quinta-feira, 13 de março de 2014

(IN)SEGURANÇA PÚBLICA: A crise nas UPPs


Por Sylvia Debossan Moretzsohn

A crise das UPPs é o nosso tema. Crise das UPPs e também o jornalismo, a julgar pela manchete do Globo de quarta-feira (12/3), que anuncia um ataque a policiais na Rocinha. Só esquece de dizer que essa agressão ocorreu no dia 25 de dezembro, portanto há quase três meses. Essa informação só aparece no texto da página interna.
Que interesses estarão por trás de uma atitude dessas, que subverte completamente as normas elementares do jornalismo e confunde deliberadamente o leitor?
O vídeo que mostra a agressão foi captado por uma câmera de segurança e exibido no Jornal Nacional de terça-feira (11). Foi apenas o mais recente capítulo de uma série de reportagens sobre os problemas que as Unidades de Polícia Pacificadora vêm enfrentando. Na semana passada, dois policiais foram mortos no Complexo do Alemão. Em dois meses, já são três assassinatos semelhantes, na mesma região.
Diante disso, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, chegou a anunciar a possibilidade de apelar às Forças Armadas e à Polícia Federal para uma nova ocupação desse conjunto de favelas, onde tem ocorrido a maioria dos conflitos.
Mas nem assim a imprensa aceita falar em crise. Pelo contrário, O Globo abriu espaço para artigos que defendem a necessidade de apoio ao projeto e alertam para o perigo de desvalorização da polícia, especialmente num ano eleitoral. Como se a “pacificação” não fosse um trunfo a ser utilizado pelos candidatos favoráveis ao atual governo.
Em seu editorial de terça-feira, inclusive, O Globo estimula a polícia a uma resposta dura, “até desproporcional”, aos ataques sofridos pelos agentes de segurança.
Resposta desproporcional é normalmente o que o Estado costuma dar. Aliás, não foi diferente no episódio que vitimou a soldado Alda Rafael Castilho, em 2 de fevereiro, também na região do Alemão: foram seis mortos em contrapartida, todos de jovens, alguns sem passagem pela polícia. No dia seguinte, o jornal ouviu um legista que levantou a hipótese de que alguns dos mortos tenham sido executados.
Mas desproporção pouca é bobagem: em 2007, nos tempos anteriores à UPP, o assassinato de dois soldados foi o pretexto para o cerco ao Complexo do Alemão. A operação durou três meses e resultou em 44 mortos – 19 num só dia.
A questão de fundo é a legalização das drogas
Todo mundo se lembra das reportagens que trombeteavam a “retomada do território” nos morros do Alemão e da Rocinha, onde ocorriam os principais conflitos entre facções de traficantes, e entre traficantes e policiais.
Conflitos nunca deixaram de ocorrer, mas eram minimizados pela imprensa, que procurava vender uma imagem positiva das UPPs. Os veículos das Organizações Globo, em geral, atuaram e continuam atuando como porta-vozes desse projeto.
Mas a situação foi piorando desde o ano passado. Em maio, um tiroteio retardou a corrida batizada de “Desafio da Paz”, no Alemão. Em junho, a sede do grupo AfroReggae foi incendiada. No Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, e na Rocinha, tiroteios voltaram a ser frequentes. Mas em todas essas ocasiões o noticiário sustenta a versão da fonte oficial: se isso está acontecendo, é sinal de desespero dos traficantes diante do sucesso das UPPs. Ou seja, quanto mais mortes ocorrerem, mais correta estará essa política.
Mas como é possível dizer que existe resistência dos traficantes, se eles supostamente fugiram com a chegada das UPPs?
Nesse meio tempo, desapareceu o pedreiro Amarildo, mas esse caso vem sendo tratado como um desvio de rota. Na época, o secretário Beltrame disse que esse episódio não arranhava a imagem das UPPs.
É claro: nada arranha a imagem das UPPs, tão bem cuidadas por essa agência de propaganda mal disfarçada de jornalismo, e que deu o ar de sua graça novamente agora, quando o Globo “atualiza” um fato ocorrido no Natal do ano passado. Qual o objetivo? Seria ajudar a criar um clima favorável ao endurecimento da repressão na favela?
Desde 2012, foram dez policiais mortos em áreas supostamente pacificadas. Na raiz dessa espiral de violência está a ilegalidade do comércio de drogas. Semana passada, no Globo, a socióloga Julita Lemgruber citou a legalização como saída para o impasse. Mas, infelizmente, a declaração ficou no pé da reportagem.
***
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

quarta-feira, 12 de março de 2014

Perguntas que põem em dúvida a violência na Venezuela

070314 violentos

Prensa Latina - O sacerdote jesuíta panamenho Jorge F. Sarsaneda Del Cid formula na rede 15 perguntas ignoradas pela grande imprensa que colocam em evidência diversos aspectos e permitem analisar as motivações da violência desatada pela direita fascista na Venezuela:



1. Por que dizem que na Venezuela se sofre com uma grave falta de alimentos, justificando assim destruição e incêndios, se foi um dos quatro países da América Latina com menos fome em 2012 (de acordo com a FAO e a OMS), inferior a 5%, e um dos países com maior índice de crianças e jovens obesos?

Seguindo a lógica dominante, por que não há protestos piores em um país vizinho como a Colômbia, no qual a fome foi sentida por 12.6% da população, isto é, quase o triplo da Venezuela?

2. Se as causas dos ataques, incêndios e manifestações é a escassez de produtos básicos, por que se observam ações de tipo político e não roubo de lojas e armazéns, o que seria de se esperar quando se trata de carência generalizada? Por que um dos dirigentes opositores, Henrique Capriles, afirma que se deve a "falta de remédios" se os avanços em saúde na Venezuela estão entre os mais destacados da região?

