordem pública para compradores da polícia, exército militar e Nações Unidas, os negócios da Condor cresceram mais de 30% nos últimos 5 anos.

Eventos como o Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos - também sediada no Brasil em 2016 - chamam atenção para a segurança nacional. Garante a sua performance aos olhos da indústria, e recebe convites de todo o mundo para discursos, consultorias e operações de treino. Para a Condor e o mais amplo setor de segurança brasileiro, a Copa é como a fashion week: uma oportunidade de mostrar os últimos apetrechos policiais e pescar futuros compradores.

Enquanto a Condor não divulga oficialmente os detalhes dos seus lucros, de acordo com o currículo do seu diretor de marketing, a companhia tem vendas internacionais de R$50 milhões de armamento não-letais e munição. Nos últimos anos, viu crescer a sua receita em 33% como resultado de uma nova estratégia de marketing, com ferramentas de comunicação cativantes e participação em feiras de comércio. Com essas iniciativas o diretor de marketing tem garantido uma média de crescimento nas vendas em 90%, passando de 12 países para mais de 40, com novos mercados na Ásia e África.

Lucrando com os protestos no exterior

Sob banners gigantes da bandeira brasileira, a Condor possui um stand regular nas maiores feiras de exposição de segurança interna do mundo, incluindo DSEI e Milipo, onde exibe os seus produtos para governos e compradores militares. Esses novos dispositivos em exposição incluem a granada bailarina, que salta do chão para evitar que seja relançada pelos manifestantes.

A vasta gama de tecnologias de controlo de protestos da Condor é enviada para o exterior a centenas de cidades no mundo, incluindo para países com abusos dos direitos humanos documentados. Essa prática levou a uma investigação minuciosa sobre a promessa de 2010 da Condor em ser a "pioneira na disseminação do conceito não-letal no Brasil, pelo uso controlado da escalada da força, sem nenhum prejuízo aos direitos humanos."

Todas as vendas internacionais de gás lacrimogéneo no Brasil passam pelos Ministério de Relações Exteriores e Ministério da Defesa. No entanto, eles não guardam registos de como são usados e os dados das vendas não são publicitados. De acordo com o relatório da reportagem de investigação da Pública "nessa indústria, a norma é a de falta de transparência".

Apesar do uso crescente como força mortal, o "controlo de protestos" permanece de fora da Convenção de Armas Químicas, que permite o uso de gases contra civis. Como outras armas que podem ser classificadas como equipamentos policiais, esses agentes não raramente ficam à margem das restrições de vendas de armas. Isso deixa o comércio para lucro ainda menos regulado que o das indústrias farmacêuticas.

Construindo o comércio brasileiro de controlo de protestos

A escalada do Brasil ao topo das indústrias internacionais de policiamento de protestos é amplamente ligada ao resultado do relaxamento das legislações sobre venda de armas no início dos anos 2000. Em 2002, o governo brasileiro apresentou uma série de políticas flexíveis para aumentar a receita nacional. O Ministro da Defesa colaborou com Itamaraty, Ciência e Tecnologia, e outros na área da económica, de acordo com A Gazeta Mercantil de São Paulo. Frederico Aguiar, o então presidente do setor de contratações e vendas Condor disse que "existe uma consciência crescente de que um país politicamente e economicamente importante como o nosso não pode permanecer dependente de sistemas planeados e produzidos no exterior".

Paralelamente a este movimento de aumentar a produção de tecnologias policiais, mudanças foram feitas nas práticas de policiamento. De acordo com o relatório de Cirro de Barros, da Pública, em 2014 o Brasil estabeleceu à Força Nacional lidar com emergências de segurança pública, integrando um plano maior de expansão do treinamento militar para policiamento da ordem pública.

Em 2006, Condor e o governo brasileiro realizaram conjuntamente o que na época foi a maior conferência do mundo de armas não letais, catapultando eles no cenário internacional. Entre os discursos, o especialista do exército militar dos Estados Unidos coronel John B. Alexander, e também Charles "Sid" Heal, um homem central no desenvolvimento de técnicas militares para policiamento. Conhecido por ter "escrito a bíblia da SWAT", o comandante Heal prestou consultoria à Condor à medida que a companhia expandia os seus lucros procurando os mercados de policiamento de protestos e "manutenção da paz". Investigações recentes da Pública revelam um envolvimento contínuo dos Estados Unidos na militarização da polícia brasileira, com consultorias do FBI e conduzidos em centros financiados pelo Departamento de Estado americano.

