segunda-feira, 16 de junho de 2014

Direito de se conformar

Repressão. Manifestante anti-Copa detido pela PM recebe spray de pimenta nos olhos



Por que só os trabalhadores são ‘vândalos’ e proibidos de lutar por suas causas quando o mundo todo está olhando para o Brasil?

Ricardo Antunes

A retomada das greves no Brasil não é algo recente. Na pesquisa qualificada que faz há muitas décadas, o Dieese nos mostra que desde 2003 elas vêm se ampliando sistematicamente. Começou com 340 naquele ano e chegou a 873 paralisações em 2012, um salto bastante expressivo.

Suas reivindicações foram: no setor industrial, 42,7% objetivavam maior participação nos lucros e resultados, essa pragmática empresarial que obriga os trabalhadores a aumentar seus salários somente quando produzem mais. Foram seguidas por melhor alimentação (37,6%) e reajuste salarial (29,7), entre outras. Nos serviços, a alimentação puxou 43,1% das greves; os reajustes salariais contabilizaram 40,7%, e o pagamento de atrasos salariais totalizou 34,1%. 

E, se em 2013 tudo indica que esses números avançaram ainda mais, neste ano, a tomar pelo que estamos vivenciando, haverá um crescimento exponencial das paralisações. Para bem compreender essa explosão recente, temos que olhar com atenção para o Brasil desde junho de 2013.

De um modo breve, desde aqueles levantes de junho que o País mudou de qualidade. Ocorreu algo excepcional em nossa história, dado pela intersecção entre três movimentos que caminhavam em paralelo e se entrecruzaram, produzindo um choque social e político profundo. Primeiro, desde 2008 as lutas globais vêm se ampliando em todas as partes do mundo. No Oriente Médio, na Ásia, na Europa, até atingir o coração do Império, os EUA, para ficar nesses exemplos. E essa onda foi vista por todos os brasileiros. Sua lição basilar: para se conquistar algo é preciso tomar as praças públicas, pois os organismos de representação (com os Parlamentos à frente) estão completamente na berlinda. 

Segundo, esse movimento mais global encontrou uma situação especial no Brasil: o governo do PT comemorava dez anos de um “novo ciclo” quando as rebeliões de junho de 2013 roubaram o bolo de Lula e esparramaram seus farelos pelas praças de todo o País. Ruiu o mito da “nova classe média”, em plena festa do seu primeiro decênio. Os assalariados que encontram empregos recebem, em sua grande maioria, até um salário mínimo e meio; trabalham para estudar e estudam para melhorar no trabalho. O canudo da faculdade privada lhes faz derrapar ainda mais nos empregos voláteis. Pagam essas faculdades e encontram empregos com altas taxas de rotatividade, ainda mais terceirizados, mais adoecidos, mais precarizados, sofrendo assédio moral, etc. Em suma: muito mais privação do que realização. E, para trabalhar, dependem do transporte público, quase todo privatizado e degradado; se adoecem, oscilam entre a tragédia dos hospitais públicos e os engodos dos convênios privados. Uma hora a situação iria fazer água, e isso ocorreu em junho do ano passado. (Aqui vale um parênteses: o mito tucano, esse não ruiu porque simplesmente nunca existiu, uma vez que seu projeto é majoritariamente sustentado pelo voto conservador que não se assusta com o aumento da segregação social no País.) 

O terceiro foi um espetacular elemento contingente. A celebração tríplice das Copas (das Confederações, da Fifa e das Olimpíadas), imaginada por Lula e pelos grandes capitais como coroamento de um ciclo virtuoso, fez desabrochar seu exato inverso e o descontentamento explodiu. 

Assim, junho de 2013 se adensou com os trabalhadores-estudantes urbanos lutando pelo passe livre e contra a degradação da vida nas cidades, elevando a um patamar superior o levante das periferias, fortalecido com o MTST e sua emblemática ocupação da Copa do Povo. E esse descontentamento se generalizou. 

Já as greves e manifestações deste maio e junho de 2014 consolidam a rebeldia do trabalho, dos homens e mulheres que se desgastam na indústria, nos transportes, no funcionalismo público (hospitais, previdência, escolas e universidades públicas), em uma onda de paralisações que atinge muitos milhares de trabalhadores e trabalhadoras. (Os docentes e funcionários das universidades públicas paulistas, em exemplo que deve ser único neste período, receberam a acintosa proposta de reajuste zero, a pretexto de que a gestão anterior da USP, cujo ex-reitor foi escolhido pelo governador do PSDB desconsiderando a vontade da maioria de comunidade acadêmica, foi pautada pelo descalabro. A onde privatista exacerbou-se. Mas vale olhar para a explosão da crise universitária do Chile, depois de décadas de privatismo desde a ditadura de Pinochet, que gerou uma explosão social intensa nos últimos anos.) 

Uma rápida fenomenologia das greves pode recordar a emblemática paralisação dos garis, durante o carnaval do Rio. Contra uma direção sindical atrelada e cupulista, os garis perceberam que na festa carioca a limpeza não rimava com a falta de presteza da prefeitura em relação a seu exaustivo labor diário. Seguiram-se outras tantas greves, como a dos motoristas e cobradores do Rio, São Paulo, em São Luís, entre incontáveis cidades onde houve paralisação no sistema de transportes, um dos motes centrais, vale lembrar, dos levantes do ano passado. Ora contra as direções sindicais, ora com o seu apoio, as greves encontram seu principal elemento causal na precariedade das condições de trabalho e salário. 

Mas a coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foi geral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação, que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era pouco mais de R$ 1.300. Valor, como se sabe, insuficiente para viver em uma cidade com alto custo de vida e ainda com inflação em crescimento. 

Depois de alguns dias de paralisação, foram duramente reprimidos pelo governo Alckmin, com ação policial, demissões e acusação de “vandalismo” (os mesmos trabalhadores que, com zelo e cuidado, conduzem os metrôs diariamente) e ameaçados com mais 300 demissões se a greve voltar. Paralela e curiosamente, as transnacionais Alston, Siemens, entre outras, bem como seus gendarmes que praticaram fraudes volumosos em obras de ampliação do Metrô, sob governos do PSDB, como a imprensa e Justiça têm divulgado intensamente, ainda não sofreram nenhuma punição exemplar. E vale também recordar que os metroviários se utilizam de um direito constitucional (o direito de greve) que foi obtido depois de décadas de luta contra a ditadura militar. 

Por fim, um argumento recorrente contra as greves, é de que elas são “oportunistas” por ocorrerem às vésperas da Copa. Mas a Fifa, essa transnacional do (des)entretenimento global não está impondo sua marca e seus “parceiros” para lucrar ainda mais compulsivamente com sua Copa? Não obrigou o País a mudar sua legislação para poder vender bebidas alcoólicas nos estádios e assim ganhar ainda mais? Não é que até o acarajé ela tentou extirpar do estádio (ou arena?) em Salvador? E o empresariado do ramo de hotelaria não está cobrando o que quer, assim como os restaurantes? 

Vem então a pergunta que não quer calar: por que somente os trabalhadores são “vândalos” e proibidos de lutar por seus direitos neste momento em que o mundo inteiro está olhando para o Brasil? 

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Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor, entre outros, de 'Os sentidos do trabalho' e 'Riqueza e miséria do trabalho no Brasil', vols. I e II (ambos pela Boitempo)




Fonte: Estadão

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