3. Por que tanta violência pela suposta "ausência" ou falta de acesso a comida se a revista 'The Economist' publicava esta semana que a escassez só afetou cerca de 28% dos produtos? Por que os mesmos analistas não preveem algo parecido na República Dominicana, país no qual o 'Latinobarómetro' detectou que ao redor de 70% da população não tem dinheiro suficiente para comprar a comida do mês?

4. Por que o epicentro dos protestos pela "escassez" é a Praça Altamira, no meio de bairros de classe alta e habitantes com pele tão branca? Não seria mais lógico em bairros pobres e população mestiça, já que a Venezuela é o segundo país com maior proporção de afrodescendentes da América do Sul, depois do Brasil?

5. Por que a Unesco reconhece a Venezuela como o quinto país com maior matrícula universitária do mundo, que cresceu mais de 800%, sendo que ao redor de 75% em educação superior é pública, e no entanto não se conhece nenhuma luta do "movimento estudantil" atual, enquanto há "estudantes" marchando contra "torturas" e por "comida"?

6. Se os estudantes da educação superior na Venezuela já superam 2,6 milhões (isto é, ao redor de 20 vezes a população estudantil do Panamá), por que as manifestações são mais em forma de focos ou grupos de dezenas ou, no máximo, centenas de pessoas?

7. Se o comum e corrente é que os estudantes ou sindicatos marchem por mais benefícios e serviços públicos, assim como leis mais democráticas e equitativas, por que os "estudantes" que marcham na Venezuela o fazem por papel higiênico, defendendo a propriedade privada da imprensa ou do comércio para bens de consumo?

8. Por que não se sabe ainda o nome de nenhuma federação ou organização estudantil, nenhuma pauta de reivindicações, nem o nome de nenhum de seus mais importantes dirigentes ou membros de diretoria, mas sim os nomes de notórios e antigos líderes da oposição partidária e eleitoral, envolvidos nas ações golpistas de 2002 e 2013?

9. Por que e quem produzem as imagens falsas de torturas, assassinatos e humilhações posteriores aos confusos fatos de 12 de fevereiro de 2014, manipulando fotos do Chile, da Europa ou da Síria para que apareçam nas redes sociais e até em meios de comunicação como a CNN como se fossem na Venezuela? Que liderança democrática e civil já usou manobras como essa na história universal?

10. Se os bolivarianos e seus aliados ganharam as eleições de 2012 e 2013, incluídas as municipais mais recentes de dezembro passado, quando obtiveram 55% dos votos e 76% das prefeituras, por que se fala que o oficialismo é hoje "minoria"? Por que sua renúncia ou um referendo revocatório é proposta como saída para "a crise", fora de todos os prazos e procedimentos legalmente estabelecidos para isso na Constituição feita com a própria liderança bolivariana?

11. Por que se invoca a falta de diálogo se há apenas dois meses foi realizado na Venezuela um encontro histórico entre o Executivo nacional e todos os prefeitos recém eleitos, incluindo opositores, contando assim com a participação de todos os partidos e posições? Com quem se dialoga, quem dirige ou lidera "a crise"?

12. Por que o principal - e praticamente único - porta-voz das manifestações, supostamente pacíficas e alentadas pela "ineficiência" do governo, é Leopoldo López, pessoa que não conta com nenhuma representatividade, salvo a de seu minúsculo partido, e seu chamado mais importante é há meses "tirar aqueles que governam"? O que o Tea Party (ultra-direita dos EUA) tem a ver com tudo isso, já que a relação extremamente próxima com López é muito conhecida?

13. Por que não usam os governos dos estados, as prefeituras e os assentos nas Assembleias nacional e estatais para propor um programa de ações pacífico e político, e por que não canalizam através de sua enorme incidência midiática as denúncias de "corrupção", "fraude", "totalitarismo", "fome" e "repressão" com provas contundentes e inegáveis - não por twits, nem cápsulas de Youtube - como sim faziam as oposições a Trujillo, Balaguer, Pinochet ou Videla?

14. Por que se protesta, se na Venezuela mais de 42% do orçamento do Estado é destinado aos investimentos sociais? Segundo dados internacionais, cinco milhões de pessoas saíram da pobreza, então quem está protestando? Por que se protesta se o analfabetismo foi erradicado? Do que reclamam os estudantes se o número de professores nas escolas públicas se multiplicou por cinco (de 65 mil a 350 mil) e foram criadas 11 novas universidades?

15. Por que...?

Poderíamos seguir acrescentando perguntas. A verdade é que, como latino-americanos, enquanto nos insultamos, acusamos e desqualificamos, os "grandes do mundo" fazem seus cálculos para nos tirar o petróleo, o cobre, o lítio, a água e tantas outras riquezas que temos. Aí é onde temos que colocar nossa atenção...


Fonte: Diário Liberdade

terça-feira, 11 de março de 2014

Onde os liberais e o Estado policial se encontram

John Locke (1632-1704): sua influência sobre Constituição dos EUA é tão expressiva que, por vezes,
 considerado um “pai fundador” honorário

