sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Critica Vogue Kids mas lê Marie Claire



Por Antonio Engelke


A onda de repúdio que se instalou na esteira de um ensaio fotográfico que retratava crianças de modo sensualmente perturbador, publicado na Vogue Kids, talvez tenha mais a nos dizer do que o próprio ensaio. A crítica moral acusa a revista de explorar a sexualização precoce, auxiliando de lambuja a normalização de uma sensibilidade pedófila. A crítica economicista localiza na busca pelo lucro o motivo da transgressão das fronteiras do aceitável. A crítica sociológica afirma que o ensaio contribui para realizar a profecia que ele mesmo exibe: seduzido pela beleza das imagens e pela promessa das benesses da vida adulta, o público infantil da revista acabaria por mimetizar-lhe a estética. Tais críticas giram em torno de um investimento impróprio a uma idade, e têm sua razão de ser. Mas como toda estética comporta uma ética, cabe indagar se não haveria nesta equação um outro elemento qualitativo para além do temporal.

“Preservar a inocência” da criança não significa mantê-la protegida da sexualidade per se, mas permitir que faça suave e gradualmente a transição para uma sexualidade consciente de si. O escândalo suscitado pelo ensaio da Vogue Kids não poderia portanto advir de crianças retratadas como sujeitos sexualizados, o que elas de fato são, mas de sugerir que sua sexualidade tenha adquirido o molde adulto antes do tempo. Parece, então, que o problema estaria no fato de as fotografias assinalarem um corte, uma interrupção brusca nesta transição, impondo uma consciência erótica onde deveria haver somente impulsos naturais irrefletidos. Penso, contudo, que poderíamos entreter a hipótese de que o problema esteja também no conteúdo que vem a reboque dessa interrupção, e na necessidade de recalcá-lo. Dito de outro modo, o incômodo causado pelo ensaio poderia estar tanto nesta imposição brusca de uma sexualidade consciente à criança, quanto na substância específica desta consciência, e na recusa em assumi-la explicitamente.

O que as críticas deixam de fora é a rede de articulação discursiva dentro da qual um tal ensaio pode ser projetado, em ambos os sentidos da palavra. Os elementos que compõem essa rede (quem fala, de onde fala, como fala, em que suporte fala, para quem fala…) não são fatores externos relevantes à compreensão de um enunciado: fazem parte dele, na medida em que constitutivos da criação de seu sentido. Talvez seja possível enxergar aí uma relação, que se não chega a ser de causa-e-efeito nem por isso é desimportante, entre as fotos da Vogue Kids e a tirania do desejo que se materializa, por exemplo, na infinidade de revistas e programas de TV sempre dispostos a ensinar nirvanas orgasmáticos e truques sexuais capazes de levar nossos parceiros à loucura. Tal pedagogia será tanto mais eficiente quanto mais passar desapercebida: basta a repetição incessante da promessa do prazer para que o(a) leitor(a) internalize inconscientemente a obrigação de desfrutá-lo. Somos livres para tudo, exceto para não gozar (e, claro, não produzir). Como qualquer obrigação imposta ao aparelho psíquico, esta também irá gerar suas formas específicas de culpa, seja pelo excesso, a culpa de se saber levando o imperativo do gozo ao seu paroxismo, ou pela falta, o fracasso em fazê-lo.

Não poderia ser o caso de vermos a sombra desta culpa projetada na indignação dispensada ao ensaio? Boa parte das críticas a Vogue Kids veio de consumidores de Marie Claire e genéricos, incapazes de perceber o papel que desempenham na situação que tanto repudiam. É evidente que não queremos crianças assumindo a consciência de sua sexualidade sem a maturidade necessária à sua vivência; bem menos evidente, no entanto, é assumirmos que gostaríamos também que elas não experimentassem a sexualidade nos moldes em que nós a legamos. O que torna as fotos perturbadoras não é somente o fato de mostrarem crianças “sensualizando” quase como se adultos fossem; é que o exagero que as imagens veiculam – o excedente de consciência que surge deslocado, isto é, num lugar onde não deveria existir – nos confronta com a tirania que atravessa o Real da nossa relação com o sexo. É um efeito semelhante ao que o humor, quando bem feito, consegue alcançar: a sobreposição de elementos que não deveriam aparecer misturados resultando num estranhamento que nos permite enxergar uma verdade oculta da relação da qual esses elementos são parte. Mas, porque insuportável, tal verdade precisa ser recalcada, e o veículo de sua propagação surge então como um Outro conveniente ao trabalho de sua negação.



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