Evitando a responsabilidade


Enquanto o governo brasileiro aponta aos policias para escapar da culpa, indústrias corporativas como a Condor permanecem protegidos sob os rótulos com avisos, apesar do crescente uso abusivo dos seus produtos. Recentemente as tecnologias da Condor foram repetidamente utilizadas contra protocolo para intencionalmente elevar os danos e até sistematicamente torturar pessoas na Turquia, Bahrain e Egito. "Nós sempre advertimos sobre o uso de força adequado", afirma Beni Iachan, analista de negócios sénior da Condor. Este aviso permite legalmente com que fabricantes como a Condor evitem a responsabilidade, enquanto fornecem mais e mais métodos para uma violenta "escalada de força" aos governos e os seus policias.

Enquanto a receita da Condor sobe pelo mundo, os cilindros, granadas e balas de borracha da empresa continuam a serem atirados à queima roupa nas cabeças das pessoas e membros superiores. Artefactos são disparados em espaços fechados, alcançando níveis mortais de envenenamento. E agentes químicos fora de validade com a marca Condor estão a ser usados contra civis, mais recentemente documentado nas ruas da Venezuela.

Á medida que os números de mortos e feridos durante o controlo de protestos aumenta, está-se a tornar incrivelmente difícil para companhias como a Condor abrir mão do "não letal" no seus nomes corporativos. Junto a ativistas locais, a campanha brasileira de direitos humanos "Tortura Nunca Mais", e a jornalistas de investigação da Pública estão a trabalhar no duro para aumentar a consciência do público sobre o papel dessas armas nos abusos policiais e a necessidade de maior responsabilização.

Expondo vínculos entre governo e a especulação corporativa sobre os protestos, a Pública está atualmente a mapear a influência da Condor em operações governamentais. "Nós recentemente descobrimos que Condor tem uma exclusividade de negócio fechada pela Indústria Brasileira de Defesa e Segurança", explica Bruno Fonseca, um dos repórteres de investigação da agência. "Isso significa que todas as instituições de defesa e segurança pública, como a polícia brasileira, podem comprar sem licitação".

O que permite centenas de milhares de armamentos Condor chegarem às mãos das forças de segurança brasileiras sem uma fiscalização do governo. "Condor tem exclusividade para 27 tipos de equipamentos não letais", diz Fonseca. O uso excessivo de força e desastres em regular as práticas de controle de protestos do governo brasileiro estão agora sob o investigação da campanha global da Amnistia Internacional, Deem a eles um cartão amarelo, que monitoriza a repressão a protestos pacíficos na Copa do Mundo.

Com todos os olhares voltados para o Brasil – e os seus manifestantes - é hora de não somente resistir à repressão ao direito a manifestação, mas também confrontar os incentivos de mercado que alimentam o uso progressivo da força. "Corporações mundiais como Condor veem isso como uma oportunidade de lucrar - e eles estão absolutamente ganhando dinheiro com a repressão de estado", afirma Kimber Heinz, da campanha global "Facing Tear Gas".

Desmascarar aqueles que ganham com os protestos revela as intersecções entre controlo governamental e grandes negócios, apontando para novos alvos para campanhas e ações diretas não violentas. "Militarismo é um projeto global com implicações locais," explica Heiz. "Nossa campanha tem como alvo as engrenagens do militarismo: locais de treinamento, feiras de armamentos e programas governamentais, construindo a base para oposição ao militarismo e policiamento desde a raiz."

Dra. Anna Feigenbaum é professora de Comunicação Social e Política na Universidade de Bournemouth (Inglaterra). É co-autora de Protest Camps, Zed 2013, e está atualmente a escrever um livro sobre a história política do gás lacrimogéneo.Afeigenbaum@bournemouth.ac.uk e @drfigtree no Twitter.