Para John Locke, pai do liberalismo, Estado não deve promover solidariedade, mas garantir segurança e propriedade. Predomínio desta concepção ameaça, hoje, a própria democracia.
Por Rafael Azzi
Na história da humanidade, muitos filósofos se interrogaram sobre a relação entre a natureza humana e a constituição da sociedade. Aristóteles, por exemplo, acreditava que o homem é um animal político. Para ele, a organização dos indivíduos em núcleos sociais mostra-se um processo tão natural quanto o é para as formigas na natureza. Assim, por extensão, o homem apenas se realiza plenamente por meio da atividade política e da participação ativa nas decisões do Estado.
De acordo com o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, a natureza humana é das mais adaptáveis. O homem possui uma espécie de natureza indeterminada, moldável e maleável. Entretanto, o filósofo reconhece que existe um sentimento básico na natureza humana, compartilhado por outros primatas superiores: a compaixão. Para ele, o homem não é um animal racional, e sim um animal sensível, empático. A recente descoberta científica dos neurônios-espelho parece ter, de alguma forma, corroborado essa ideia.
O problema para Rousseau é que, devido à maleabilidade de sua essência, rapidamente o ser humano se adapta às condições da sociedade. O teórico francês argumenta que o egoísmo e o individualismo são construções modernas estimuladas pela constituição da sociedade burguesa; que, por sua vez, baseia-se na propriedade privada e nas ações justificadas pela percepção do lucro individual. Assim, esta não seria a verdadeira natureza humana, mas uma distorção provocada pela exacerbação de determinados valores sociais.
A partir da perspectiva rousseauniana, a principal função do Estado seria a de, através de políticas públicas com ênfase em educação, por exemplo, favorecer a emancipação política do cidadão para que ele possa resgatar sua empatia natural. Nesse sentido, pode-se afirmar que as noções de cidadão e de cidadania, como se conhece na atualidade, são decorrentes dessa leitura. Conceitualmente, cidadão configura alguém que atua na esfera pública ou política, com empatia para com o próximo e para com a coletividade.
De alguma forma, as ideias de Rousseau auxiliaram a construção da nossa sociedade moderna. Entretanto, o pensamento de John Locke sobre a natureza humana e o papel do Estado é o que mais encontra repercussão no mundo contemporâneo. Sua influência sobre a Constituição dos EUA é tão expressiva que, por vezes, é considerado como um “pai fundador” honorário. Suas teorias formam as bases do pensamento liberal e auxiliaram na construção da ideologia do capitalismo.
Para Locke, existem três direitos considerados naturais: a vida, a liberdade e a propriedade. Em um estado de natureza, cada indivíduo busca preservar tais direitos e, quando se sente prejudicado, atua como juiz, júri e executor dessas leis naturais. Rapidamente, essa situação desencadeia uma guerra coletiva, de todos contra todos. Na perspectiva lockeana, o Estado surge então para evitar o caos e a desorganização.
Assim, o indivíduo concorda em abrir mão de uma parcela de sua liberdade para que o Estado possa fornecer segurança e impedir uma situação conflituosa. Nesse sentido, o Estado não é considerado como algo natural ou um instrumento para desenvolvimento da empatia humana. Ao contrário, ele é considerado de forma negativa, que limita a liberdade humana, um mal necessário. Umas das consequências dessa visão é a desvalorização da atividade política. A relação entre o Estado e o indivíduo é pensada somente como uma relação de troca, uma interação comercial. O cidadão cede parte de sua liberdade; e, em troca, o Estado defende seus direitos, sua propriedade privada e seus negócios.
Em sua reflexão sobre a propriedade privada, Locke afirma que ela tem sua origem no trabalho sobre o bem comum. Através do trabalho, o homem torna-se dono por direito “natural” daquilo que antes era comum, de todos. Esse tipo de argumentação forneceu, por exemplo, a justificava para a tomada das terras dos povos nativos pelos colonizadores americanos. As comunidades de povos nativos possuíam outro tipo de relação com a terra considerada de uso comum, desconhecendo o conceito de propriedade privada. Na interpretação dos colonos, tal fato permitia a invasão e a tomada das terras indígenas. Talvez esse ponto de vista também explique por que aqui, no Brasil, líderes extrativistas e índios com uma concepção coletiva e conservacionista do uso da terra são mortos a todo o momento por grileiros e fazendeiros.
Além disso, nesse sentido, a apropriação e a exploração da natureza tornam-se ações não apenas possíveis, mas constituintes do objetivo “natural” do homem. A relação de posse e a exploração da natureza nascem dessa concepção. Diversas empresas, como a Monsanto – que, por exemplo, solicitou e conseguiu a patente do cultivo convencional de brócolis – seguem esse paradigma, buscando o lucro pela privatização do que é de uso comum.
Analisar os escritos de Locke sobre indivíduos pobres também pode auxiliar a entender a sua contribuição no estabelecimento de um tipo de visão política contemporânea. Para o filósofo inglês, os desfavorecidos necessitam ser controlados e disciplinados. Como solução para a questão da miséria, Locke defende o estabelecimento de um conjunto especial de leis que vão da coerção à punição para os mais pobres. Este tipo de pensamento parece salientar que os mais pobres nunca serão totalmente incorporados à sociedade, a não ser como força de trabalho a ser devidamente explorada.
A ideia de “Estado mínimo” se mostra, da mesma forma, um desdobramento das noções apresentadas por Locke. De acordo com os teóricos do Estado mínimo, a única função do Estado é defender os direitos individuais e a propriedade privada. O problema com tal ponto de vista é que a função do Estado, de dar segurança à propriedade privada, pode rapidamente se tornar hipertrofiada. O Estado, então, passa a atuar como um braço armado dos negócios. Essa é a tese defendida por um major-general do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos chamado Smedley Butler, um dos marines mais condecorados da história americana. Em seu texto War is a Racket (de 1935), o major afirma que todas as guerras dos EUA, no período em que ele atuou, foram motivadas simplesmente pela defesa dos interesses comerciais de empresas, indústrias e banqueiros.
Considerar o Estado simplesmente como promotor da segurança pode também fomentar políticas militaristas, repressivas e agressivas dentro da própria sociedade. Temas complexos que poderiam ser tratados como assuntos de saúde pública ou de educação passam exclusivamente para a pauta da segurança pública. Tal quadro permite que o Estado liberal se transforme em um Estado policial. Essa perspectiva desfaz a possível contradição que reside no fato de um dos países economicamente mais liberais do mundo apresentar uma das maiores taxas de presos por habitante, além de produzir o maior esquema de espionagem de civis já visto.
Sob esta mesma ótica, é possível analisar, por exemplo, o modo como foi conduzido o recente processo de pacificação das comunidades da cidade do Rio de Janeiro. A ocupação policial das favelas e a instalação das “Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs) são um projeto que se integra aos grandes empreendimentos urbanos voltados para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas e a valorização do mercado imobiliário carioca. A presença do Estado nestas localidades parece se circunscrever a uma estratégia de rígido controle do território, não visando a ações ou políticas efetivas de promoção de direitos básicos como saúde, educação ou saneamento, mas a garantir a proteção do capital. Enquanto dentro das comunidades são frequentes as denúncias de abusos e violência por parte da Polícia Militar – a única parcela do Estado que efetivamente ali está presente – nos bairros próximos aumenta a especulação imobiliária.
Assim, a concepção sobre o homem se mostra um reflexo da perspectiva sobre a função do Estado. De acordo com as ideias desenvolvidas por Locke, os indivíduos convivem como inimigos em potencial, que se unem apenas pelo interesse egoísta. Dessa forma, um Estado construído sobre essas bases logo caminha para o caminho da repressão, da militarização e do policiamento ostensivo. É possível que este seja o momento de repensar a interação entre os indivíduos e o Estado, de maneira que o estímulo ao diálogo conduza à esfera da cooperação entre as pessoas, pondo em prática, finalmente, a natureza empática do ser humano, até então adormecida.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Giuseppe Cocco: "A esquerda não deve ter medo do conflito social"



Por Nuno Ramos de Almeida

Para Giuseppe Cocco, a esquerda no poder na América Latina não fez nada do que se propunha, mas apesar disso é responsável pela criação de condições que levaram às manifestações no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Parecem enquadrar-se naquela frase de “Fausto”: “aquelas forças que sempre quiseram o mal e sempre fizeram o bem”. Nuno Ramos de Almeida faz de advogado de Diabo numa conversa com o acadêmico para quem o poder não passa pelos governos.

Participou numa das conferências da Gulbenkian abrigadas pelo nome comum de "Próximo Futuro", num painel que tinha como tema, bastante atual: "A economia dos movimentos sociais urbanos - Protesto e Revolta em Maputo e no Rio de Janeiro de Hoje". Este acadêmico italiano que esteve exilado em França vive e trabalha no Brasil. Autor de várias obras, a mais conhecida é um livro que escreveu a meias com o filósofo italiano Antonio Negri: "Global - Biopoder e Lutas Numa América Latina Globalizada", a conversa partiu deste trabalho e foi até à revolta na rua que eclodiu em Junho de 2013 no Brasil.

Há mais ou menos dez anos escreveu em colaboração com o filósofo Antonio Negri um livro em que tinham uma perspectiva positiva do advento dos governos de esquerda na América Latina. O que é que falhou?

[Risos.] O que é que falhou? É uma boa pergunta, a gente poderia dizer que, dez anos depois, o que está acontecendo no Brasil, nomeadamente esta revolta de Junho de 2013 que continua até hoje e que se anuncia dinâmica e poderosa, pelo menos até à Copa de 2014, poderia ser um sinal que erramos na análise. Eu acho que não. O Negri e eu apoiávamos em artigos de imprensa o governo Lula, mas também o do Néstor Kirchner, na Argentina, e o de Evo Morález, na Bolívia...

E também o do Chávez?

Não, em relação ao Chávez nunca tivemos uma grande expectativa. Contrariamente ao pessoal que era crítico do Lula e do Kirchner e que era mais favorável ao Chávez como modelo, a gente achava estarmos perante um modelo demasiado dirigista. Apesar disso, visitei a Venezuela uma vez com Negri, Michael Hardt e Sandro Mezzadra. O nosso apoio era muito particular, a gente apoiava estes governos na imprensa, o que os deixava agradados, mas com argumentações que deixavam incomodadas as forças de esquerda que hegemonizavam estes governos.
Em que medida aquilo que aconteceu em Junho de 2013 pode confirmar a nossa análise? Se nós estivéssemos errados no que escrevemos, isso podia significar que as manifestações de Junho eram um movimento de revolta contra o PT [Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula, que está no poder no Brasil], em segundo lugar, essa revolta contra o Partido dos Trabalhadores deveria estar a dar um prémio à oposição de direita - como paradoxalmente o governo desejava para poder estigmatizar o movimento.

Mas não houve uma inflexão dos grandes grupos de comunicação ligados à direita? Na "Veja" e na "Globo" começaram por dizer que os manifestantes eram uns selvagens para passar a dizer que se assistia a uma revolta da classe média contra a corrupção do PT...

Esse fenómeno foi marginal e correspondia a uma expressão de um desejo por parte da direita, mais que uma realidade. Mas repare, se não foi a direita que capitalizou o movimento, nós poderíamos dizer que seria a extrema-esquerda, a chamada esquerda de oposição ao PT, e isso não aconteceu. Pelo contrário, a esquerda da oposição que sempre tinha criticado o PT, quando ela se apresentou nas ruas, no momento mais massificado do movimento, ela apanhou mesmo.

Mas isso não o preocupa, nós chamamos em Portugal a este discurso mais populista "o discurso do taxista", que é contra os políticos em geral, põe tudo no mesmo saco e se confunde com uma expressão antidemocrática...

Todo o momento de violência pode ser inquietante, aí a gente fica ou com a ordem, com o Tocqueville, dizendo que a tradição ou a cultura se vai e todos os valores desaparecem, ou a gente fica com o sorriso da criada [alusão a uma historieta contada por Tocqueville, em que o dono da casa, e os seus convidados, estavam a comentar assustados o barulho dos tumultos contra os ricos, que se escutavam ao longe, e descobrem com pavor o sorriso cúmplice com os revoltosos da criada da casa]. A esquerda não deve ter medo do conflito social. Deve estar dentro. O que aconteceu em Junho não foi nem uma conspiração de direita, nem um movimento da extrema-esquerda, o que significa que nós (eu e o Negri) não estávamos errados. Nós apoiamos o governo Lula não por causa do seu reformismo ou o seu projeto para uma estratégia de desenvolvimento nacional. Pelo contrário, nós apoiamo-lo pelos limites que ele tinha.

Mas vocês escreveram duas coisas contraditórias: diziam que o apoiavam pelo poder que eles iam dar às pessoas...

Mas foi isso que aconteceu, foi melhor que a encomenda.

Vocês afirmaram que haveria uma democracia em que as pessoas seriam sujeitos da política e não apenas apoiados com subsídios e afirmaram que esses governos expressavam a construção de uma realidade pós-nacional.
O que se verifica não é exatamente o contrário?

Quando a gente dizia que o governo Lula era interessante porque ele vai acabar dando mais participação. E o PT olhava-nos com simpatia, até nos convidando para falar mas sem perceber absolutamente nada do que dizíamos, o que a gente previa é esse tipo de participação que aconteceu. Ninguém mais previa aquilo que aconteceu em Junho de 2013 e, sobretudo, a forma como aconteceu.
Mas o que era para vocês positivo nesse governo?

O que nos interessava era em primeiro lugar a ausência do modelo. O neoliberalismo mais que a causa de todos os males aparece como o resultado da transformação do capitalismo do ponto de vista do seu regime de acumulação e das suas características globais. Você muda o governo e você continua preso a isso. A Europa que o diga. Depois de ter mudado o governo do Brasil, não dá para argumentar que a conciliação e o oportunismo do PT o tenham transformado num partido neoliberal, isso é absurdo. O que aconteceu é que eles tiveram de conciliar com uma dinâmica material que não conseguiam mudar. Foram obrigados a respeitar os contratos e velar para que não houvesse nenhuma ruptura de política econômica. Mas isso provocou que eles entrassem num total descompasso em relação ao seu discurso de esquerda neodesenvolvimentista.

Mas os que é que os impedia de tentarem fazer algo de diferente?

Eles só tentaram fazer algo dentro de um determinado pacto de regime sem o qual nunca o poder brasileiro teria transigido com a eleição do PT. E fizeram alguma coisa: tentaram fazer crescer a economia e melhorar a distribuição de renda. Fizeram programas sociais e de acesso ao crédito. Isso teve um resultado quantitativo ridículo em relação à dívida social brasileira, mas conseguiram que pela primeira vez no Brasil o PIB crescesse e a desigualdade diminuísse. Segunda mudança que o governo Lula fez foi criar políticas de acesso e de quotas nas universidades e expandir os politécnicos e as próprias universidades públicas. Coisa que nós achamos superinteressantes. Essas políticas mereceram duas espécies de críticas: a da direita, dizendo que estão dando um subsídio que não estimula o trabalho. Para eles, a única emancipação é o emprego - "deixem a gente continuar a explorar as pessoas em termos neoesclavagistas, os pobres". E a crítica da extrema-esquerda que por coincidência era igual, apenas com a diferença que via o trabalho em termos de emancipação pela luta, dizendo que estes apoios não resolviam as desigualdades. Pode-se dizer que estes últimos, em termos estatísticos, tinham razão. Você pega aquilo que foi gasto com "a bolsa família" e com os outros programas sociais e obtém menos de 1% do PIB. Bastante menos que os 6% que são gastos com a taxa de juros da dívida.

E em termos estruturais também tinham razão, porque esses subsídios não alteram o facto de o poder econômico se manter centralizado numa elite muito pequena...

Este 1% não é meramente quantitativo. Juntando o crescimento da economia, mais a alteração do ensino, verificamos uma mobilização dos pobres que não se resume à mobilidade vertical da composição social. Para nós o que há de bom nisso é uma outra mobilização subjectiva, em que os pobres podem afirmar a riqueza dos pobres e a sua centralidade. O PT, em particular com Dilma, só pensava na necessidade de transformar o pobre em rico, formar um nova classe média: o valor estava sempre do lado da riqueza e do capitalismo. As manifestações de Junho vêm dizer que existe uma outra riqueza, que não é a mobilidade estatística, que é a mobilização. Quer dizer, o processo de produção de subjetividade. O capitalismo contemporâneo e cognitivo mobiliza os pobres enquanto pobres, faz isso nas cidades, entre as redes [sociais] e as ruas, mas também estas mobilizações se fazem entre as redes e as ruas. Havia montes de movimentos menores de resistência e de multiplicação de críticas no Brasil: dos índios, dos operários, da gente contra as barragens, dos estudantes, dos professores, dos favelados removidos por macroeventos, todos esses movimentos menores não incomodavam eleitoralmente o PT. Em 2013 se juntaram na luta pelos transportes criando uma nova centralidade.

Mas isso em que é que confirma as vossas previsões?

Com Lula houve a aceleração de uma outra coisa que aqueles que fizeram as políticas não previam, nem têm a vontade de entender, que é uma mobilização da produção de subjetividades que confirma as teses que Negri e eu tínhamos escrito há dez anos. E mostra que o neodesenvolvimentismo de Dilma é uma ilusão. No período Dilma, quando depois da crise de 2006-2008 ela era ministra da Casa Civil [o equivalente ao primeiro- -ministro], defendia-se que o capitalismo financeiro está em crise, vamos voltar ao capitalismo industrial neodesenvolvimentista, criar uma nova classe média para consumir e desenvolver uma indústria nacional. A receita eram subsídios a empresas, megaobras e megaeventos. Não deu certo. A situação econômica no Brasil demonstra que isso é ilusório. A esquerda do PT, inclusive sectores do PSOL, pensa que a Dilma era mais à esquerda que o Lula, porque está baixando a taxa de juro. Resultado, nós hoje estamos no Brasil com uma taxa de inflação enorme e com as taxas de juro mais altas do mundo. Estamos numa situação pior, do ponto de vista macroeconómico, do que estávamos com Lula.

Mas essa nova produção de subjetividade não altera o facto de o poder econômico continuar na mãos dos mesmos de sempre.

Mas isso não se altera a partir do governo. A questão é a seguinte: há um problema da esquerda em relação às suas concepções dialécticas e positivistas que não é um problema meramente filosófico, mas mesmo como ela funciona. Quando a gente passa do Norte para o Sul, do desenvolvimento para o subdesenvolvimento, este vício de forma aparece de maneira mais nítida. O erro está em pensar que quando você está no subdesenvolvimento devia bater-se por incluir essas massas que o capitalismo não gostaria de incluir. O que é, a meu ver, uma grande estupidez. O capitalismo, desde que ele existe, é um modelo de inclusão. O primeiro grande objectivo do capitalismo é tornar-se sistema-mundo, como diz Wallerstein. Ele organiza em torno da propriedade dos meios de produção, estratificando, fazendo com que até a exclusão permita incluir os excluídos de uma forma ainda mais subordinada. Existe toda uma literatura sociológica que trata as massas urbanas brasileiras como massas descartáveis, como se houvesse quase uma dimensão imoral do capitalismo que quer eliminar essas pessoas.

Mas a exclusão não é historicamente a base da inclusão?

No Brasil, por causa da Guerra Fria, do bloco da elite e da biopolítica, houve um bloqueio do processo da reforma agrária que não tem, em si, nada de revolucionário. A reforma agrária é um processo de racionalização interna que começa na França com a Revolução Francesa. O que aconteceu no Brasil por um conjunto de razões históricas ligadas ao neoesclavagismo e à dimensão racista da sociedade brasileira foi que houve foi um bloqueio a essa racionalização. Aqui a reforma agrária não aconteceu e ela assumiu a forma do êxodo rural. As lutas agrárias que poderiam ter proporcionado a criação de uma pequena propriedade burguesa eficaz, no desenvolvimento de um capitalismo nacional, foram bloqueadas por razões internas e internacionais relacionadas com a Guerra Fria e a luta contra o comunismo. Resultado: todo o mundo foi para a cidade.

E o que é que se passou com estas pessoas?

Foi em grande parte esse processo de êxodo que formou as favelas, que têm essa dupla dimensão: são o fruto dessas relações raciais e racistas de desigualdade de produção de bloco de biopoder esclavagista. E ao mesmo tempo expressam a resistência do êxodo.

E por que é que a perspectiva de esquerda de incluir os favelados é errada?

A perspectiva neodesenvolvimentista é transformar toda essa massa de gente em operários a partir de um processo de proletarização. As várias correntes de esquerda que foram para dentro do PT têm fundamentalmente essa cabeça: criar um capitalismo nacional que absorva os favelados e os torne proletários. O que acontece é quando isso tinha de suceder. Nas décadas de 80 e 90 houve a crise da dívida e toda a expansão econômica promovida pelo regime militar foi por água baixo, impediu essa dinâmica. E não dá para voltar ao passado, o facto é que o capitalismo não é mais industrial. Quanto mais você moderniza, menos você industrializa no sentido tradicional do termo.

Mas essa tese do desaparecimento da classe operária não embate na sua deslocalização para países como a China?

O facto de haver centenas de milhões de trabalhadores nesses países não altera o facto de que a produção de valor se deslocou para as atividades do capitalismo cognitivo. A inserção do Brasil na globalização é irreversível, independentemente da retórica nacionalista da Dilma e de um governo em que o mais nacionalista é o ministro dos Desportos do PC do B (Partido Comunista do Brasil) que organiza a Copa e as Olimpíadas. A grande defesa da nação transforma-se nos interesses da FIFA, que é o que tem de mais ruim na globalização. É o entreguismo aos interesses multinacionais.

No seu discurso, como do Negri, essa globalização que conduz ao império também cria condições para o desenvolvimento das "multitudes" que se opõem a esse mesmo império. Onde é que isso está a acontecer?

Vamos por partes até chegar aí. A Dilma tem várias declarações caricatas em que diz que gosta muito de engenheiros e pouco de advogados. O que é que ela conseguiu fazer? Um urso bipolar não é um urso polar, é bipolar porque é completamente esquizofrênico: por um lado neodesenvolmentista, megaobras colocando dinheiro público nos grandes empresários e dando subsídios à grande indústria, esquecendo-se que a grande indústria no Brasil é multinacional. E por outro lado a ideia de fazer crescer uma nova classe média que é ultraneoliberal. O conceito de nova classe média é produzido por economistas que citam Milton Friedman. Ao querer tudo isso não conseguiu nada. Quando você tem a dinâmica da inflação ela leva a várias coisas, nomeadamente ao aumento dos transportes. Aí você tem Junho. E Junho é a expressão dessas "multitudes".

As lutas contra o aumento dos transportes que explodem em Junho de 2013 têm alguma hipótese de transformar as coisas e obter algo de novo? Historicamente verifica-se que muitos dos protestos são cíclicos e depois são facilmente integráveis.

Junho é uma bifurcação, pode ir para pior, mas continua a acontecer.

Ok, é uma bifurcação, mas no melhor dos cenários o que é que estarão a fazer daqui a um ano?

Primeiro aconteceu Junho, em si é uma confirmação que não é a afirmação de uma nova classe média, mas nova composição do trabalho, que não é o trabalho da classe operária, nem industrial, mas é um trabalho metropolitano. Fundamentalmente ligado ao que são as dimensões terciárias, do ponto de vista estatístico, ou diríamos ligadas aos trabalho imaterial, numa concepção analítica marxista. Trabalho ligado à educação, aos serviços, etc., e onde a circulação e a questão dos transportes é estratégica. O que fez o PT? Multiplicou na cidade os prédios feios e colocou os pobres na periferia e encheu a cidade de carros, sem fazer investimento nas infra-estruturas. Com uma economia baseada na circulação isso tornou-se uma contradição insustentável, não apenas do ponto de vista abstrato de justiça para os pobres poderem ter um transporte digno, mas no concreto. Por um lado, os pobres são pressionados para serem empregados e terem que circular e do outro ficam duas, três, quatro horas em transportes de merda. É uma contradição material. As pessoas lutam a partir das situações materiais. A questão dos transportes, que teve como espoleta o aumento dos 20 centavos nos transportes públicos, significa que hoje nas cidades brasileiras as pessoas estão saturadas e ninguém aguenta mais. E, finalmente, esta nova composição do trabalho tem hoje a capacidade de se organizar em rede. O movimento de Junho é uma afirmação de autonomia. Sem o MST, os sindicatos e os partidos tradicionais, hoje é possível que se organizem para uma mobilização de grande alcance. E Junho não parou em Junho, continua, são sete meses de mobilizações. Ainda há poucos dias teve entre mil e 10 mil pessoas.

Mil pessoas no Rio de Janeiro é como ter 100 pessoas em Lisboa...

Se fosse isso, como é que o governo estaria aprovando medidas especiais de repressão? A manifestação de dia 20 que no Rio teve dois, três ou quatro milhões de pessoas, ninguém sabe quantas. O que os partidos de esquerda não entenderam é que aquela enorme manifestação era um momento de recuperação da política fora de qualquer liderança. Quando tem dois a três milhões de pessoas a manifestar- -se, você tem na rua a sociedade como ela é. E quando começou o enfrentamento, que durou dias com mais de 100 mil e 50 mil pessoas a sair à rua todos os dias, os mesmo que diziam "sem violência" passaram a dizer "não vai ter Copa". E dizer que "não vai ter Copa" é uma palavra de ordem que mostra o terreno da transformação antropológica dessa massa multitudinária. Durante esse processo de meses, os sectores mais radicalizados dos subúrbios, dos precários, dos Black Bloc e dos estudantes descobriram a bandeira negra como símbolo daquilo que é irrecuperável pelo sistema. São as únicas bandeiras que os jovens vêem como mais radicais perante o apodrecimento da política, para representar algo que não é representável. Mas elas valem o que valem, a questão é ter a capacidade de inventar novas instituições, e isso tem tudo para acontecer.



Fonte: iOnline

domingo, 9 de março de 2014

OS BRASILEIROS ODEIAM O BRASIL

Eu odiava o Brasil. Não há outra maneira de se explicar o que eu sentia pelo meu país até a metade da minha adolescência: era ódio. Detestava que, na minha escola, não tínhamos armários e que não havia um salão de refeições onde todos almoçássemos juntos, com nossas caixinhas de suco e nossos hambúrgueres, antes de voltarmos para casa num ônibus amarelo. Detestava que fazia calor durante o Natal e, consequentemente, ressentia profundamente o fato de a neve ser uma exceção climática no Brasil. Odiava a nossa língua — queria que falássemos inglês, francês ou alemão, qualquer coisa mais ‘sofisticada’. Odiava a música e as festas populares — pura selvajaria, diria eu, “só não gosto”. O Brasil era o meu pior pesadelo. Foi assim que, em poucos anos de vida, eu perdi o melhor do Brasil e, dele, internalizei o que me diziam ser o nosso pior.

'A Descoberta da Terra', de Candido Portinari

Há algum tempo, tenho visto vários compartilhamentos de textos em que estrangeiros enumeram as mazelas do país. É um estadunidense que odiou morar no Brasil, uma revista francesa que ‘resume’ as barbáries tupiniquins — e uma onda de brasileiros a reproduzir discursos alheios indiscriminadamente. Esses discursos, dos quais só citei dois exemplos contemporâneos, não são novidades: desde os primeiros exploradores europeus que ao Brasil chegaram, passando pelos escritores de viagem e antropólogos que dominaram o século XIX, até os atuais filhos da classe média que, financiados com dinheiro público, vão estudar no exterior, existe um padrão de desprezo contra o Brasil.
Mesmo assim, eu prefiro acreditar que a maioria das pessoas que compartilham os textos não deteste deveras seu próprio país. Prefiro pensar que sejam pessoas que, na verdade, simplesmente gostariam de vê-lo melhor. O embrolho, no entanto, em relação a esses discursos de crítica ao Brasil, dá-se por duas razões.
Em primeiro lugar, são discursos situados: a crítica que se aceita e se repassa entre os brasileiros é aquela feita pelo estrangeiro, mas não é qualquer um. Se o francês disse, está dito. Se o estadunidense disse, é lei. Duvido de que fossem tão populares críticas feitas por um cubano ou um vietnamita. Por trás disso, argumentar-se-ia, está o nível de desenvolvimento do país donde se fala. Além do questionamento, aqui, sobre o conceito de desenvolvimento pelo qual se medem todos os países do mundo em relação a padrões estabelecidos pelas potências de sempre, existe um indivíduo cuja procedência é, de fato, uma coincidência que não forçosamente o sobreponha àqueles de outras nacionalidades, tampouco o qualifique para criticar quem quer que seja.
Em segundo lugar, as críticas estrangeiras ao Brasil têm uma significação dupla sobre as identidades nacionais e sobre a autoestima tanto de quem critica quanto de quem é criticado. De lá, no caso de um dos textos citados, os franceses se elevam a um patamar olímpico donde muito convenientemente se esquecem da contribuição de seu próprio país à miséria globalizada que desponta nos problemas que eles agora enumeram. De cá, os brasileiros consomem a crítica, mas não são, por sua vez, críticos a ela. O resultado é apavorante: brasileiros que odeiam seu próprio país e, assim, não querem dele fazer parte — se não fisicamente, ao menos simbolicamente. Se não podem deixar o país e suprimir todas suas relações com ele, tentam se distanciar, no plano discursivo, da suposta imagem do Brasil a olhos forasteiros.
Lidamos cá também com uma grande dose de hipocrisia. Uma das imagens usadas nos compartilhamentos desses textos é uma tela do que parece ser o Big Brother Brasil. Junte-se esse programa às novelas, ao futebol, ao Carnaval, ao funk e pronto: temos a receita de um país lascivo, onde se faz muita festa e se trabalha pouco. Enquanto os brasileiros insistem em serem resumidos por um programa de televisão, por exemplo, mal sabem que, só no Reino Unido, já foram ao ar 31 edições do mesmo Big Brother em cinco versões diferentes, que incluem desde uma dedicada a celebridades até uma versão para adolescentes. O compartilhamento do texto da revista francesa falava de como a FIFA teria supostamente se recusado a aceitar a candidatura da China à Copa do Mundo porque é política da organização “não associar-se [sic] a ditaduras”. Mas não teve problema nenhum em escolher a Rússia e o Qatar para sediarem as duas próximas edições dos jogos. Ainda cita-se que o Brasil vai gastar 400 milhões de euros em compras de armas para a polícia. Crítica feita e, dentro de seus limites, cabível. Entretanto, uma rápida visita ao site do Instituto de Pesquisas sobre a Paz de Oslo, onde se apresentam dados sobre comércio internacional de armas, podemos ver que a mesma Suíça que abriga a FIFA exportou pouco mais de US$198 milhões em armas no ano de 2011 — inclusive ao Brasil, à Rússia, ao Qatar e à China. Isso para não falar da preguiça de quem escreveu que o Romário deve ser um péssimo político já que ele era jogador de futebol. Dizem que o deputado só busca se promover, mas nem se importaram em digitar ‘Romário projetos’ no Google.
Ou seja, muitas das críticas feitas por estrangeiros ao Brasil são válidas. Existe violência? Existe. Os investimentos em educação e em saúde são parcos? Ainda são. Mas dizer isso e só isso e, a partir daí, construir a representação de um país inteiro, ignorando sua complexidade histórica e sua diversidade cultural é, no mínimo, incoerente. O mesmo Brasil que, em 2014, usará sílfides 3,44% de seu orçamento em educação é o mesmo Brasil que desembolsará 42,42% em juros e amortizações de uma tradição em dívida externa que começou lá na independência política do país em 1822 e que se estende, até hoje, com os mesmos países donde agora importamos opiniões. A questão não é negar a crítica, não é tapar os olhos para os problemas do Brasil, mas saber traçar as origens dessas críticas, seu contexto e seus interesses para, então, projetar soluções que sejam — oxalá! — radicais; isto é, que solucionem os problemas pela raiz.
A gota d’água foi, para mim, dizer que “brasileiros se identificam com analfabetos”. Isso foi dito logo depois de se mencionar a eleição de Tiririca como deputado federal com a segunda maior votação na história do Brasil, mas nem parecia apontar àqueles que — vá lá — votaram no candidato. A frase diz que nós nos identificamos com analfabetos. Nada mais do que uma paráfrase: no fim das contas, os brasileiros são burros. Logo, não sabem levar seu próprio país. São burros e, como tais, agem estupidamente. É puro desprezo, racismo, eurocentrismo, colonialismo e tantas outras coisas que, juntas, sacam dos brasileiros seus múltiplos devires e sua incrível riqueza intelectual e cultural. Não, não é só música clássica que é cultura. Não, não é só no Brasil que se assiste ao Big Brother. Não, não é só no Brasil que se elegem políticos desqualificados. Não é uma especialidade brasileira ‘identificar-se com analfabetos’.
O Brasil que compartilha esses textos precisa saber interpretar as críticas e não as internalizar. Se há problemas, em primeiro lugar, que nós os reconheçamos e lhes procuremos soluções efetivas. Se há problemas, em segundo lugar — e eu diria, aqui, de vital importância —, que saibamos que não foram os brasileiros que inventaram os problemas, tampouco os países ‘desenvolvidos’ que inventaram as soluções. Gostar do Brasil e dele sentir orgulho, bem o contrário do que comentam muitos por aí, não significa andar fantasiado de bandeira ao invés de enojar-se com o acidente geográfico que foi seu nascimento. Querer que o Brasil melhore é, em primeiro lugar, desejar o próprio Brasil. Ao se negar o país como ele é, usando suas expressões culturais e seu cotidiano como justificativas para um movimento de bestialização da nação, negam-se também todas as possibilidades de mudança que poderiam surgir das críticas. Enfim, não se trata de recusar críticas estrangeiras, mas de reconhecer nelas suas origens e suas contradições e não as encarar como instruções sagradas. O francês que critica muitas coisas no Brasil constata o mesmo que um brasileiro insatisfeito que sempre foi às ruas protestar. A diferença é que o primeiro ganha notoriedade como sábio e o outro é tachado de vagabundo-vândalo.
O Brasil nunca será um país melhor se, antes, não o soubermos aceitar sem armários, sem neve e sem ônibus amarelo, mas com uma infinidade de soluções latentes próprias. Para o Brasil melhorar, precisamos desejá-lo — como país, como origem, como comunidade. Se não, juntemos nossas trouxas e zarpemos para Miami. Ou algum outro lugar já que tampouco neva por lá.


Fonte: O Viés