sexta-feira, 20 de junho de 2014

35 passos práticos que os homens podem dar para apoiar o feminismo



Traduzido do original por Georgia Martins Faust e Tarsila Mercer de Souza: http://m.xojane.com/issues/feminism-men-practical-steps

No Facebook, um amigo recentemente linkou para um artigo chamado 20 Ferramentas para que os Homens Favoreçam a Revolução Feminista. Embora ele tenha gostado da lista, ele (corretamente) observou que a maioria das sugestões eram bastante acadêmicas. O amigo em questão, como eu, é um acadêmico, então essa observação não é para ser uma acusação ao artigo original. Só que ferramentas práticas e ferramentas acadêmicas podem ter lugares diferentes no mundo.

Os comentários dele me incentivaram a criar uma lista de ferramentas mais práticas. A maioria dos homens – em particular homens que se beneficiam de múltiplas formas de privilégio estrutural – fazem muitas coisas que direta e indiretamente contribuem para uma cultura de desigualdade de gênero. Até mesmo homens que apoiam o feminismo em teoria podem não ser tão bons em aplicar o feminismo em suas práticas diárias.

A lista traz sugestões de algumas ferramentas práticas que todos os homens podem aplicar em seu dia-a-dia para promover a igualdade em seus relacionamentos com mulheres, e para contribuir com uma cultura onde as mulheres sintam-se menos sobrecarregadas, inseguras e desrespeitadas.

Parte de viver em uma sociedade patriarcal é que os homens não são socializados para refletir sobre como seus hábitos e atitudes prejudicam as mulheres. Essa lista foi feita para incentivar os homens a pensar mais conscientemente e pessoalmente sobre os efeitos diretos e indiretos que eles tem sobre as mulheres, e para pensar mais sobre como eles podem contribuir com o feminismo através de suas práticas diárias.

A lista não pretende ser definitiva nem exclusiva. Certos itens da lista vão se aplicar a alguns homens mais do que a outros, mas se você é um homem e humano, eu garanto que há pelo menos uma área da lista onde você possa melhorar. Caso você ache que esquecemos alguma coisa, me diga! Se você acha que algum ponto na lista é problemático, vamos conversar a respeito!

1. Faça 50% (ou mais) do trabalho doméstico

Você precisa fazer a sua parte do trabalho doméstico o tempo todo, por sua própria iniciativa, sem procrastinar, sem ser pedido, sem inventar desculpas. Reconheça que seus hábitos domésticos e suas idéias internalizadas sobre trabalho doméstico não-remunerado têm um enorme viés de gênero e beneficiam imensamente aos homens, e aceite que é sua responsabilidade lutar contra isso. Se feminismo é a teoria, lavar a louça é a prática. Na próxima semana, observe quanto do trabalho doméstico você faz quando comparado com as mulheres que moram com você e observe se essa divisão é equitativa.

2. Dê 50% (ou mais) do suporte emocional em seu relacionamento afetivo e amizades.

Reconheça que mulheres são desproporcionalmente responsáveis pelo trabalho emocional e que ser responsável por isso tira tempo e energia de outras coisas que elas consideram satisfatórias.

3. Consuma produtos culturais produzidos por mulheres.

Seja lá quais forem seus interesses – cinema Francês, astrofísica, baseball, ornitologia – certifique-se de que as vozes das mulheres e os produtos culturais das mulheres estejam representados naquilo que você está consumindo. Se não estão, se esforce para buscá-las.

4. Dê espaço para as mulheres

Muitas mulheres andam por aí – especialmente à noite ou quando sozinhas – sentindo-se ameaçadas e inseguras. Estar em proximidade física com um homem desconhecido pode exacerbar essa sensação. Reconheça que esse medo não é tão irracional assim para as mulheres, dado que tantas de nós já passaram por perseguição ou abuso ou nos fizeram sentir inseguras por homens quando estamos em espaços públicos. Também reconheça que não importa se você é o tipo de homem que não dá motivo nenhum para ser temido, porque uma mulher na rua não tem como descobrir isso a seu respeito.

Exemplos: Se um banco estiver vago no transporte público perto de um homem, sente naquele assento ao invés de ao lado de uma mulher. Se você estiver andando em uma rua escura atrás de uma mulher andando sozinha, atravesse a rua para que ela não precise se preocupar que alguém esteja seguindo ela. Se uma mulher estiver de pé sozinha em uma plataforma do metrô, fique a certa distância dela.

5. … mas inclua-se em espaços onde você possa usar da sua masculinidade para interromper sexismo.

Exemplos: desafie homens que fazem comentários e piadas sexistas. Se você vir uma amiga mulher em um bar/em uma festa/no metrô/onde quer que seja se sentindo desconfortável com a abordagem de algum homem, tente interferir de maneira amigável para oferecer a ela uma saída caso ela assim deseje. Se você vir uma situação onde parece que uma mulher esteja em perigo quando em companhia de um homem, fique próximo o suficiente para ser uma presença física, monitore a situação e esteja a postos para chamar ajuda se necessário.

Coisas desse tipo podem ser super difíceis, estranhas e complicadas para saber como fazer, mas vale a pena tentar de qualquer jeito. Sentir-se momentaneamente desconfortável é uma troca justa para fazer com que uma mulher se sinta mais confortável.

6. Quando uma mulher te diz que alguma coisa é sexista, acredite nela.

7. Eduque-se a respeito de consenso sexual e certifique-se de que haja uma comunicação clara e inequívoca de consenso em todas as suas relações sexuais.

8. Seja responsável pela contracepção.

Se você está em um relacionamento onde a contracepção é necessária, ofereça-se para utilizar métodos que não tenham riscos à saúde da mulher (uso de hormônios, cirurgias, etc) e trate esses métodos como opções preferenciais. Se sua parceira preferir um método em particular, deixe-a ser responsável por tomar essa decisão sem questionar ou reclamar. Não faça manha sobre usar camisinha, e seja responsável por comprá-la e tê-la disponível caso esse seja o método que vocês estejam usando.

Assuma a responsabilidade financeira por qualquer custo relacionado à contracepção. Mulheres ganham menos que homens, e também precisam assumir todo o risco físico de uma gravidez. E mais, em instâncias onde a contracepção envolve qualquer tipo de risco físico, virtualmente são sempre as mulheres que têm que assumir esse risco. Como um gesto de compensação minúscula dessa disparidade, homens heterossexuais deveriam financiar todo o custo com contraceptivos.

9. Tome a vacina de HPV.

Se você for um homem jovem, tome. Se você tiver um filho jovem, certifique-se de que ele tome. Já que as mulheres são aquelas desproporcionalmente afetadas pelas consequências do HPV, por questão de justiça os homens deveriam ser aqueles que pelo menos assumam os riscos potenciais de ser vacinados. (Eu sou amplamente pró-vacinas em geral e não acredito que hajam riscos significativos, mas essa é uma questão de princípio.)

10. Tenha uma política de nomes progressista.

Se você e sua parceira mulher decidirem que a instituição do casamento é algo com a qual vocês querem se envolver, esteja aberto para que ambos mantenham seus sobrenomes. Se ter um sobrenome em comum com sua esposa é tão importante para você, esteja disposto a mudar o seu sobrenome e trate isso como uma opção preferencial à sua esposa trocar o dela.

11. Se vocês tiverem filhos, sejam pais da mesma forma

Esteja disposto a tirar licença paternidade e ficar em casa cuidando deles quando eles forem pequenos. Divida as responsabilidades de cuidado de modo que você esteja fazendo pelo menos 50% do trabalho, e garanta que esse cuidado seja dividido para que você e sua parceira ambos possam ter uma quantidade igual de tempo para brincar com seus filhos também.

12. Preste atenção e desafie instâncias informais de reforço de papéis de gênero.

Por exemplo, você está em um evento de família ou em um jantar, preste atenção se são apenas (ou em sua maioria) mulheres que estão preparando a comida/limpando/cuidando das crianças enquanto os homens estão socializando e relaxando. Caso positivo, mude a dinâmica e implore que outros homens façam o mesmo.

13. Esteja atento a diferenciais de poder com vieses de gênero explícitos e implícitos em seus relacionamentos íntimos/domésticos com mulheres… seja com a parceira, membros da família ou colegas de quarto.

Esforce-se para reconhecer diferenciais de poder estruturais inerentes baseados em raça, classe, gênero, orientação sexual, idade (e assim por diante). Onde você se beneficiar desses desequilíbrios estruturais, eduque-se a respeito de seu privilégio e trabalhe para encontrar formas de criar um equilíbrio de poder mais igualitário. Por exemplo, se você estiver em uma parceria doméstica onde você é o principal provedor financeiro, eduque-se a respeito da diferença salarial entre os gêneros, e trabalhe no sentido de dividir o trabalho e os recursos econômicos dentro de sua casa de um jeito que aumente a autonomia econômica de sua parceira.

14. Certifique-se de que a honestidade e o respeito guiem seus relacionamentos românticos e sexuais com mulheres.

A forma com que você trata mulheres com quem você tem um relacionamento é um espelho dos seus valores com relação a mulheres em geral. Não adianta abraçar a teoria feminista e tratar suas parceiras como lixo. Seja honesto e aberto sobre as suas intenções, comunique-se abertamente para que as mulheres possam tomar decisões informadas e autônomas sobre o que elas querem fazer.

15. Não seja um mero expectador quando estiver na presença de sexismo.

Desafie as pessoas que façam, digam ou postem coisas sexistas na internet, especialmente em mídias sociais

16. Seja responsável com dinheiro em relacionamentos domésticos/românticos

Saiba que se você for irresponsável com dinheiro, isso necessariamente impacta sua parceira e já que mulheres ainda ganham menos que homens em geral (e vivem mais), essa é uma questão feminista.

Exemplo: Sua dívida no cartão de crédito/desperdício de dinheiro/problema com apostas têm impacto sobre a vida econômica e o futuro dela. Compartilhe o orçamento doméstico, a declaração de imposto de renda e as responsabilidades das finanças pessoais e seja aberto e honesto sobre o gerenciamento financeiro doméstico.

17. Seja responsável pela sua própria saúde.

Homens vão ao médico com menos frequência que mulheres quando algo os incomoda, e quando eles vão geralmente é por insistência das mulheres do seu convívio. Ter uma longa vida em parceria com sua esposa significa ser responsável pela sua própria saúde, prestar atenção a qualquer incômodo e levá-los a sério. Já que somos dependentes um do outro, sua saúde a longo prazo é também a saúde a longo prazo dela.

18. Não fique secando ou faça comentários sobre mulheres (ex. mantenha a boca fechada e seus comentarios pra si mesmo)

Ainda que possa ser mais provável que as mulheres usem roupas mais reveladoras que os homens, não fique as secando só porque você quer e pode. Mesmo que você ache alguém atraente, existe uma linha entre perceber a pessoa e ser um babaca/ desrespeitoso. Isso faz com que a pessoa que recebe a secada se sinta desconfortável, assim como qualquer outra mulher que perceba que você está secando alguém ou percebam dos comentários.

19. Preste atenção ao gênero dos especialistas e principais personalidades que apresentam informações para você na mídia

Quando você estiver assistindo a um especialista na TV, lendo artigos, etc., perceba com que frequência essa informação virá de um homem, e, no mínimo, imagine o quanto uma perspectiva feminina poderia ser diferente.

20. Assegure-se de que alguns de seus herois e modelos de exemplo sejam mulheres

21. Elogie as virtudes e conquistas das mulheres da sua vida para as outras pessoas.

Nas conversas diárias e na sua comunicação em geral, fale para os outros sobre as mulheres que você conhece sob um ângulo positivo. Sugira as suas amigas mulheres para projetos, trabalhos e colaborações com as outras pessoas que você conhece.

22. Seja íntegro com os seus amigos homens (ex. não seja um “parça”)

Quando um amigo homem está fazendo algo sexista (deixando de cumprir obrigações parentais, falando mal de mulheres, secando elas, gastando dinheiro compartilhado em segredo, mentindo para sua parceira, etc), seja íntegro e diga algo para o seu amigo. Não é suficiente pensar que está errado; faça-os saber que você acha que está errado.

23. Não trate a sua esposa como uma “pentelha”. Se ela está “pentelhando”, você está provavelmente deixando algo para trás.

24. Saiba que reconhecer suas próprias opiniões e estereótipos sexistas não é o suficiente. Faça algo a respeito disso.

25. Tenha amigas mulheres.

Se você não tem nenhuma amiga mulher, descubra o porquê e faça algumas amigas. Assegure-se de que sejam relações autênticas e significativas. Quanto mais a gente se preocupa e se identifica uns com os outros, mais chance a gente tem de criar uma sociedade mais igualitária.

26. Encontre mentoras/líderes mulheres (ex. seja subordinado à mulheres)

Se você está procurando um mentor, ou quer ser voluntário de uma organização, vá a uma mulher ou a uma organização liderada por uma mulher. Saiba que há muito a aprender de mulheres em posições de comando.

27. Quando estiver em um relacionamento romântico, seja responsável por eventos e datas especiais ligados ao seu lado da família.

Lembre-se dos aniversários dos membros da sua família e eventos importantes. Não deixe para a sua esposa a responsabilidade de enviar cartões, fazer ligações, organizar reuniões, etc. É sua família, e portanto sua responsabilidade de lembrar-se, preocupar-se e contatá-los.

28. Não policie a aparência de mulheres.

Mulheres são ensinadas a internalizar normas de beleza extremamente restritivas desde quando são crianças muito pequenas. Não faça ou diga coisas que façam com que as mulheres sintam que não estão cumprindo essas normas, ou crie pressão para que elas as cumpram. Ao mesmo tempo, também não é uma resposta feminista fazer ou falar coisas que pressionem mulheres a usar seu corpo para resistir a essas normas se elas não quiserem. Reconheça que há significativas sanções sociais para mulheres que desobedecem padrões de beleza e não podemos esperar que elas ajam como mártires e aceitem essas sanções se não quiserem.

Se de acordo com seu senso estético ou ideais você acha que ela usa muita maquiagem ou maquiagem de menos, retira pêlos corporais demais ou não o suficiente, não é da sua conta como as mulheres decidem a aparência de seus corpos.

29. Ofereça-se para acompanhar suas amigas mulheres se elas tiverem que caminhar para casa a noite sozinhas… ou em um espaço público onde provavelmente elas se sentiriam inseguras.

Mas não insista em fazê-lo ou aja como se você estivesse sendo o maior cavalheiro do mundo por fazer isso.

30. Insira o feminismo em suas conversas diárias com outros homens.

Se o seu pai não faz a sua parte do trabalho doméstico, converse com ele sobre porquê isso é imporante. Se seu amigo trai a namorada dele ou fala dela negativamente, fale francamente para ele que respeitar a mulher com quem ele tem um relacionamento íntimo faz parte de ter respeito com as mulheres em geral. Tenha conversas com seus irmãos mais novos e seus filhos sobre sexo consentido.

31. Se você tem tendência a se comportar de maneira inadequada com mulheres quando você está sob a influência de drogas ou álcool, não consuma drogas ou álcool.

