terça-feira, 17 de junho de 2014

A Copa que eu queria contar



Por Carlos Eduardo Rebuá

Tão importante quanto a história vivida é a história contada e recontada. No mundo do futebol os rabiscos da pelota – como os argentinos e uruguaios, nossos maiores rivais, chamam a bola – se eternizam nas diuturnas narrativas com a autoridade de quem “viu” ou imaginou ver.


A grande virtude do futebol é sua capacidade de surpreender,

de provocar assombro, de permitir o milagre,

de saber que o impossível pode acontecer.

É uma das atividades humanas mais imprevisíveis

que existem. Daí o sucesso popular, mundial.

(Eduardo Galeano)



Moro a poucas quadras do Maracanã, estádio que já nasceu megalômano: a FIFA recomendara ao Brasil um lugar com capacidade para 20 mil pessoas. Fizemos com capacidade para 155 mil, para não mais sermos vira-latas e mostrarmos ao mundo nossa grandeza! Mesmo sabendo que vai ter Copa (a despeito das greves e manifestações, legítimas e necessárias), sei que para mim e para milhares de brasileiros a Copa será pela tevê. Ou na rua, como diz a sarcástica música da FIAT1 para a Copa, cantada por Herbert Vianna e Negra Li: “quem tá na rua não precisa de ingresso”.

Na Copa dos meus sonhos, Ronaldo “Fenômeno”, alçado à função de “péssimo comentarista da Globo”, teria que fazer plantões em hospitais nos dias de jogos da seleção, para se retratar da infeliz frase de que uma Copa não se faz com hospitais; o senhor Joseph Blatter, gânsgter-chefe da Federação Internacional de Futebol, seria obrigado a recolher os milhões de dólares destinados às distintas federações de futebol do mundo, apenas nesta semana, como “agrado” para sua reeleição, e entregá-los aos movimentos/organizações sociais que atuam no combate à miséria, à violência contra crianças e mulheres, ao analfabetismo, ao racismo; o ilustre Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, seria encarregado de levar suas comitivas avaliativas a todas as escolas do país, para auditar o “padrão-Fifa” de nossa educação, que no último ranking mundial (parcial e repleto de contradições, como quase todos) da UNESCO2, aparece como 38º, entre 40 países (estamos “vencendo” México e Indonésia!); o ilustríssimo Parreira, coordenador técnico da Canarinho e cidadão do país-CBF desde a ditadura, que chamou as distintas manifestações de “contratempos” e afirmou que “todo” o povo brasileiro está com a seleção, seria designado para acompanhar “toda” a Copa dentro de favelas do Rio de Janeiro, Salvador, Natal, São Paulo e outras cidades-sede do Mundial. Aquelas mesmas cidades que nas propagandas oficiais dos governos (federal, estadual e municipal) estão em paz, felizes e prosperando, sem mortes de jovens “quase todos pretos” – como na música de Gil e Caetano – quase todos os dias, sem ausência de serviços básicos (água, saneamento, luz, transporte...), sem falta de esperança e perspectivas reais de uma vida digna.

No meu sonho, a “família Scolari”, avaliada em 1,6 bilhões de reais3 seria campeã, arrebentando nos gramados da terra do futebol e calando a boca daquela esquerdalha que sempre joga contra a seleção porque ser de esquerda é ver o Brasil ser derrotado em ano de eleições, como se as coisas se resolvessem assim, facilmente, como num drible do Neymar Jr. A diferença é que no meu sonho a seleção bilionária e hexa (onde cada jogador, para além de suas fortunas, receberá em caso de conquista 48 milhões de reais4 de prêmios: R$ 1,2 milhão de reais para cada um), abriria mão de seus salários durante o mês do Mundial (e da premiação do título), juntando essa enorme grana e decidindo, em coletivas populares de imprensa (sem aqueles jornalistas chatos que só querem saber sobre o “falso 9” ou sobre o que os gringos estão achando da comida brasileira), com crianças, jovens, adultos e velhos, homens e mulheres, todos trabalhadores, determinando onde esse dinheiro seria investido. