sexta-feira, 25 de abril de 2014

Diego Grossi: "O Tiradentes que conhecemos tem muito de construção mitológica"


Brasil - Diário Liberdade - 21 de abril é feriado nacional no Brasil, devido à lembrança da morte de Tiradentes, herói nacional, em 21 de abril de 1792.



Nascido em Minas Gerais em 1746, Joaquim José da Silva Xavier foi um dentista (por isso o apelido “Tiradentes”) e um dos militantes do movimento conhecido como Inconfidência Mineira. Tiradentes e seus companheiros foram traídos, e ele, condenado à morte na forca e esquartejado em público. Seus restos mortais foram expostos para que toda a população soubesse as consequências de uma revolta contra a coroa portuguesa.

O Diário Liberdade entrevistou o historiador Diego Grossi, que conta um pouco da breve história da Inconfidência Mineira e os mitos e verdades que envolvem o nome de Tiradentes.

O que tem a dizer sobre Tiradentes, do ponto de vista revolucionário / libertário?

O Tiradentes que conhecemos é muito mais uma construção memorialística, mitológica, do que realmente a história de um indivíduo revolucionário. Não sou especialista em Brasil Colonial nem em Tiradentes, mas pelo que posso perceber existem, na verdade, poucas informações sobre o Joaquim José, vulgo Tiradentes. A própria imagem dele barbudo com a corda no pescoço foi feita depois.
Tiradentes foi um herói perfeito para personificar a identidade de um republicanismo elitista que servisse às classes dominantes brasileiras. Foi mártir, porém não derramou sangue alheio (o movimento foi descoberto ainda na fase de conspiração), foi soldado, era pobre, homem do povo, mas instruído. Não é por acaso que todos conhecem Tiradentes, mas desconhecem os mártires da Conjuração Baiana, movimento muito mais radical e popular, porém, ignorado pela historiografia oficial. Claro que tudo isso não inviabiliza o valor pessoal do Joaquim José, pois é fato que ele foi um revolucionário, que deu sua vida pela independência. O único aliás, pois de todos os conspiradores era o mais pobre, por isso pegou a pena máxima, foi feito de bode expiatório (possivelmente não era líder nenhum, pagou caro por ser um filho humilde do povo brasileiro).
É uma memória em disputa. A elite impôs o Tiradentes "pacífico", imaculado, quase um Cristo (e a semelhança na "aparência" construída não é coincidência), cabe ao povo resgatar o heroísmo, o martírio dos humildes e os sentimentos inabaláveis de justiça e libertação nacional. Nesse sentido podemos observar alguns processos na própria Ditadura Militar, como o Movimento Revolucionário Tiradentes (uma das organizações armadas com maior presença da classe trabalhadora) e uma comparação feita por Zuzu Angel que, diante do martírio do seu filho, Stuart Angel (guerrilheiro morto sob torturas de forma bárbara, já que, entre outras formas, foi preso num carro com a boca no cano de descarga e arrastado durante longo tempo), disse que o mesmo seria pra sempre lembrado como um "Tiradentes dos tempos modernos".

Qual era a situação do povo de Minas Gerais naquela época?

A situação da população em Minas era extremamente contraditória, pois o desenvolvimento local ocasionado pela extração do ouro atendia apenas a uma minoria, enquanto a maior parte era excluída.
Como a migração para o local foi muito grande ao longo do século XVIII, a "infraestrutura" local não era capaz de atender a todos, além disso, por motivos óbvios, nem todos que iam pra lá enriqueciam como acreditavam, muitos ficavam na miséria. Logo aumentou a população, aumentou o número de miseráveis, cresceu a criminalidade e a violência e, de quebra, o poder público não tinha como oferecer seus serviços básicos.
Somava-se a isso a exploração de Portugal, que exigia uma grande "fatia do bolo", do ouro. Quando começou a reduzir a quantidade de ouro retirado, eles não foram inteligentes o suficiente para reduzir também a quantidade absoluta do que recebiam, forçando a manutenção de seu enriquecimento enquanto os mineiros já não conseguiam a mesma quantidade elevada de antes. Isso jogou a própria elite local contra Portugal e daí os motivos da Inconfidência Mineira ser um movimento, no geral, de caráter elitista.

Os inconfidentes tinham influências dos iluministas. Quais eram suas principais características e objetivos para o Brasil e Minas?

Sim, nessa época os filhos da elite brasileira tinham que estudar na Europa se quisessem uma boa educação e um dos locais mais visitados era Paris, centro de difusão do pensamento iluminista. Lá eles tinham contato com o pensamento progressista da época e acabavam até mesmo trazendo literatura burguesa pra cá (se não me engano o próprio Tiradentes entrou em contato com essa literatura por conta de um parente que visitou o exterior e lhe trouxe alguns livros).
Existem poucas fontes históricas sobre os Inconfidentes, ao que parece o núcleo dos estudos foram os próprios processos, ou seja, algo arriscado, já que estamos estudando alguém de acordo com o que o adversário dizia dele. De qualquer forma, tudo indica uma perspectiva republicana e separatista, ou seja, queriam libertar Minas de todo o sistema colonial, inclusive outras regiões do Brasil, para assim construir uma república, ainda que elitista (aparentemente, não era objetivo dos inconfidentes tocar na questão da escravidão). Possivelmente a perspectiva federativa, de se unir com outras repúblicas que viessem a acompanhar o processo, estava também no horizonte.

Então, se tivesse êxito, a insurreição inconfidente seria uma "revolução burguesa"?

O conceito de "revolução burguesa" não é consensual, mas os objetivos dos inconfidentes estavam em sintonia direta com o pensamento burguês típico da Europa e seus objetivos levariam ao capitalismo. Logo, sim, foi uma tentativa de revolução burguesa (e vale lembrar que clássicos do liberalismo, como Locke e Jefferson admitiam a escravidão sem o menor problema, portanto não seria uma "peculiaridade brasileira").

Mas o povo mineiro sabia da Inconfidência, ele havia aderido ao movimento ?

O movimento foi traído ainda na fase de preparação, quando Joaquim Silvério dos Reis, um dos conspiradores, o entregou para as autoridades portuguesas, esperando ser recompensado.
Os revoltosos haviam planejado conclamar o levante quando as autoridades portuguesas fossem recolher os impostos do ouro, porém, antes dessa data, sem terem tido qualquer comunicado público ou trabalho com as massas, foram traídos e presos.
Logo, a população, com exceção dos poucos conspiradores (e, possivelmente, de um círculo de amigos e contatos políticos individuais muito próximos destes que jamais se revelaram e que, portanto, dificilmente serão registrados pela história), não ficou sabendo até as próprias autoridades portuguesas denunciarem os "criminosos" e assassinarem Tiradentes para que ninguém ousasse repetir a tentativa.

E o que aconteceu com o movimento após a morte de Tiradentes?

A morte do Tiradentes é um aspecto que, por si só, não pode dizer os destinos do movimento, pois, como eu havia citado, possivelmente ele não era nenhum tipo de liderança maior, não era chefe dos outros inconfidentes. No entanto, todo o movimento foi desarticulado, já que outras pessoas foram presas, expulsas do país, etc.
A Inconfidência é derrotada por Portugal antes de poder fincar raízes profundas. Talvez seja um trabalho ainda a ser realizado pelos historiadores a identificação de alguma herança desse movimento. Se houve, ainda não foi registrada pela "história oficial", mas acredito que, pela falta de trabalho popular, origem social dos dirigentes, propaganda portuguesa criando uma imagem dos conspiradores enquanto criminosos, etc. toda essa fama de Tiradentes e da Inconfidência Mineira seja realmente, como eu disse acima, uma reconstrução já dos tempos republicanos.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

A chocante desigualdade social nos EUA

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400 norte-americanos tornaram-se financeiramente mais ricos que metade da população do país

"A desigualdade norte-americana começou a crescer há trinta anos, impulsionada por reduções de impostos para os ricos e relaxamento das regulamentações do mercado financeiro. Não é coincidência. O fenômeno foi agravado devido a investimentos insuficientes em infraestrutura, educação e saúde, e em redes de seguridade social. O aumento da desigualdade avança em espiral, ao corroer o sistema político e a governança democrática."
(Joseph Stiglitz)

Abaixo vídeo explicativo de como cresce a desigualdade na "terra da liberdade".


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Como a FIFA tenta impor o futebol anti-povo

Ambulantes protestam pelo direito de vender comidas e bebidas no entorno dos estádios em Recife, durante a Copa do Mundo (Foto: Victor Soares/Leia Já Imagens/Estadão Conteúdo)


Golpeando Constituição, direito ao Trabalho e tradição brasileira, entidade quer excluir, de estádios e centro das cidades, os camelôs e seus produtos. Há resistência 
Por Ciro Barros e Giulia Afiune
“Estamos sendo constantemente ameaçados pela Prefeitura do Recife e tememos que o quadro fique mais grave com a aproximação da Copa do Mundo. Mas nós não vamos recuar um passo.” Assertivo, Severino Souto Alves, presidente do Sintraci (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal do Recife), se exalta ao falar da situação dos trabalhadores ambulantes na capital pernambucana.
Desde outubro de 2013, o Sintraci – criado em dezembro de 2012, para se contrapor aos possíveis impactos negativos da Copa do Mundo – convocou dez manifestações em diversos pontos da Região Metropolitana do Recife; foram seis só nos últimos dois meses. Reivindicam a garantia de permanência de vendedores ambulantes em alguns pontos da cidade (como os bairros da Casa Amarela e da Boa Vista, por exemplo), a construção de shoppings populares, mais diálogo com a administração do prefeito Geraldo Julio (PSB) e a exoneração de João Braga, secretário de Mobilidade e Controle Urbano, órgão responsável por disciplinar o comércio informal em Recife.
Protesto de trabalhadores ambulantes no dia 11 de abril de 2014 pede a saída do secretário de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga. (Foto: Facebook Sintraci)
“Todas as negociações [com a secretaria] são feitas de forma a restringir o comércio informal”, afirma Severino. Segundo ele, mais de 300 comerciantes já tiveram suas barracas retiradas de vários pontos da cidade e sem realocação alguma.
A chegada da Copa do Mundo acirra a tensão entre trabalhadores ambulantes e as Prefeituras. Um dos pontos críticos é o estabelecimento de áreas de restrição comercial durante os eventos oficiais da FIFA (desde jogos até os congressos da entidade). Desde o dia anterior a qualquer um desses eventos, leis e decretos criados especificamente a Copa do Mundo passam a vigorar nessa áreas.
Criadas para proteger os interesses dos patrocinadores da Copa, as Áreas de Restrição Comercial foram definidas na Lei Geral da Copa (12.663/2012) que atribuiu a regulamentação dessas áreas aos municípios-sede, o que já foi feito em sete sedes:BrasíliaFortalezaNatalRecifeRio de JaneiroSalvador  e São Paulo. (Veja os mapas abaixo)
As áreas são delimitadas por linhas imaginárias – não há barreiras físicas – e governadas pelas regras da FIFA, em alguns casos, revogando as leis municipais sobre comércio (incluído o ambulante), promoções e publicidade. O objetivo é dar à FIFA o direito de conduzir essas atividades nas áreas de grande concentração de torcedores – e de exposição na televisão -, garantindo aos seus patrocinadores exclusividade comercial e publicitária.
Na capital pernambucana, além do entorno da Arena Pernambuco, que fica no município de São Lourenço da Mata, uma série de ruas e avenidas como as da Boa Viagem, Conselheiro Aguiar e Domingos Ferreira (na orla da Praia de Boa Viagem) e um bairro inteiro – chamado Bairro do Recife – foram incluídos na área de restrição pelo decreto municipal 27.157/2013, sancionado pelo prefeito Geraldo Julio a dez dias do início da Copa das Confederações, no ano passado. Em seu artigo 6º, o decreto determina: “Não será autorizado qualquer tipo de comércio de rua na Área de Restrição Comercial nos dias de Evento e em suas respectivas vésperas, salvo se contar com a prévia e expressa manifestação positiva da FIFA.” Brasília e Fortaleza têm artigos idênticos em seus respectivos decretos.
“É preocupante, porque são áreas onde o comércio ambulante atua sempre aqui no Recife”, diz Severino. Em nota publicada em 8 de abril passado, a Prefeitura afirmou que recebeu o sindicato 38 vezes desde janeiro de 2013 para conversar e que vem tocando negociações em pontos reivindicados pelos ambulantes.

Falta de diálogo e indefinição

Em Fortaleza, o vice-diretor da Aprovace (Associação Profissional do Comércio de Vendedores Ambulantes do Estado do Ceará), Guilherme Caminha, reclama da falta de diálogo. “Estamos tentando sentar para conversar desde o início do ano com a Prefeitura para saber como vão funcionar as coisas na Copa do Mundo e não temos respostas”, afirma. “A área do [estádio] Castelão e o centro da cidade são importantes para a gente e esperamos que haja diálogo para podermos atuar por ali. Até agora as únicas informações que eu tenho são as que você me conta”, ele disse ao nosso repórter.
Segundo dados da ONG Streetnet, cerca de 52 mil vendedores informais trabalham na capital cearense. Para a Copa das Confederações, em 2013, foram oferecidas aos ambulantes 250 vagas no entorno do Castelão e no Polo Urbanizado da Lagoa de Messejana. “No fim deste mês vencem as permissões que nós temos para trabalhar lá e nós não sabemos o que vai acontecer. Até agora a prefeitura só apreendeu nossas mercadorias. Só vejo eles perseguindo os ambulantes, mas não ofereceram espaço nenhum para a gente”, afirma Caminha.
Já em Belo Horizonte, as barracas que desde os anos 1960 vendiam feijão tropeiro e outras comidas típicas no entorno do Mineirão foram retiradas em 2010, quando começou a reforma do estádio para a Copa do Mundo. Há quatro anos os barraqueiros não têm trabalho garantido (Leia a história completa aqui).
“Para nós, a Copa foi acompanhada de desemprego e falta de renda”, desabafa Selma Salvino da Silva, presidente da Abaem – Associação dos Barraqueiros da Área Externa do Mineirão -, que também representa outros trabalhadores ambulantes da cidade. Ela conta que, durante a Copa das Confederações, quem decidia trabalhar nos arredores do estádio tinha que fazê-lo ilegalmente, correndo o risco de ter mercadorias apreendidas pela fiscalização. Além disso, a polícia bloqueou a entrada para a Avenida Antônio Abrahão Caran, principal via de acesso ao Mineirão, o que manteve os ambulantes a pelo menos 1 km de distância do estádio.
No dia 9 de julho de 2013, logo após as manifestações que marcaram o país, o governador Antonio Anastasia se reuniu com militantes no Palácio da Liberdade e fez promessas aos ambulantes: “Estamos falando de trabalhadores e familiares. Vou me esforçar para resolver a situação deles o quanto antes. Vamos quebrar a cabeça pra isso”.
“Tem sempre muita luta e muita reunião”, diz Selma, apontando a falta de resultados efetivos apesar das inúmeras audiências que a Abaem teve com assessores do governo do estado, Ministério Público, Secretaria municipal da Copa, BH Trans (Empresa de Transporte e Trânsito de BH), Defensoria Pública e Polícia Militar, entre outras entidades. A última reunião foi no dia 19 de março e as negociações seguem em andamento.
Na Copa do Mundo, os ambulantes querem autorização para vender no entorno do estádio ou pelo menos nas áreas de fan fests (eventos oficiais de exibição pública dos jogos nas cidades-sede). “A gente espera uma negociação pacífica e uma resposta dos órgãos competentes. Quando a gente perceber que não vai ter negociação nem articulação, aí vamos fazer uma ocupação”, alerta Selma.
Até agora não se sabe nem exatamente qual será a área de restrição comercial em Belo Horizonte. Em dezembro de 2013, seis meses depois da Copa das Confederações, Belo Horizonte aprovou a Lei nº 10.689, estabelecendo que o comércio de rua nas imediações e principais vias de acesso ao estádio seguirá as determinações da Fifa em acordo com a prefeitura, não sendo aplicáveis as normas municipais sobre o assunto. Mas não definiu o perímetro das áreas de restrição, o que terá que ser feito por meio de um decreto. Questionada sobre a demora em definir as áreas de restrição comercial e sobre seu posicionamento em relação aos ambulantes, a Secretaria da Copa de Belo Horizonte não respondeu até o fechamento da reportagem.
A serviço dos patrocinadores
O Fórum dos Ambulantes de São Paulo, que reúne membros de sindicatos, associações e coletivos ligados aos trabalhadores ambulantes, atua desde 2011 em conjunto com o Comitê Popular da Copa de São Paulo para garantir os direitos dos trabalhadores ambulantes na capital paulista. Em junho de 2012, com assistência jurídica do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, o Fórum conseguiu uma liminar revogando as cassações de Termos de Permissão de Uso (TPUs) feitas pelo prefeito Gilberto Kassab (PSD) naquele ano. Na decisão da juíza Carmen Oliveira, da 5ª Vara da Fazenda Pública, aparece o número de licenças cassadas: 4 mil.
A liminar foi derrubada pela Prefeitura ainda em 2012, mas os ambulantes conseguiram reestabelecê-la no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 16 de maio de 2013, uma audiência pública definiu que o processo seria suspenso por 180 dias para a elaboração de um plano municipal para o comércio ambulante. Com esse objetivo, foi criado, em setembro, o Grupo de Trabalho dos Ambulantes, composto por representantes dos ambulantes, da sociedade civil e do poder público, e coordenado pela Secretaria de Coordenação das Subprefeituras.
Esse plano ainda não foi lançado, mas o Grupo de Trabalho dos Ambulantes tem funcionado como espaço de articulação de um acordo entre SP Copa (Secretaria Municipal da Copa), FIFA, Secretaria de Coordenação das Subprefeituras e Fórum dos Ambulantes para garantir trabalho aos ambulantes durante a Copa do Mundo. ”Estamos negociando para que os ambulantes vendam produtos das empresas patrocinadoras da Copa no entorno do estádio, na fan fest e nos outros cinco eventos de exibição pública”, diz André Cintra, assessor de imprensa da SP Copa.
Porém, o decreto nº 55.010, publicado na quinta-feira passada, afirma apenas que a FIFA possui o direito sobre o comércio de rua nas áreas de restrição comercial nos dias de eventos oficiais e nas vésperas, sem detalhar como isso vai acontecer.
“Vai ter ambulante na Copa. Isso está fechado. É uma coisa boa para o ambulante, boa para quem está nas ruas. Para a Ambev e para a Coca-Cola, o que importa é vender a latinha, então quanto mais ambulantes houver, melhor”, afirma Cintra. Segundo ele, o número de ambulantes que poderão atuar nesse esquema e a logística ainda estão sendo discutidos pelo Grupo de Trabalho, mas deve ficar em torno de 400 postos de trabalho.
Esse esquema conta com as benção da FIFA, que declarou: “Em 2013, por meio de uma iniciativa inédita, a FIFA e COL autorizaram que quatro Sedes da Copa das Confederações da FIFA Brasil 2013, em conjunto com os patrocinadores oficiais, implementassem um projeto com ambulantes, que foram previamente selecionados, treinados e devidamente credenciados para atuação nas imediações dos estádios nos dias dos jogos. Para a Competição em 2014, a FIFA e COL, juntamente com outros atores relevantes, têm estimulado as autoridades locais e patrocinadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2014™ a desenvolver e implementar projeto semelhante. É importante notar que, mesmo que seja conduzido um programa de qualificação para os vendedores do setor informal pelas autoridades locais, a atuação dependerá de autorização prévia e deverá ser fiscalizada nos dias dos jogos, a fim de garantir o mínimo impacto para as operações e, sobretudo, proteger aqueles que consumirão os produtos em questão.”

Na boca do Itaquerão

O assessor de imprensa da SP Copa também reconheceu as limitações da comunicação da prefeitura com os vendedores que estão hoje no entorno do estádio do Corinthians, o Itaquerão. Ali, os ambulantes trabalham em meio aos canteiros de obras sonhando com as oportunidades oferecidas pela Copa do Mundo ao mesmo tempo que convivem com a total falta de informação, como apurou a reportagem da Pública em visita à Arena Corinthians no dia 3 de abril. “O pessoal tá querendo montar um negocinho aqui, arrumar um cantinho para vender. Só que perto não vai poder ficar”, diz Elisângela Soares de Melo, que há duas semanas vende água, refrigerante e sorvete para os operários e visitantes do Itaquerão.
“No começo do ano, fomos na prefeitura pedir uma licença para trabalhar aqui, mas eles disseram que ninguém ia ficar na frente do estádio porque lá dentro vai ter um shopping que vai atender às necessidades dos torcedores”, relata Josi dos Santos, que trabalha lá há três meses. “Se ninguém se opuser, estaremos aqui. Mas a gente não sabe o que vai acontecer”, resume Valéria Nogueira, ambulante no local há um ano.

‘A FIFA tem poder de município’

“Uma vez que as atividades não autorizadas concentram-se, invariavelmente, no entorno dos estádios e outros Locais Oficiais de Competição, focando no grande número de torcedores que transitam em tais regiões, as Áreas de Restrição Comercial tornam-se, operacionalmente, essenciais para a organização da Copa do Mundo da FIFA”, afirma o departamento de imprensa da entidade, alegando que os ambulantes podem “atrapalhar o fluxo de pessoas e de carros na chegada aos jogos, além de trazer problemas para as equipes de segurança”.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (SP), Martim de Almeida Sampaio, que fez um estudo sobre a Lei Geral da Copa, critica o que considera a criação de tipos penais inexistentes para garantir os privilégios da FIFA e de seus patrocinadores. “Há três crimes novos nessa legislação: proteção à marca FIFA, marketing de emboscada por associação e [marketing de emboscada] por intrusão. Eu pesquisei: pelo Direito Comparado não existem essas três figuras penais nos principais sistemas legais”, afirma. O marketing de emboscada por associação é quando alguém divulga marcas, produtos ou serviços e os associa aos eventos ou símbolos oficiais da FIFA, sem a autorização dela. Já o marketing de intrusão ocorre quando alguém faz uma promoção de produtos, marcas e serviços nos locais de competição, sem se associar ao evento, mas chamando a atenção do público. Os crimes estão definidos nos artigos 32 e 33 da Lei Geral da Copa e têm penas previstas de três meses a um ano de detenção.
“O Direito Penal é um campo do Direito cujo objeto tutelado é a sociedade. Por exemplo, existe uma lei que diz que matar é crime. Isso está protegendo quem? Alguma pessoa específica? Não, está protegendo a sociedade. A Lei Geral da Copa é um caso de Direito Penal de autor. Não se está protegendo a sociedade, mas se está protegendo as marcas da FIFA”, argumenta.
“Essa lei declara um autêntico estado de sítio. A soberania nacional foi posta de lado. A Constituição Federal declara a nossa liberdade comercial e a Lei Geral da Copa delimita áreas onde a FIFA é responsável por determinar quem [pode comercializar] e o que pode ser comercializado”, critica o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Sobre os ambulantes, diz: “a FIFA agora assume a postura de legislador municipal e tem o poder de proibir inclusive os vendedores ambulantes que estão devidamente regularizados”.
“Transferir para a FIFA o papel de gestão de um espaço urbano dentro da cidade é muito grave”, reitera Orlando Santos Jr., sociólogo doutor em Planejamento Urbano e pesquisador do Observatório das Metrópoles. “Quem legitimou essa autoridade para que a FIFA possa regular o espaço público de uma parte da cidade? Há também um impacto sobre o direito dos cidadãos de se apropriarem da cidade na qual vivem. Eu estou com o meu direito cerceado por uma lei de exceção que não me permite a apropriação desse espaço durante um certo período. Cria-se um precedente do ponto de vista de subordinar a gestão do espaço público a interesses privados”, diz Orlando.
Sobre os ambulantes, é taxativo: “As medidas de restrição ao comércio ambulante sinalizam como uma restrição ao próprio direito ao trabalho, garantido pela Constituição. Está se criando uma restrição específica a certo grupo social, portanto, a meu ver, restringindo seu direito ao trabalho”, diz Santos Jr.
O coordenador do programa de justiça da ONG Conectas, Rafael Custódio, tem a mesma percepção: “Uma coisa é a FIFA querer regular as áreas onde o evento acontecerá, outra coisa é querer regular o espaço público do entorno. Regulamentar dessa maneira o entorno dos estádios é absolutamente ilegal e abusivo. O interesse de uma entidade privada se sobrepõe a uma série de direitos fundamentais e sobretudo ao interesse público”, afirma.
A FIFA afirmou por meio de nota que “as áreas de restrição não são uma medida inédita ou exclusiva da Copa do Mundo da FIFA™ ou da Copa das Confederações da FIFA. É usual que eventos de grandes proporções (e não apenas esportivos) contem com áreas nas quais determinadas atividades comerciais não são permitidas. Trata-se de medida lógica e necessária para a preservação da ordem e da legalidade em um evento que atrairá milhões de pessoas”.
Veja os mapas das cidades-sede com as Áreas de Restrição Comercial definidas:
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.

Fonte: A Pública

terça-feira, 22 de abril de 2014

A literatura predileta de Lenin

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Por Nadezhda Krupskaya*

O camarada que me apresentou a Vladimir Llich disse-me que ele era um homem muito instruído, que lia unicamente livros científicos, que não tinha folheado na vida uma novela, nem lido uma poesia. Fiquei assombrada. Em minha juventude tinha lido e relido todos os clássicos, sabia de memória quase todo Lérmontov e outros poetas, alguns escritores, como Tchernishevski, León Tolstoi e Uspenski, significavam muito em minha vida. Pareceu-me raro que existisse uma pessoa à qual tudo isto não interessava em nada. 

Em seguida, no trabalho, conheci de perto Lenin, conheci sua opinião a respeito das pessoas, pude observar a atenção com que estudava a vida e os homens, e o Llich vivo apagou a imagem do homem que nunca abria um livro dos que falavam da vida das pessoas. 

Não obstante, as circunstâncias não nos permitiram encontrar tempo, então, para falar nesse assunto. Depois, já na Sibéria, pude ver que Lênin conhecia os clássicos tão bem quanto eu. A Turguéniev, por exemplo, tinha relido-o várias vezes. Levei comigo à Sibéria as obras de Pushkin, Lérmontov e Nekrásov. Vladimir Llich colocou-as próximo de sua cama, ao lado de Hegel, e pelas noites relia-as uma e mais vezes. Seu escritor predileto era Pushkin. Mas não se vá pensar que apreciava unicamente a forma. Por exemplo: agradava-lhe a novela de Tchernishevski Que fazer?, apesar de sua forma ingênua e de escasso valor literário. Surpreendeu-me a atenção com que lia essa novela, captando os mais sutis matizes da mesma. Certamente, amava a imagem mesma de Tchernishevski, e em seu álbum da Sibéria havia duas fotografias desse escritor, numa das quais Llich escrevera, com sua própria letra, a data do nascimento e a da morte do escritor. Havia também no álbum de Vladimir Llich fotografias de Emile Zola e dos escritores russos Herzen e Písariev, e tomara-lhes afeição. Recordo que tínhamos também na Sibéria oFausto de Goethe, em alemão, e um pequeno volume de poesias de Heine. 

Em Moscou, de regresso da Sibéria, Vladimir Llich foi ao teatro para ver O Cocheiro Henshel e depois me disse que a obra lhe agradara muito. 

Entre os livros que agradaram a Llich em Munich, recordo a novela de Gerhardt, Bei mama (Em Casa da Mãe) e Büttnerbaeur (Camponeses), de Polenz. 

Posteriormente, durante o segundo período de emigração, em Paris, Llich lia com prazer os versos de Victor Hugo, Châtiments, consagrados à revolução de 1848. Victor Hugo escreveu esses versos no exílio e eram introduzidos na França clandestinamente. Neles abunda uma ingênua pomposidade, mas, de qualquer maneira, percebe-se o hálito da revolução. Llich frequentava com prazer os cafés e teatros dos arredores para ouvir oschansoniers revolucionários, que cantavam nos bairros operários a respeito de tudo: dos camponeses que, quase bêbados, elegeram deputado um agitador que estava de passagem; da educação dos filhos; do desemprego operário, etc. A Llich agradava, sobretudo, Monteguse. Esse, filho de um communard, era o ídolo dos arrabaldes operários. É verdade que em suas improvisações, cheias de colorido popular, não havia uma ideologia concreta, mas sim muita e sincera paixão. Llich cantava com frequência sua saudação ao 17° Regimento, que se negou a abrir fogo contra os grevistas: "Salut, salut a vous, soldats du 17-eme" ("Saúdo-os, saúdo-os, soldados do 17º Regimento"). Certa ocasião, numa noitada organizada pelos russos, Llich entabulou conversa com Monteguse, e causava estranheza ver que aqueles dois homens tão diferentes — posteriormente, ao estalar a guerra, Monteguse passou-se para o campo dos chauvinistas — sonhavam juntos com a revolução mundial. Assim ocorre, às vezes, quando se encontram num mesmo vagão pessoas que apenas se conhecem e se põem a falar, acompanhadas pelo barulho das rodas, das coisas mais íntimas, daquilo que não disseram nunca em qualquer outra ocasião, e em seguida separam-se para não se voltarem a ver em toda a vida. Assim ocorreu naquela vez. Além disso, falavam em francês e num idioma estranho sempre resulta mais fácil em sonhar em voz alta do que na língua materna. Servia à nossa casa, por umas duas horas ao dia, uma criada francesa. Llich ouviu-a certa ocasião cantar uma canção. Era uma canção alsaciana. Ele pediu à mulher que a cantasse novamente e lhe ditasse a letra, e em seguida costumava cantá-la ele mesmo. A canção terminava assim:

vous avez pris l'Alsace et ia Lorraine. 
Mais malgré vous nous resterons français, 
Vous avez pu germaniser nos plaines, 
Mais notre coeur - vous ne l'aurez jamais!

(Tomastes a Alsácia e a Lorena
mas, apesar de vós, continuaremos sendo franceses;
pudestes germanizar nossos campos,
mas nosso coração jamais será vosso!)
Isso aconteceu em 1909, época de reação, na qual o Partido fora destroçado, mas seu espírito revolucionário não fora quebrado. Esta canção correspondia ao estado de ânimo de Llich. Era preciso ouvir quando triunfalmente soavam em seus lábios as palavras: 

Mais notre coeur — vous ne l’aurez jamais! 

Durante aqueles anos de exílio, os mais duros — Llich falava sempre deles com ódio, já de regresso na Rússia, repetiu uma vez mais o que dissera antes em mais de uma ocasião: 

— Por que nos trasladaríamos então de Genebra a Paris? — Foi quando sonhava com maior firmeza. Sonhava ao conversar com Monteguse, sonhava ao cantar, triunfante, aquela canção alsaciana e, nas noites de insônia, extasiava-se na leitura de Verbaeren. 

Posteriormente, depois da guerra, Vlaldimir Llich apaixonou-se pelo livro de Barbusse, Le Feu (O Fogo), ao qual atribuía uma importância enorme. Esse livro correspondia muito ao estado de ânimo que o dominava então. 

Raras vezes íamos ao teatro. Acontecia que o pouco mérito da obra ou as notas falsas que soavam na interpretação dos atores irritavam Vladimir Llich. Quase sempre íamos ao teatro e saíamos ao terminar o primeiro ato. Os camaradas riam-se de nós, dizendo que aquilo era jogar dinheiro fora. 

Mas, uma vez, Llich ficou até o fim. Creio que foi em fins de 1915, quando em Berna representaram a obra de León Tolstoi O cadáver vivo. Embora a representação fosse feita em alemão, o ator que desempenhava o papel do príncipe era russo e soube fazer chegar ao público a idéia de Tolstoi. Llich acompanhava com atenção, muito emocionado, todas as peripécias da obra. 

E, finalmente, na Rússia. A nova arte parecia a Llich estranha e incompreensível. Em certa ocasião convidaram-nos a assistir a um concerto que se dava no Kremlin para os soldados vermelhos. Colocaram Llich numa das primeiras filas. A artista Gzovskaya recitava Maiakovski: "Nosso deus é a marcha, e o coração, nosso tambor", e deu alguns passos em direção a Llich, que se sentiu perturbado, surpreso, confuso. Quando a Gzovskaya sucedeu um artista que recitou O Criminoso de Tchékhov, Llich respirou aliviado. 

Uma tarde, Llich sentiu o desejo de ver como vivia uma comuna juvenil. Resolvemos visitar Varia Armand, conhecida professora que estudava nos Estudos Superiores de Artes Aplicadas. Acredito que foi no dia do enterro de Kropotkin, em 1921. Aquele foi um ano de fome, mas entre os jovens reinava o entusiasmo. Na comuna dormiam quase sobre tábuas nuas e não tinham pão. "Mas temos trigo", disse-nos, radiante, o comuneiro de guarda. Daquele trigo fizeram para Llich um mingau estupendo, embora não tivessem sal. Llich olhava os jovens, olhava os resplandecentes rostos dos jovens artistas que o rodeavam e a alegria deles refletia-se em seu semblante. Mostraram-lhe seus cândidos desenhos, explicavam-lhe seu significado e faziam-lhe mil perguntas. Mas Llich ria, evitava a resposta e perguntava por sua vez: "Que lêem vocês? Lêem Pushkin?", "Oh, não” — exclamou alguém — “esse era um burguês! Nós lemos Maiakovski." Llich sorriu. "Pushkin” — disse — “parece-me melhor". Depois disso, Llich via com melhores olhos Maiakovski. Ao ouvir este nome lembrava sempre os jovens... cheios de vida e de alegria, dispostos a morrer pelo Poder Soviético e que não encontravam palavras na linguagem contemporânea para expressar-se e por isso buscavam-nas nos poucos compreensíveis versos de Maiakovski. Posteriormente, Llich elogiou Maiakovski por seus versos ridicularizando os burocratas soviéticos. Recordo que, das obras contemporâneas, Llich gostou de uma novela de Ehrenburg que descrevia a guerra. "Sabes, Llya, o Cabeludo (esse era o apôdo de Ehrenburg) — disse, muito contente — saiu-se muito bem!". 

Fomos várias vezes ao Teatro de Arte. Uma vez fomos ver O Dilúvio. Llich ficou fascinado. No dia seguinte, quis ir novamente ao teatro. Representavam A Ralé, de Gorki. Llich admirava Alexéi Maxímovich como pessoa, com a qual havia sentido afinidade no Congresso de Londres, admirava-o como artista e considerava que, como escritor, bastavam a Gorki poucas palavras para compreender muitas coisas. Era extraordinariamente franco com Gorki. Por isso Llich era muito exigente com os atores que representavam obras de Gorki. O excessivo teatralismo da representação irritou-o. Depois de ver A Ralé deixou de ir ao teatro durante muito tempo. Fomos também certa ocasião ver O Tio Vânia, de Tchékhov. Agradou-lhe. Finalmente, fomos ao teatro pela última vez em 1922, ver O Grilo na Estufa, de Dickens. Depois do primeiro ato, Llich já sentia tédio, o sentimentalismo pequeno-burguês de Dickens irritava-o, e, quando começou o diálogo do velho gracejador com sua filha cega, não pôde aguentar mais e abandonou a platéia na metade do ato. 

Durante os últimos meses da vida de Ilich, a pedido seu, eu lia para ele literatura amena, habitualmente às tardes. Lia para ele Schedrín, As Minhas Universidades, de Gorki. Além disso, agradava-lhe ouvir poesia, particularmente as de Demián Biedni. Mais do que os versos satíricos de Demián, porém, agradavam-lhe os versos cheios de ênfase. 

Quando lhe estava a ler os versos, costumava ele olhar pensativamente pela janela o sol poente. Recordo uns versos que terminavam com as palavras: "Nunca, nunca serão escravos os communards". 

Ao ler estes versos, parecia-me estar jurando a Llich: 

"Nunca, nunca entregaremos uma só conquista da revolução".  

Dois dias antes de sua morte, li para ele à tarde um conto de Jack London — continua em cima da mesa em sua casa — intitulado Amor à vida. É uma obra muito forte. Por um deserto nevado, que jamais fora pisado antes por alguém, marcha em direção a um porto de um grande rio um homem enfermo, que está morrendo de fome. O homem perde suas forças e já não caminha, arrasta-se, e ao lado arrasta-se um lobo que também morre de fome. O homem e a fera travam uma porfiada luta. O homem vence: mais morto que vivo, quase louco, chega a seu destino. O conto agradou extraordinariamente a Llich. No dia seguinte, pediu-me que lesse mais contos de London. Nos livros de Jack London, porém, as obras fortes alternam com outras muito fracas. O conto seguinte era muito diferente, estava impregnado de moral burguesa: um capitão prometeu a seu armador vender lucrativamente um barco carregado de trigo; o capitão sacrifica sua vida para cumprir sua palavra. Llich pôs-se a rir e fez um gesto de enfado. 

Não pude voltar a ler para ele ...


Extraído de Recordações de seus familiares a respeito de Lenin, Gospartizdat, 1955.
* Nadezhda Krupskaya - Revolucionária e pedagoga, após o triunfo da revolução socialista de 1917m foi coordenadora do Glavpoliprosvet (o Comitê Principal para Educação Política) e delegada coordenadora no Comissariado para a Instrução Pública, militante bolcheviue e membro do Comitê Central do Partido Comunista da Rússia, esposa e camarada de Lenin.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A União da Latinoamerica de Calle 13 - download da discografia completa



Por Alexandre Martins


O grupo porto-riquenho Calle 13, cujo nome, formação e país de origem são por si só extremamente simbólicos da relação latino-americana especialmente com a América do Norte, desenvolve na letra de “Latinoamerica” um percurso crítico que perpassa desde a história de exploração da parte latina da América pelos europeus até os elementos mais sutis, poéticos e de resistência que sustentam a existência dessa parte do continente. As imagens presentes na letra compõem um quadro por meio do qual é possível chegar a uma síntese da complexidade e das contradições que engendraram e construíram os povos e os espaços latino-americanos. 

Antes de analisarmos as imagens propriamente ditas, é importante ressaltar rapidamente a estrutura em torno da qual a letra se constrói: vê-se uma nítida divisão da música em dois pólos semânticos, de modo que de um lado organiza-se um 'eu', que se define, afirma-se, critica e provoca; e, de outro lado, configura-se um 'tu-você', que se constitui como um vocativo com quem aquele 'eu' mantém uma interlocução questionadora e desmistificadora do que o 'tu' pensa desse 'eu'. Enquanto as estrofes apresentam a auto-definição do latino-americano, o refrão é o espaço em que há a crítica ao 'tu' e à postura materialista e monetarista dele. A música começa afirmando pela própria boca da América Latina (que, portanto, é personificada) que ela é o que ficou de um todo ou de uma quantidade. Que ela seria o resto, a que foi deixada e abandonada. Em seguida, define-a como uma irônica contradição; a América Latina estaria escondida num topo: tão à mostra, estando, no entanto, tão oculta. É definida como alguém cujo trabalho gera o que o outro consome, alguém cujo produto do trabalho, por exemplo, o fumo, é sempre responsável pelo prazer alheio, nunca o próprio. Na sequência, a América Latina é definida como a errante, a errada, a que vem em momento impróprio, ou a que vem para aplacar algo caótico, como a delicadeza surgindo em meio à violência. Afora isso, também seria o cotidiano – a rotina – a perenidade. A música argumenta que o desenvolvimento dela, da América Latina, passa sempre pela sua própria carne, sugerindo que qualquer desenvolvimento do continente deveria ser endógeno, posto os interesses exógenos quererem sempre aproveitar da situação não para desenvolver a América Latina de fato, mas para explorá-la ainda mais e, o que é pior, em nome de um pseudo desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o continente latino-americano teria, em meio a essa perspectiva promíscua da qual os outros a veem, poesia, sutileza e arte. Seria como uma espécie de discurso seco, sem empolação, sem incremento, sem floreios, sem pomposidade, mas bonito, belo e simpático. A América Latina seria ainda a saudade, os vestígios daquilo que um dia já foi, mas paradoxalmente também o alimento do outro (no caso, o explorador). 


A América Latina seria humilde, simples, mas ousada, corajosa, tendo sua síntese em sua terra e em seu trabalho. Já próximo ao refrão, acentuam-se o empenho e a luta isolada e solitária da América Latina: ela levanta suas próprias bandeiras, suas causas, pois a depender dos outros, nenhuma bandeira seria levantada. Cria-se um paralelo entre um aspecto geográfico e um aspecto cultural: o povo latino-americano seria resistente, pois teria aprendido com a espinha dorsal presente em seu território: a cordilheira dos Andes. As tradições, os ensinamentos e a família são outros traços dos povos originários que, segundo a música, teriam ficado como herança para a América Latina, que não ignoraria tal legado, pois se o fizesse se comportaria como alguém que ignorasse a própria mãe. Uma das imagens mais síntese ocorre quando a letra afirma que a América Latina é um povo sem pernas, posto terem tirado-as, mas que caminha e que faz, portanto, o impossível. No refrão, enfim, alega-se que o 'você' mantém uma relação apenas comercial com o 'eu', mas que há coisas que este 'você' não pode incluir neste comportamento: são os elementos da natureza e os sentimentos, posto não serem compráveis. 


A letra termina, em sua segunda parte, trazendo elementos culturais, religiosos e poéticos da América Latina e acentuando a luta e a insistência latino-americana em refazer o que os outros sempre desfizeram. Seríamos, então, brutos, por um lado, posto serem brutos conosco, mas, por outro, seríamos, sobretudo, sutis e caridosos. E não guardaríamos vingança, embora não teríamos tido como esquecer, no exemplo citado na música, a operação Condor. A letra termina reafirmando que a América Latina caminha, luta, apesar e acima de tudo. E reitera a oposição entre elementos tangíveis (compráveis), em oposição aos intangíveis (não consumíveis, não 'monetarizáveis'). Podemos dizer que todos esses motivos somados acabariam por criar as condições favoráveis para que a América Latina 1) teça a união defendida por Bolívar e Martí e 2) defenda sua sobrevivência por meio do pensamento proposto por Mariátegui, ou seja, focalizando seu desenvolvimento na criação das próprias ideias e não apenas insistindo em reproduzir as dos outros.

Clipe legendado de Latinoamerica




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Fonte: Motopangea