32. Tenha consciência do espaço físico e emocional que você ocupa, e não tome mais espaço do que você precisa.

Use sua cota justa de tempo de fala nas suas conversas, dê tanto às relações quanto você recebe, não sente com suas pernas abertas de modo que outras pessoas não consigam sentar confortavelmente ao seu lado, etc.

33. Faça o que deve ser feito com relação a desigualdade de renda.

Mulheres ainda ganham 77% do que homens ganham. Se você está em uma posição que te possibilite fazer isso, considere doar simbolicamente 23% do seu salário para causas orientadas à justiça social. Se 23% parece muito para você, é simplesmente porque é muito mesmo, e também é muito para mulheres que não tem escolha de receber esse valor ou não.

34. Adquira o hábito de tratar a sua masculinidade como um privilégio não-merecido que você precisa trabalhar ativamente para ceder ao invés de tratar a feminilidade como uma desvantagem não-merecida que as mulheres precisam batalhar para superar.

35. Auto-identifique-se como feminista.

Fale sobre feminismo como uma crença natural, normal, incontestável, porque deveria ser mesmo. Não se restrinja usando termos como “humanista” ou “aliado feminista” que reforçam a ideia de que a palavra Feminismo por si só é algo assustador.

As ferramentas 15 – 27 são c/o Lindsay Ulrich. As outras c/o Pamela Clark.

Reproduzido com permissão de PamelaClark.tumblr.com.




Fonte: Articulagem

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Queremos o futebol sem o controle da FIFA, diz jornalista alemão



Christian Russau, jornalista alemão e ativista de direitos humanos, recorda que, de acordo com cientistas do Instituto Alemão para Ciências Econômicas, a Copa na Alemanha, em 2006, não gerou “nenhum impulso conjuntural relevante” e os efeitos econômicos “não tiveram dimensão perceptível na economia”


Por IHU-OnLine

“Diferentemente do Brasil, na Alemanha não houve protestos e a grande maioria dos alemães era a favor da Copa. Por que isso? Na Alemanha não houve remoções, não houve os custos sociais que ocorreriam caso fosse realizada uma tentativa política de reestruturação das cidades em torno do argumento da Copa, porque os estádios já estavam lá, e a infraestrutura também”, avalia o jornalista Christian Russau.

Para ele, nos dias atuais, a população alemã conseguiu se distanciar o suficiente do evento para fazer sua própria reflexão sobre a organização da Copa, a atuação da FIFA e os lucros históricos de 816 milhões de francos suíços obtidos pela entidade no período entre 2003 e 2006. “Somente agora, com todos esses relatos nos jornais sobre os absurdos da Copa no Brasil e no Qatar, as pessoas aqui na Alemanha estão formando um sentimento generalizado de repúdio à FIFA. Só que querem ver a Copa. Torcemos ainda para que um dia a FIFA não seja mais a entidade que organiza e controla a Copa. Queremos o futebol de volta!”, exalta.

Christian Russau cita as exigências feitas pela FIFA para a realização da Copa de 2006 nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, mas destaca também as iniciativas que se opuseram à barganha comercial que visava beneficiar a entidade e seus parceiros de negócios. Ele cita dois exemplos: “Próximo ao famoso estádio de Dortmund, no lugar chamado Westfalenhalle, há muitos anos existe um ‘U’ gigante em cima de um prédio fazendo propaganda para uma determinada marca de cerveja da região. Esse ‘U’ é um símbolo popular na cidade. E o que exigiu a FIFA? Para proteger o seu patrocinador de cerveja para a Copa, a FIFA mandou que o ‘U’ fosse retirado. A cidade de Dortmund recusou-se a isso e somente conseguiu a liminar jurídica argumentando motivos de patrimônio histórico. Em Colônia, a FIFA exigiu que uma parada de ônibus ao longo do estádio a qual leva o nome de uma fábrica fosse rebatizada por quatro semanas como ‘parada estádio da Copa’. Para isso, todos os folhetos da cidade com os roteiros de ônibus teriam de ser reimpressos. Mas a Prefeitura de Colônia não cedeu à pressão da FIFA”.

Christian Russau é jornalista alemão e ativista de direitos humanos, mora e trabalha em Berlim. Escreve para diversas mídias alternativas. Estudou Ciências Políticas e Filosofia na Freie Universität – FU (Universidade Livre), de Berlim, Alemanha, e na Universidade de São Paulo - USP, onde defendeu a tese Urteil und Gemeinsinn. Ein Beitrag zur Theorie des Politischen von Hannah Arendt (Juízo e bom senso. Uma contribuição para a Teoria da Política de Hannah Arendt).

Trabalhou oito anos no Centro de Pesquisa e Documentação Chile-América Latina (FDCL), em Berlim, entidade à qual continua ligado. Também é ativo na rede alemã de organizações de solidariedade ao Brasil, a KoBra - Kooperation Brasilien. Christian é um apaixonado por futebol, torcedor do Tennis Borussia - TeBe, clube da sexta divisão alemã e que pratica, na avaliação do jornalista, “um futebol autêntico”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que impacto a Copa de 2006 produziu sobre a Alemanha? A identidade do país após a Copa era a mesma de antes?

Christian Russau – O legado mais visível é que desde então os alemães parecem ter uma relação mais leve com seu próprio país. E, no exterior, aquela imagem dos alemães como pessoas sérias, não festivas, também mudou com as enormes festas daquele verão. Mas existem outros impactos, que não são tão visíveis, e são bastante preocupantes. A vigilância por vídeo do espaço público na Alemanha, por exemplo. Antes da Copa de 2006 só havia vigilância por vídeo em meia dúzia de cidades. Esse número pulou para 30 durante a Copa, e continua subindo. Embaixo do argumento de “segurança”, os políticos conservadores sempre introduzem algo dizendo que aquilo era necessário para o evento — e depois aquela “novidade” se torna a “regra”.

Outra questão são os absurdos direitos extraconstitucionais que o país ofereceu à FIFA — em todas aquelas leis para as quais o governo conseguiu o aval do parlamento durante as quatro semanas de futebol. Como a atenção midiática e da opinião pública se focalizava mais no futebol, para os políticos era o momento oportuno de sancionar leis que normalmente seriam altamente contestadas. Em meio a toda aquela euforia, passou quase despercebido o maior aumento do imposto sobre faturamento, equivalente ao ICMS brasileiro, na história da Alemanha: de 16% para 19%, aprovado em 16 de junho de 2006. Esse aumento em três pontos percentuais representou uma carga mensal alta que atingiu especialmente as camadas mais pobres da população, na comparação com os mais afortunados. Ou na véspera do clássico Alemanha x Argentina [disputado em 30-06-2006], quando o governo alemão aprovou uma série de leis para mudar impostos que, em condições normais, teriam sido motivo de debates acirrados na imprensa e pela opinião pública.

Ocorre que a Alemanha estava tomada pela febre do futebol. E para aumentar a tensão, no dia do jogo das quartas-de-final contra a Argentina, o parlamento alemão resolveu colocar em pauta nada menos do que a maior reforma da história da República Federal da Alemanha desde 1949. Todos os artigos da Constituição que tocam a relação entre governo central e estados da federação, bem como as respectivas atribuições, foram modificados. Segundo as transcrições do debate no Legislativo, os parlamentares pareciam muito apressados para terminar a votação ainda antes de o jogo começar.

IHU On-Line – No que diz respeito ao clima festivo, seria correto afirmar que a Copa do Mundo representou o momento de maior alegria e união dos alemães desde a queda do muro de Berlim, em 1989?

Christian Russau - Falando em termos de um clima geral festivo, sim. Ninguém esperava que nós, os alemães, de repente nos tornássemos anfitriões festejando aquele verão nas ruas, nos bares, nos botequins da forma que fizemos, mas com certeza não se pode subestimar a influência que teve o clima para isso — foi um verão excepcional, com um calor inesperado que durou do primeiro minuto até o apito final da Copa.

Houve aquele medo de que poderiam acontecer ataques racistas ou que os hooligans nazis poderiam causar tumultos, mas felizmente isso não aconteceu. Esse era um tema que se discutia muito antes da Copa. Havia o alerta que o conselho dos africanos de Berlim publicou, o alerta sobre as chamadas “no go areas”, áreas onde negros deveriam ir com maior cuidado ou mesmo não ir, por causa da alta probabilidade de ataques neonazis naqueles locais. Houve uma grande discussão sobre isso, os políticos afirmando “que isso na Alemanha não tem”, mas, ao final, como a imprensa continuou insistindo no tema, algumas cidades tomaram medidas para evitar os ataques nazistas e racistas.

IHU On-Line - Antes da Copa, os alemães eram conhecidos pela resistência em utilizar símbolos nacionais, como a bandeira, e em vestir as cores do país. Quais eram os principais motivos para isso? Há hoje uma espécie de orgulho nacional renovado?

Christian Russau - Desde o final da Segunda Guerra Mundial e da libertação da Alemanha do fascismo, qualquer insinuação de nacionalismo, patriotismo ou demonstração de orgulho nacional dos alemães era tida como vergonhosa. Qualquer gesto neste sentido era visto como suspeito. Para muitos, era assim: mostrar patriotismo por um país que causou duas guerras mundiais e que cometeu a pior barbárie da história, o holocausto, era inimaginável. Isso não quer dizer que não havia nacionalistas ou patriotas na Alemanha, só que eram uma minoria. Nas escolas, o hino nacional fazia parte do programa, mas quase nunca era cantado. Até os anos 1990, nem os jogadores da seleção cantavam o hino nacional antes dos jogos. Muitos deles mantinham a boca fechada. Bandeiras da Alemanha podiam ser observadas aqui e acolá durante os jogos da seleção nos estádios, mas muito raramente eram vistas nas ruas. O patriotismo alemão tinha praticamente desaparecido do país após o fim da Segunda Guerra Mundial. Eu pessoalmente diria, graças a Deus!

Só que, na Copa de 2006, de repente isso tudo mudou. Uma pesquisa feita naquele ano com alunos e alunas revelou que, por causa dos jogos, “passou a ser normal usar as cores nacionais para a maioria dos jovens”. Para muitos alemães e observadores de fora, aquilo foi uma surpresa; para alguns, chegou a ser um choque. Naquele verão da Copa de 2006, aparentemente voltou tudo aquilo que, durante quase 60 anos, ninguém na Alemanha parecia ter sentido falta: bandeirinhas nacionais nos carros e caminhões, nas sacadas e janelas... Para os alemães, tornou-se aparentemente normal ter uma relação “menos tensa” com a própria Alemanha. Naquele verão de 2006, o que se via era um patriotismo festeiro. Afinal, é algo que cada pessoa teria que decidir por si mesma. Eu pessoalmente nunca cantaria o hino alemão e não necessariamente vou torcer para a seleção alemã. Torço para um futebol lindo. Mas, em geral, se compararmos o grau de patriotismo na Alemanha com o de outros países, aqui ele ainda continua sendo menor.

IHU On-Line - Qual foi a relação entre investimentos públicos e investimentos privados na Copa de 2006? Qual foi o total de recursos investidos na Copa, oficialmente e extraoficialmente?

Christian Russau - Depois da Copa, o governo federal alemão lançou um relatório dizendo que os gastos públicos federais destinados diretamente à organização do evento somaram apenas 294 milhões de euros, e que um total de 530,7 milhões de euros em dinheiro público foi investido nos níveis federal, estadual e municipal para as reformas ou novas construções de doze estádios, os quais chegaram a custar um total de 1,4 bilhão de euros — o que equivaleria a dizer que o dinheiro público gasto representava um terço do total de custos do evento. Considero isto altamente duvidoso. Um montante de 3,7 bilhões de euros dos cofres públicos federais foram investidos na ampliação das autoestradas no país, como o governo mesmo registra em seu relatório final da Copa de 2006. Mas, o que diz o governo? “Não incluímos essas despesas no orçamento geral da Copa”. Por que não? Um colega jornalista, Jens Weinreich, dá a explicação: “A arte consiste em incluir o mínimo possível de custos no orçamento e indicar o máximo possível de gastos previstos como investimentos, não os ligando diretamente às Olimpíadas ou à Copa do Mundo. Assim, acaba-se chegando a um belo superávit nos respectivos orçamentos”.

Do outro lado vale também lembrar que é verdade ser difícil alocar exclusivamente no item Copa do Mundo projetos de infraestrutura financiados com recursos públicos, uma vez que na Alemanha ainda ocorre um verdadeiro boom de construção pós-queda do Muro. Os estados da antiga Alemanha Oriental continuam recebendo meios públicos para projetos de infraestrutura através do adicional de solidariedade cobrado nos impostos; Berlim ainda se encontra no boom imobiliário depois da queda do Muro, da unificação, da mudança da capital e do aumento de atratividade da cidade em termos mundiais. Mas quem sabe avaliar quanto os gastos em infraestrutura feitos antes do anúncio da decisão da FIFA de que a Alemanha sediaria a Copa de 2006 influenciaram nesta decisão? Quem sabe avaliar quanto alguns políticos sonharam com a Copa e encaminharam projetos de infraestrutura antes dessa decisão ser anunciada? Economistas alemães fizeram as contas em 2009 e descobriram que os gastos públicos em todas as cidades-sede da Copa de 2006, incluindo todas as medidas de infraestrutura, somaram cerca de 7 bilhões de euros. Mas ainda assim é difícil vislumbrar um limite claro entre investimentos feitos exclusivamente para a Copa ou para outros fins. Simplesmente não se pode medir isso.

IHU On-Line - Quais foram as principais obras realizadas para o evento? Como se deram as relações de trabalho na realização das mesmas? Qual era a origem dos operários?

Christian Russau - Dos 12 estádios, 7 foram renovados e 5 foram construídos, com o custo total que citei antes, de 1,4 bilhão de euros. Mas, de novo, não se pode atribuir isso exclusivamente às demandas e necessidades da Copa. Por exemplo, os times de Bayern München e Schalke 04 já tinham tomado a decisão de construir um estádio próprio bem antes da Copa. Também todas aquelas exigências de ter cadeiras nos estádios (e acabar com os espaços da Geral) foram estabelecidas pela UEFA já nos anos 1990 para os times que participam da Liga dos Campeões ou da, à época, Copa UEFA [hoje, Liga Europa]. Infraestrutura, como falei, é algo que está sendo feito desde a reunificação, em outubro de 1990. Então, não se pode atribuir isso diretamente à Copa ou não.

No começo dos anos 1990, muitos operários vieram de Portugal ou da Irlanda. Depois, de outros países mais, sempre conforme a situação econômica de cada época. Na União Europeia, existe a livre escolha de onde trabalhar. Mas, para evitar que haja concorrência no mercado da construção civil de quem trabalha por um salário ainda menor que os outros, os sindicatos estão na luta faz anos para que tenhamos na Alemanha também um salário mínimo fixo válido para todos os empregos. O novo governo acabou de decidir que teremos isso na Alemanha a partir de 2017. O que já existe são salários mínimos para alguns setores. Na construção civil, por exemplo, se paga atualmente 11,10 euros por hora.

IHU On-Line - A população alemã aprovava a realização do torneio antes do início do mesmo? Quem se posicionava de modo contrário à realização do evento? Houve manifestações?

Christian Russau - Diferentemente do Brasil, na Alemanha não houve protestos e a grande maioria dos alemães era a favor da Copa. Por que isso? Na Alemanha não houve remoções, não houve os custos sociais que ocorreriam caso fosse realizada uma tentativa política de reestruturação das cidades em torno do argumento da Copa, porque os estádios já estavam lá, e a infraestrutura também.

Em Berlim houve um protesto de rua contra o Ministério de Relações Exteriores, que se negou a dar vistos para jogadores de rua de Gana e da Nigéria, que foram convidados a participar de um evento patrocinado pelo próprio governo federal: a copa do Streetfootballworld, cujo objetivo era trazer times juvenis de diversos países para campeonatos de futebol de rua na Alemanha. Essa era a ideia. Mas os pedidos de visto das equipes de Gana e da Nigéria foram recusados. Segundo o ministro responsável, os menores sonhavam com uma carreira profissional de jogador de futebol no exterior [o que, na leitura do ministro, poderia incentivá-los a não voltar para os seus países de origem] — e aí os vistos foram negados. Altamente discriminatório. Qual o jovem de qualquer país que joga futebol de rua que não sonha com uma carreira profissional? Infelizmente, na Alemanha há ainda muito racismo — especialmente quando se fala de um racismo das instituições, que tenta se disfarçar.

Contra o racismo houve uma ação muito bacana na abertura da Copa do Mundo da Alemanha: era de um grupo de brasileiros, o Coletivo 3 de Fevereiro. Na fanfest, no meio de um milhão de pessoas, eles conseguiram passar pelos seguranças com uma bandeira antirracista de 20 metros por 15 metros com a frase “Know Go Area”, fazendo alusão ao alerta do conselho de africanos de Berlim sobre os “no go areas”. Os seguranças acharam que era uma enorme bandeira do Brasil e, quando a TV mostrou as imagens da multidão festiva lá na fanfest, de repente via-se aquela enorme bandeira desmascarando o racismo alemão — e o mundo inteiro está assistindo. Muito bacana.

Mas, em geral, quase não houve protestos contra a Copa. O que houve, sim, eram manifestações ligadas a um outro evento: os Jogos Olímpicos. Quando Berlim candidatou-se, entre 1991 e 1993, para os Jogos Olímpicos de 2000, formou-se um enorme movimento contra aquele megaevento, porque as pessoas temiam — com toda razão — todos aqueles processos de reestruturação da cidade que acompanham esses megaeventos.

E em Berlim, com a queda do muro e a reunificação da cidade, já vivíamos um enorme processo de reestruturação. Então, para aquele movimento “Berlin Nolympic City”, que era composto por pessoas dos mais diversos segmentos da sociedade, era óbvio que se deveria lutar contra a candidatura de Berlim para os Jogos Olímpicos de 2000. Com muitas manifestações, atividades e contrapropaganda, o movimento conseguiu abalar no exterior e no próprio comitê olímpico a imagem de uma Berlim feliz por ser cidade-candidata aos Jogos Olímpicos.

Como também os protestos em Munique no ano passado e o plebiscito de lá mostraram, a população está contra a cobiça do Comitê Olímpico Internacional - COI. Este sentimento as pessoas têm também em relação à FIFA, só que há uma diferença: contra a Copa na Alemanha ou a FIFA, ninguém foi a uma manifestação; contra os Jogos Olímpicos e o COI, sim. Isso tem a ver com a maior descentralização dos eventos da Copa, o que não acontece com os Jogos Olímpicos — onde praticamente tudo se passa em uma única cidade.

IHU On-Line - A Copa da Alemanha representou uma experiência inclusiva coletiva para a população ou foi um evento direcionado a uma minoria?

Christian Russau - Era difícil conseguir ingressos para os jogos, mas isso era mais algo por causa dos milhões de fãs do mundo todo que queriam assistir às partidas e nem tanto por causa do valor dos ingressos. As cidades organizaram grandes fanfests, com mais de um milhão de pessoas na rua, como ocorreu em Berlim, mas o que era muito maior (e muito mais bonito) eram as multidões de pessoas nos botequins, nos biergärten alemães, as pessoas que colocaram a TV e algumas cadeiras e sofás na rua para assistir aos jogos, com cerveja barata do supermercado e curtindo o verão que parecia não acabar nunca.

IHU On-Line - Houve alguma vantagem econômica ao país pela organização do torneio? O lucro econômico foi repartido por quem?

Christian Russau – Antes da Copa, o governo alemão estimou um aumento do consumo em torno de 10 bilhões de euros durante o evento, o que representaria 0,5% do Produto Interno Bruto - PIB. Nem pensar! Os dados macroeconômicos eram — segundo pesquisadores — muito menores. Conforme os cientistas do Instituto Alemão para Ciências Econômicas, a Copa não gerou “nenhum impulso conjuntural relevante” e os efeitos econômicos “não tiveram dimensão perceptível na economia”. A conclusão deles foi: “Não houve aumento do consumo privado durante o período da Copa”.

Em 2004, a Agência Federal para Trabalho e Emprego previa “100 mil novos empregos”. Dois anos mais tarde, em janeiro de 2006, a mesma agência já falava em apenas 50 mil empregos. E que tipo de emprego era esse? Segundo o próprio ministério, eram “em sua maioria empregos no setor de venda de refeições, em bares ou como segurança” — portanto, de curto prazo. Os únicos setores que aumentaram significativamente o volume de vendas foram três: a venda de equipamentos eletrônicos aumentou 5,2%, ou 227 milhões de euros, crescimento, em grande parte, atribuído aos novos televisores de tela plana; o setor hoteleiro do país recebeu 10% a mais de turistas do que o previsto, o que forneceu receitas extras de 220 milhões de euros; no setor de restaurantes e bares, não foram exatamente os restaurantes que ganharam, porque as vendas de refeições cresceram só 0,3% — o que cresceu drasticamente foi a venda de bebidas, que subiu 4,7%.

Afinal, a indústria que mais lucrou com a Copa na Alemanha foi a das cervejarias. E a FIFA, claro. Esta entidade de “utilidade pública”, sediada na Suíça, faz balanços de cada Copa do Mundo em períodos de quatro anos. Esses períodos costumam começar no dia 1º de janeiro, depois da realização da última Copa, e vai até 31 de dezembro do ano da Copa seguinte. O resultado, como ela mesma declarou: “No período de 1º de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006, a FIFA contabilizou receitas totais no valor de 3,238 bilhões de francos suíços, contra despesas totais de 2,422 bilhões. Disso resulta um resultado líquido de 816 milhões de francos suíços nos quatro anos. A FIFA fechou o período 2003–2006 com um resultado recorde de 816 milhões de francos. O capital próprio fechou 31 de dezembro de 2006 com 752 milhões de francos suíços, o maior valor nos 103 anos de história da FIFA”.

IHU On-Line - A FIFA solicitou privilégios e direitos especiais durante a realização da Copa? Quais foram atendidos? Quais foram negados?

Christian Russau - No dia 6 de julho de 1999, o governo social-democrata e verdes entregou à FIFA uma longa lista de garantias governamentais, anunciando medidas, assegurando amplos privilégios à associação futebolística, seus patrocinadores e parceiros, bem como aos jogadores das seleções de outros países e seus assessores: isenções fiscais, adaptações às taxas alfandegárias e modificações de leis para garantir os privilégios da FIFA. Somou-se a isto uma série de garantias relativas à modernização de estádios e a reivindicação da FIFA de reservar um raio de cerca de um quilômetro em torno dos estádios para que os direitos sobre marcas fossem adaptados às necessidades da entidade. Assim, os estádios de futebol se tornaram territórios licenciados pela FIFA e em torno deles só poderia haver publicidade e produtos dos seus parceiros comerciais. Aquela área de exclusividade para os patrocinadores oficiais da Copa não se limitou apenas aos estádios e arredores, mas a todos os lugares no país inteiro onde houvesse comemorações de torcedores e eventos relacionados à Copa.

Nos estádios, em vez da marca de cerveja preferida, os torcedores foram obrigados a tomar a cerveja americana Budweiser. O nome Budweiser na Europa normalmente está associado unicamente à cerveja original com este nome, a Budweiser da República Tcheca. Mas, como a Anheuser-Busch, dona da marca Budweiser, é patrocinadora da FIFA, pode vender a marca dela exclusivamente nos estádios com o nome Anheuser-Bud, uma cerveja que aqui na Alemanha quase ninguém bebe. Mas aí houve outros problemas, que a própria FIFA causou: próximo ao famoso estádio de Dortmund, no lugar chamado Westfalenhalle, há muitos anos existe um “U” gigante em cima de um prédio fazendo propaganda para uma determinada marca de cerveja da região. Esse “U” é um símbolo popular na cidade. E o que exigiu a FIFA? Para proteger o seu patrocinador de cerveja para a Copa, a FIFA mandou que o “U” fosse retirado.

A cidade de Dortmund recusou-se a isso e somente conseguiu a liminar jurídica argumentando motivos de patrimônio histórico.

Em Colônia, a Fifa exigiu que uma parada de ônibus ao longo do estádio a qual leva o nome de uma fábrica fosse rebatizada por quatro semanas como “parada estádio da Copa”. Para isso, todos os folhetos da cidade com os roteiros de ônibus teriam de ser reimpressos. Mas a Prefeitura de Colônia não cedeu à pressão da FIFA.

Com tudo isso, a imagem negativa da FIFA na opinião pública cresceu ainda mais. As pessoas começaram a se convencer de que a FIFA é uma organização funcionando como uma máquina de dinheiro. Até o prefeito de Munique, Christian Ude, chegou a criticar publicamente os “acordos leoninos” da entidade.

IHU On-Line - Quem ganhou com a Copa de 2006? Qual é o sentimento dos alemães hoje em relação à FIFA?

Christian Russau - A FIFA fez aquele lucro enorme de 816 milhões de francos suíços. Mas somente hoje em dia os alemães estão começando a ter uma reflexão sobre a FIFA. Somente agora, com todos esses relatos nos jornais sobre os absurdos da Copa no Brasil e no Qatar, as pessoas aqui na Alemanha estão formando um sentimento generalizado de repúdio à FIFA. Só que querem ver a Copa. Torcemos ainda para que um dia a FIFA não seja mais a entidade que organiza e controla a Copa. Queremos o futebol de volta!




quarta-feira, 18 de junho de 2014

A Copa dos VIPs

Cerca de 800 pessoas viram o jogo no evento Ilha Gueri Gueri, de alto padrão, em São Paulo

"A Folha" fez um especial com os VIPs que vão aos estádios torcer pelo Brasil. Agora se entende para quem é a Copa. Esse mesmo pessoal que tem o privilégio de usufruir os estádios pagos com o suor do povo, são os mesmos que xingaram a Presidenta, que por outro lado deu esse privilégio a eles.

Enquanto isso o povo é excluído de tudo, é removido de suas casas, o trabalhador é reprimido e quando faz greve e protesto é agredido pelas forças repressoras do Estado.

Para ver a reportagem completa da Folha clique AQUI.

Sobre o vídeo apenas uma palavra: PODRE!


terça-feira, 17 de junho de 2014

A Copa que eu queria contar



Por Carlos Eduardo Rebuá

Tão importante quanto a história vivida é a história contada e recontada. No mundo do futebol os rabiscos da pelota – como os argentinos e uruguaios, nossos maiores rivais, chamam a bola – se eternizam nas diuturnas narrativas com a autoridade de quem “viu” ou imaginou ver.


A grande virtude do futebol é sua capacidade de surpreender,

de provocar assombro, de permitir o milagre,

de saber que o impossível pode acontecer.

É uma das atividades humanas mais imprevisíveis

que existem. Daí o sucesso popular, mundial.

(Eduardo Galeano)



Moro a poucas quadras do Maracanã, estádio que já nasceu megalômano: a FIFA recomendara ao Brasil um lugar com capacidade para 20 mil pessoas. Fizemos com capacidade para 155 mil, para não mais sermos vira-latas e mostrarmos ao mundo nossa grandeza! Mesmo sabendo que vai ter Copa (a despeito das greves e manifestações, legítimas e necessárias), sei que para mim e para milhares de brasileiros a Copa será pela tevê. Ou na rua, como diz a sarcástica música da FIAT1 para a Copa, cantada por Herbert Vianna e Negra Li: “quem tá na rua não precisa de ingresso”.

Na Copa dos meus sonhos, Ronaldo “Fenômeno”, alçado à função de “péssimo comentarista da Globo”, teria que fazer plantões em hospitais nos dias de jogos da seleção, para se retratar da infeliz frase de que uma Copa não se faz com hospitais; o senhor Joseph Blatter, gânsgter-chefe da Federação Internacional de Futebol, seria obrigado a recolher os milhões de dólares destinados às distintas federações de futebol do mundo, apenas nesta semana, como “agrado” para sua reeleição, e entregá-los aos movimentos/organizações sociais que atuam no combate à miséria, à violência contra crianças e mulheres, ao analfabetismo, ao racismo; o ilustre Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, seria encarregado de levar suas comitivas avaliativas a todas as escolas do país, para auditar o “padrão-Fifa” de nossa educação, que no último ranking mundial (parcial e repleto de contradições, como quase todos) da UNESCO2, aparece como 38º, entre 40 países (estamos “vencendo” México e Indonésia!); o ilustríssimo Parreira, coordenador técnico da Canarinho e cidadão do país-CBF desde a ditadura, que chamou as distintas manifestações de “contratempos” e afirmou que “todo” o povo brasileiro está com a seleção, seria designado para acompanhar “toda” a Copa dentro de favelas do Rio de Janeiro, Salvador, Natal, São Paulo e outras cidades-sede do Mundial. Aquelas mesmas cidades que nas propagandas oficiais dos governos (federal, estadual e municipal) estão em paz, felizes e prosperando, sem mortes de jovens “quase todos pretos” – como na música de Gil e Caetano – quase todos os dias, sem ausência de serviços básicos (água, saneamento, luz, transporte...), sem falta de esperança e perspectivas reais de uma vida digna.

No meu sonho, a “família Scolari”, avaliada em 1,6 bilhões de reais3 seria campeã, arrebentando nos gramados da terra do futebol e calando a boca daquela esquerdalha que sempre joga contra a seleção porque ser de esquerda é ver o Brasil ser derrotado em ano de eleições, como se as coisas se resolvessem assim, facilmente, como num drible do Neymar Jr. A diferença é que no meu sonho a seleção bilionária e hexa (onde cada jogador, para além de suas fortunas, receberá em caso de conquista 48 milhões de reais4 de prêmios: R$ 1,2 milhão de reais para cada um), abriria mão de seus salários durante o mês do Mundial (e da premiação do título), juntando essa enorme grana e decidindo, em coletivas populares de imprensa (sem aqueles jornalistas chatos que só querem saber sobre o “falso 9” ou sobre o que os gringos estão achando da comida brasileira), com crianças, jovens, adultos e velhos, homens e mulheres, todos trabalhadores, determinando onde esse dinheiro seria investido. Por um mês apenas.

Neste sonho, que é só meu, mas que também é de muitos, os estádios construídos especialmente para a Copa, com suas somas astronômicas e seus atrasos estratosféricos, seriam transformados em assembleias populares permanentes. Ali, naqueles monstros de concreto, contratos e coquetéis, o povo – esse estranho ser que costuma aparecer muito na prévia e pouco na estréia dos megaeventos – duas vezes por semana, como a seleção na Copa, decidiria quais as demandas mais urgentes, quais os políticos que devem ir para o banco (de reservas, é bom deixar claro!) e qual seria o destino dos bancos, esses criminosos coletivos, em alusão à famosa assertiva de Brecht: “o que é roubar um banco comparado a fundar um?”.

A surpresa, o assombro, o milagre, a imprevisibilidade, são ingredientes fundamentais do futebol, marcas que só o esporte da bola no pé possui, como afirma Galeano, um de seus mais notáveis entusiastas, que em entrevista recente ao Estadão5 disse que Messi e Neymar são verdadeiros “milagres” no atual quadro do futebol-lucro, dos estádios-arena, dos clubes-empresa, pois ainda que milionários, tem alegria nas pernas. Enquanto sonhar ainda é de graça, sigo com meus devaneios pré-Copa. Certo de que a bola, o drible e o sonho seguirão incertos... e serão ainda muito contados.










5 http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,messi-e-neymar-sao-verdadeiros-milagres-diz-eduardo-galeano,1155824


Carlos Eduardo Rebuá é Professor de História no ensino superior e na educação básica, mestre e doutorando em Educação.


segunda-feira, 16 de junho de 2014

O resgate do soldado Ivan na Segunda Guerra Mundial


Por Mike Davis - The Guardian

A batalha decisiva pela libertação da Europa começou há 70 anos, em junho, quando um exército soviético de guerrilhas emergiu das florestas e charcos da Bielorrússia, para lançar ataque surpresa contra a retaguarda da poderosa Wehrmacht.

As brigadas do Exército Vermelho e combatentes da Resistência, entre os quais muitos judeus e foragidos de campos de concentração, plantaram 40 mil cargas de demolição. Devastaram as estradas de ferro, vitais para a conexão entre o Centro do Exército Alemão e suas bases na Polônia e no leste da Prússia.

Três dias depois, dia 22/6/1944, no terceiro aniversário da invasão de Hitler contra a União Soviética, o marechal Zhukov deu a ordem para o assalto principal contra as linhas alemãs. 26 mil armas pesadas pulverizaram as posições avançadas dos alemães. Os gritos dos foguetes Katyusha foram seguidos pelo rugido de 4 mil tanques e pelos gritos de combate (em mais de 40 línguas) dos 1,6 milhão de soldados soviéticos. Assim começou a Operação Bagration, assalto contra um front alemão de mais de 600 quilômetros.

Esse “grande terremoto militar”, como o designou o historiador John Erickson, só parou nos arredores de Varsóvia, com Hitler deslocando as reservas de elite da Europa ocidental para tentar conter a maré vermelha no leste. Resultado disso, tropas norte-americanas e britânicas que combatiam na Normandia não tiveram de enfrentar as divisões Panzer mais bem equipadas.

O que não se diz

Mas o que os norte-americanos algum dia souberam sobre a Operação Bagration? Junho de 1944 significa a Praia de Omaha, não o Rio Dvina a ser ultrapassado. A ofensiva soviética do verão foi várias vezes maior que a Invasão da Normandia (Operação Overlord),tanto na escala das forças envolvidas quando no preço direto que custou aos alemães.

No final do verão, o Exército Vermelho chegara já às portas de Varsóvia e às trilhas entre os Cárpatos que levam à Europa Central. Tanques soviéticos já haviam tomado em movimento de pinça o Centro do Exército Alemão e o destruíram. Só na Bielorrússia, os alemães perderiam mais de 300 mil homens. Outro gigantesco exército alemão fora cercado e seria aniquilado ao longo da costa do Báltico. E estava aberta a estrada para Berlim. Graças ao soldado Ivã.

Não se trata de não ver os valentes que morreram no deserto do norte da África ou nas florestas geladas em torno de Bastogne. Trata-se, isso sim, de lembrar que 70% da Wehrmacht estão sepultados, não em campos franceses, mas nas estepes da Rússia. Na luta contra o nazismo, morreram cerca de 40 ‘Ivãs’ para cada ‘soldado Ryan’.

27 milhões de mortos

Hoje os especialistas estimam que 27 milhões de soldados e cidadãos soviéticos morreram na 2ª Guerra Mundial. Estranhamente porém, o soldado soviético comum – o mecânico de tratores de Samara, o ator de Orel, o mineiro de Donetsk, a menina do ginásio de Leningrado – é invisível na atual celebração e remitologização da ‘grande geração’.

É como se o “novo século norte-americano” não consiga jamais nascer sem, antes, exorcizar o papel central que os soviéticos tiveram na vitória epocal contra o fascismo, que marcou o século 20.

Verdade é que muitos norte-americanos são chocantemente ignorantes de grande parte da verdade sobre combates e mortos na 2a. Guerra Mundial. E até os raros que compreendem alguma coisa do gigantesco sacrifício dos soviéticos para derrotar o nazismo na Europa tendem a vê-lo em termos de estereótipos ‘jornalísticos’: o Exército Vermelho não passaria de horda bárbara movida pela besta fera do vingancismo e do nacionalismo russo. Combatentes civilizados, que defendiam ideais civilizados de liberdade e democracia, para os norte-americanos, só GI Joe e Tommy…

Por isso precisamente é ainda mais importante lembrar que – apesar de Stálin, do NKVD[5] e do massacre de uma geração de líderes bolcheviques – o Exército Vermelho sempre preservou elementos poderosos da fraternidade revolucionária. Aos olhos dos russos, e dos muitos que o Exército Vermelho livrou das garras dos nazistas, aquele ainda é o maior exército de libertação da história do mundo. Importante saber que o Exército Vermelho de 1944 ainda era exército soviético.

O Exército Vermelho

Entre os generais soviéticos que lideraram a tomada do rio Dvina havia um judeu (Chernyakovskii), um armênio (Bagramyan) e um polonês. Diferente das forças britânicas e dos EUA – divididas por classes e racialmente segregadas –, o comando do Exército Vermelho era escada aberta, embora difícil de escalar, de oportunidades.

Quem ainda tenha dúvidas da paixão revolucionária e da humanidade que unia todos no Exército Vermelho, deve consultar as extraordinárias memórias de Primo Levi (É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990) e KS Karol (Entre Dois Mundos). Ambos odiaram o stalinismo e amaram o/a soldado/a soviético/a comum, e viam nele/nela as sementes da renovação do socialismo.

Assim sendo, depois da recente [em 2004] degradação, por George Bush, da memória do Dia D, reduzido a cena explícita de apoio aos crimes dos EUA no Iraque e no Afeganistão, tomei a decisão de fazer, eu mesmo, minha comemoração privada.

Relembro então, em primeiro lugar, meu Tio Bill, caixeiro viajante de Columbus – e é difícil ver aquela alma gentil como guerreiro adolescente GI na Normandia. E em seguida – como tenho certeza de que meu Tio Bill teria aprovado – relembro também seu camarada soldado Ivã.

O camarada Ivã dirigiu seu tanque até o portão de Auschwitz; foi quem abriu caminho até o bunker de Hitler. A coragem e a tenacidade do camarada Ivã derrotaram a Wehrmacht, e nada tiveram a ver com os erros do tempo de guerra e os crimes de Stálin. O mundo tem dois heróis: meu Tio Bill e seu camarada Ivã, soviético. É obsceno homenagear o primeiro sem também homenagear o segundo.




Fonte: Carta Maior

Direito de se conformar

Repressão. Manifestante anti-Copa detido pela PM recebe spray de pimenta nos olhos



Por que só os trabalhadores são ‘vândalos’ e proibidos de lutar por suas causas quando o mundo todo está olhando para o Brasil?

Ricardo Antunes

A retomada das greves no Brasil não é algo recente. Na pesquisa qualificada que faz há muitas décadas, o Dieese nos mostra que desde 2003 elas vêm se ampliando sistematicamente. Começou com 340 naquele ano e chegou a 873 paralisações em 2012, um salto bastante expressivo.

Suas reivindicações foram: no setor industrial, 42,7% objetivavam maior participação nos lucros e resultados, essa pragmática empresarial que obriga os trabalhadores a aumentar seus salários somente quando produzem mais. Foram seguidas por melhor alimentação (37,6%) e reajuste salarial (29,7), entre outras. Nos serviços, a alimentação puxou 43,1% das greves; os reajustes salariais contabilizaram 40,7%, e o pagamento de atrasos salariais totalizou 34,1%. 

E, se em 2013 tudo indica que esses números avançaram ainda mais, neste ano, a tomar pelo que estamos vivenciando, haverá um crescimento exponencial das paralisações. Para bem compreender essa explosão recente, temos que olhar com atenção para o Brasil desde junho de 2013.

De um modo breve, desde aqueles levantes de junho que o País mudou de qualidade. Ocorreu algo excepcional em nossa história, dado pela intersecção entre três movimentos que caminhavam em paralelo e se entrecruzaram, produzindo um choque social e político profundo. Primeiro, desde 2008 as lutas globais vêm se ampliando em todas as partes do mundo. No Oriente Médio, na Ásia, na Europa, até atingir o coração do Império, os EUA, para ficar nesses exemplos. E essa onda foi vista por todos os brasileiros. Sua lição basilar: para se conquistar algo é preciso tomar as praças públicas, pois os organismos de representação (com os Parlamentos à frente) estão completamente na berlinda. 

Segundo, esse movimento mais global encontrou uma situação especial no Brasil: o governo do PT comemorava dez anos de um “novo ciclo” quando as rebeliões de junho de 2013 roubaram o bolo de Lula e esparramaram seus farelos pelas praças de todo o País. Ruiu o mito da “nova classe média”, em plena festa do seu primeiro decênio. Os assalariados que encontram empregos recebem, em sua grande maioria, até um salário mínimo e meio; trabalham para estudar e estudam para melhorar no trabalho. O canudo da faculdade privada lhes faz derrapar ainda mais nos empregos voláteis. Pagam essas faculdades e encontram empregos com altas taxas de rotatividade, ainda mais terceirizados, mais adoecidos, mais precarizados, sofrendo assédio moral, etc. Em suma: muito mais privação do que realização. E, para trabalhar, dependem do transporte público, quase todo privatizado e degradado; se adoecem, oscilam entre a tragédia dos hospitais públicos e os engodos dos convênios privados. Uma hora a situação iria fazer água, e isso ocorreu em junho do ano passado. (Aqui vale um parênteses: o mito tucano, esse não ruiu porque simplesmente nunca existiu, uma vez que seu projeto é majoritariamente sustentado pelo voto conservador que não se assusta com o aumento da segregação social no País.) 

O terceiro foi um espetacular elemento contingente. A celebração tríplice das Copas (das Confederações, da Fifa e das Olimpíadas), imaginada por Lula e pelos grandes capitais como coroamento de um ciclo virtuoso, fez desabrochar seu exato inverso e o descontentamento explodiu. 

Assim, junho de 2013 se adensou com os trabalhadores-estudantes urbanos lutando pelo passe livre e contra a degradação da vida nas cidades, elevando a um patamar superior o levante das periferias, fortalecido com o MTST e sua emblemática ocupação da Copa do Povo. E esse descontentamento se generalizou. 

Já as greves e manifestações deste maio e junho de 2014 consolidam a rebeldia do trabalho, dos homens e mulheres que se desgastam na indústria, nos transportes, no funcionalismo público (hospitais, previdência, escolas e universidades públicas), em uma onda de paralisações que atinge muitos milhares de trabalhadores e trabalhadoras. (Os docentes e funcionários das universidades públicas paulistas, em exemplo que deve ser único neste período, receberam a acintosa proposta de reajuste zero, a pretexto de que a gestão anterior da USP, cujo ex-reitor foi escolhido pelo governador do PSDB desconsiderando a vontade da maioria de comunidade acadêmica, foi pautada pelo descalabro. A onde privatista exacerbou-se. Mas vale olhar para a explosão da crise universitária do Chile, depois de décadas de privatismo desde a ditadura de Pinochet, que gerou uma explosão social intensa nos últimos anos.) 

Uma rápida fenomenologia das greves pode recordar a emblemática paralisação dos garis, durante o carnaval do Rio. Contra uma direção sindical atrelada e cupulista, os garis perceberam que na festa carioca a limpeza não rimava com a falta de presteza da prefeitura em relação a seu exaustivo labor diário. Seguiram-se outras tantas greves, como a dos motoristas e cobradores do Rio, São Paulo, em São Luís, entre incontáveis cidades onde houve paralisação no sistema de transportes, um dos motes centrais, vale lembrar, dos levantes do ano passado. Ora contra as direções sindicais, ora com o seu apoio, as greves encontram seu principal elemento causal na precariedade das condições de trabalho e salário. 

Mas a coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foi geral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação, que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era pouco mais de R$ 1.300. Valor, como se sabe, insuficiente para viver em uma cidade com alto custo de vida e ainda com inflação em crescimento. 

Depois de alguns dias de paralisação, foram duramente reprimidos pelo governo Alckmin, com ação policial, demissões e acusação de “vandalismo” (os mesmos trabalhadores que, com zelo e cuidado, conduzem os metrôs diariamente) e ameaçados com mais 300 demissões se a greve voltar. Paralela e curiosamente, as transnacionais Alston, Siemens, entre outras, bem como seus gendarmes que praticaram fraudes volumosos em obras de ampliação do Metrô, sob governos do PSDB, como a imprensa e Justiça têm divulgado intensamente, ainda não sofreram nenhuma punição exemplar. E vale também recordar que os metroviários se utilizam de um direito constitucional (o direito de greve) que foi obtido depois de décadas de luta contra a ditadura militar. 

Por fim, um argumento recorrente contra as greves, é de que elas são “oportunistas” por ocorrerem às vésperas da Copa. Mas a Fifa, essa transnacional do (des)entretenimento global não está impondo sua marca e seus “parceiros” para lucrar ainda mais compulsivamente com sua Copa? Não obrigou o País a mudar sua legislação para poder vender bebidas alcoólicas nos estádios e assim ganhar ainda mais? Não é que até o acarajé ela tentou extirpar do estádio (ou arena?) em Salvador? E o empresariado do ramo de hotelaria não está cobrando o que quer, assim como os restaurantes? 

Vem então a pergunta que não quer calar: por que somente os trabalhadores são “vândalos” e proibidos de lutar por seus direitos neste momento em que o mundo inteiro está olhando para o Brasil? 

*

Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor, entre outros, de 'Os sentidos do trabalho' e 'Riqueza e miséria do trabalho no Brasil', vols. I e II (ambos pela Boitempo)




Fonte: Estadão