Fonte: Esquerda.net

domingo, 22 de junho de 2014

“O governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais” diz Ricardo Antunes




Segundo o sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes, o Brasil se mantém como um país marcado pela insegurança e pela superexploração do trabalho



O entusiasmo econômico e desenvolvimentista expresso em planilhas e levantamentos sobre as taxas de desemprego no país, sustentado pelo governo federal nos últimos três mandatos presidenciais, contrapõe-se a uma análise mais crítica quando se tem em conta a conjuntura do trabalho no Brasil. “Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que os governos Lula e Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que concerne ao trabalho”, analisa Ricardo Antunes, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. “Aumentaram os empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a constante”, complementa.

Ao fazer um balanço do mundo do trabalho nestes quase 12 anos de governo do PT à frente do Executivo federal, Ricardo Antunes considera que, no geral, a média é negativa. “O triste e recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da Fifa e o monumental descontentamento popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas de serviços, desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo, não permite que meu balanço seja positivo”, avalia. “Isto é, o governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos setores querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto vive elogiando o governo”, frisa.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Passados quase três mandatos do governo do PT, que em 2014 completa 12 anos ininterruptos, que balanço é possível de ser feito com relação ao mundo do trabalho?

Ricardo Antunes – O balanço, no seu conjunto, é negativo. Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que osgovernos Lula e Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que concerne ao trabalho. Por exemplo, aumentaram os empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a constante.

A formalização, quando existe, também é quebrada pela rotatividade ampliada. Reconheço que o governo Lula tomou algumas medidas que diminuíram o impacto da formalidade, mas é importante lembrar também que, no final do primeiro mandato, ele foi o responsável por um projeto de reforma trabalhista, no âmbito sindical, especialmente, que criava uma brecha para que o negociado se sobrepusesse ao legislado. Portanto, fazendo um olhar de conjunto, podemos dizer que o governo Lula foi menos nefasto que o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Porém, o que se espera de um governo com assento de esquerda é que ele enfrente a questão da superexploração do trabalho. O vilipêndio, as mortes no trabalho, os sofrimentos, as terceirizações, as precarizações, as rotatividades ampliadas, o emprego supérfluo, isso não foi contentado.

Ao contrário do período anterior, em que houve a prevalência de uma economia oscilando entre um pequeno crescimento e a recessão, no governo Lula houve um crescimento econômico, e esse crescimento da economia gerou muitos empregos como estamos vendo até hoje — ainda que a situação econômica atual seja de muito mais turbulência que a do início do governo PT. Esta situação não me permite dizer que foi um governo que trouxe mudanças significativas. Ele aumentou o emprego porque houve crescimento econômico.

É imprescindível lembrar que, ao mesmo tempo que houve uma valorização pequena, mas real, do salário mínimo — pois a lei do salário mínimo no Brasil é risível para quem ocupa uma das dez maiores economias do mundo —, os grandes capitais ganharam muito dinheiro com os governos Lula e Dilma. O triste e recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da Fifa e o monumental descontentamento popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas de serviços, desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo, não permite que meu balanço seja positivo.

IHU On-Line - Considerando-se que Lula vem do movimento operário, esperava-se dele iniciativas mais ousadas?

Ricardo Antunes – Se olharmos para o passado de Lula, anos 1970 e 1980, esperávamos atividades um pouco mais corajosas. Lula foi eleito, em 2002, com uma votação expressiva e teria condições, em tese, de tomar medidas mais fortes em defesa do trabalho e de mudanças estruturais. O Brasil se mantém como um país marcado pela insegurança e pela superexploração do trabalho. Apesar de a China e outros países da Ásia, a Zona Franca da América Central — Haiti, República Dominicana — e cidades do México terem níveis de superexploração mais intensos que os nossos, isso não elimina o fato de que temos intensa exploração do trabalho.

Isto o governo Lula não enfrentou, e não o fez em razão dos grandes capitais, do agronegócio, da produção de commodities; mais ainda, o ex-presidente não só abriu o nosso país a uma transnacionalização da economia, como pegou o empresariado pela mão — as empreiteiras, por exemplo — e transnacionalizou, permitindo que essas grandes empresas possam fazer outros trabalhos na América Latina, na África e em outros continentes. Isto é, o governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos setores querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto vive elogiando o governo.

Quando o Lula e o PT ganharam as eleições em 2002, sabíamos que nem o Lula nem o PT eram os mesmos e, tampouco, o Brasil era o mesmo. Eles já tinham padecido de um trágico processo de desertificação neoliberal, que nos atingiu na década de 1990. Inicialmente com Collor e depois com Fernando Henrique Cardoso.

IHU On-Line – Onde houve avanços e quais pontos da agenda do trabalho permaneceram como estavam, ou pior, recuaram?

Ricardo Antunes – A melhora se deu fundamentalmente no emprego, que decorre do crescimento da economia e da relativa contenção do processo de informalização do trabalho. Mas há coisas negativas. Aumentou enormemente o processo de cooptação das entidades sindicais pelo governo Lula e depois houve mudanças com a Dilma, porque ela não tem um centésimo da experiência sindical do Lula — este foi o grande líder sindical do século XX no Brasil, e que sabia negociar com os sindicatos como ninguém.

Em seu governo, criou-se uma espécie de sindicalismo negocial de Estado, em que esta cooptação, esta servidão voluntária não foi por acaso. Lula expandiu uma medida tomada por Getúlio Vargas no final dos anos 1930, estendendo às centrais sindicais o recolhimento de imposto sindical, o que faz com que algumas centrais sindicais ganhem muito dinheiro do Estado, ao qual a Central Única dos Trabalhadores – CUT sempre disse ser contra, mas aceita, recebe e utiliza tais recursos.

Esse é um ponto muito nefasto do sindicalismo, quer de base, quer das centrais sem autonomia política, sindical e financeira, pois cria um sindicalismo negocial que depende do Estado, e se amanhã muda o governo, essa medida cai, o sindicalismo chapa branca vai ficar sem recursos.

Esse foi um ponto muito negativo, sem falar dos aspectos mais gerais, por suposto, que são decisivos. Lula preservou o superávit primário que marca a política econômica neoliberal, abriu a produção dos transgênicos, incentivou a produção de commodities; houve uma espécie de regressão do Brasil à produção da nova divisão internacional do trabalho, em que aceitamos e nos sujeitamos à produção de commodities, minérios, etanol e soja.

Evidentemente, as rebeliões de junho mostraram que a “res-pública” no Brasil tornou-se uma “res-privada”. Há uma diferença: o tucanato realiza a privatização selvagem; o PT realiza a privatização branda. Por exemplo, a Petrobras e sua crise com o pré-sal, os aeroportos. O tom é diferente, mas no substantivo ambos os governos privatizam. Essa é a triste realidade e conta como déficit do governo do PT.

IHU On-Line - O PT surge no movimento sindical. Nesse sentido, de que maneira esses 12 anos de Lula e Dilma reorganizaram a forma de atuação dos sindicatos? Os movimentos perderam força de oposição ou seguem firmes na defesa aos trabalhadores?

Ricardo Antunes – Primeiramente, gostaria de repetir que o governo Lula conseguiu um complexo processo de cooptação das centrais sindicais, especialmente a CUT, e também, em um primeiro momento, a Força Sindical; no entanto, agora com a Dilma, ensaia movimentos de contestação. Há um problema mais de fundo, que é uma mudança profunda no mundo do trabalho, uma nova morfologia do trabalho, uma classe trabalhadora mais jovem em muitos setores, há um novo proletariado no campo dos serviços que se expande sem parar. Este novo proletariado mais jovem está muito mais à margem da representação sindical.

Por exemplo, enquanto há sindicatos fortes, como dos metalúrgicos e dos bancários, não há essa força nos call centers, no telemarketing, nos setores de fast food e supermercados, entre outros. Isto cria uma dificuldade muito grande, que é um certo descolamento entre o sindicalismo de uma era na qual imperava o operariado herdeiro da fase taylorista-fordista para um outro proletariado que não se vê representado na estrutura dura da forma de organização sindical. Isto ocorre, inclusive, porque muitos destes serviços são terceirizados e quase a totalidade destes trabalhadores está fora dos marcos da representação sindical. É um problema complexo que os sindicatos vão ter que enfrentar, mas não só no Brasil, é um fenômeno que marca o sindicalismo dessa virada do século XX para o XXI em escala global.

IHU On-Line – Na opinião do senhor, quem ocupa esse espaço forte de mobilização e pressão social que antes era exercido pelos sindicatos?

Ricardo Antunes – São duas alternativas. A primeira vem de um vazio (lembre-se de que pesquisas apontaram que mais de 70% dos jovens que participaram dos levantes do Brasil eram de estudantes que trabalham, trabalhadores e jovens que estudam) de representação, e a rua, como praça pública, tornou-se o espaço cotidiano da revolta. O segundo espaço que se ampliou foi ante a ausência de sindicatos e o nascimento de movimentos sociais, que, de certo modo, são muito mais livres do que a estrutura sindical atrelada ao Estado. Nos anos 1990 e 2000 surgiu uma miríade de movimentos dos sem-teto, barrageiros, pessoas da periferia, que têm representado a organização não propriamente no espaço de trabalho, mas dos assalariados. A atuação desses cidadãos oscila entre o vácuo, a praça pública e os movimentos sociais, o que mostrou a explosão belíssima dos movimentos sociais do ano passado e que vão voltar agora — porque não pararam de vez — por ocasião da Copa do Mundo. 

IHU On-Line – Qual o grande desafio do mundo do trabalho no século XXI?

Ricardo Antunes – O mundo do trabalho é uma espécie de anatomia da sociedade. O trabalho que estrutura o capital, ou seja, aquele que é desenvolvido para estruturar tal sistema, desestrutura a humanidade, o social do trabalho. Portanto, o trabalho, se quiser reestruturar a vida humana — tendo um ponto de partida para que nós possamos ter um tempo livre dotado de sentido, com fruição, tudo aquilo que é desejável e necessário para além do trabalho —, precisa destruir o capital. Esta é a chave. É por isso que há rebeliões do trabalho em Portugal, na Grécia, na Espanha, no Leste Europeu e nos países asiáticos. Há importantes greves do setor automobilístico na Índia, há greves diariamente na China. Li, recentemente, na imprensa que a China pretende devolver milhões de trabalhadores ao campo, mas eles não têm o que fazer no campo. Como um jovem que saiu do campo e foi viver nas cidades chinesas vai aceitar voltar para o campo? Tudo isso faz parte do primeiro desafio.

O segundo desafio é que o capitalismo fez com que a precarização, pela via da informalidade e da terceirização, que são fenômenos aproximados, mas não idênticos, se tornasse a regra e não a exceção. É preciso, aqui e agora, impedir esta regra, evitando que a terceirização se amplie, e mais, lutar pelo fim dela. Nenhum trabalhador em uma escola ou universidade pública, por exemplo, prefere ver o outro trabalhador com mais direitos. Temos que impedir que a terceirização, a precariedade e a informalização sejam a regra. Isso implica a reorganização dos trabalhadores, para os quais os sindicatos não são carta fora do baralho.

Do século XIX para o XX, o mundo do capitalismo mudou profundamente. Nasceu e se desenvolveu a grande indústria, que já era visível na segunda metade do século XIX, e que se expandiu no século XX com o taylorismo e o fordismo de grande intensidade. Aquele antigo sindicato do século XIX, herdeiro de um trabalhador dos ofícios, das manufaturas, se mostrou incapacitado, e surgiu o sindicalismo de massa. Nós transitamos do século XX para o XXI, em que esta indústria taylorista-fordista, que se mantém em vários setores, não é mais a tendência dominante, pois o que é dominante atualmente são as empresas flexibilizadas e liofilizadas, que nasceram com o toyotismo no Japão e a chamada acumulação flexível.

Este tipo de empresa, que se expandiu pelo Ocidente, estruturada nas cadeias produtivas globais, sofreu um processo de desterritorialização e fragmentação, em que uma empresa com mais de 20 mil trabalhadores está divida em centenas de unidades esparramadas pelo mundo. Isso cria a necessidade de um novo sindicalismo mais aparentado com os movimentos sociais, que seja consentâneo com a nova morfologia do trabalho no século XXI. Não é possível que a humanidade social que trabalha veja a destruição de seus direitos, construídos ao longo de séculos, e se renda. Ainda bem que estamos vendo que a temperatura das manifestações sociais no mundo inteiro está aumentando continuamente.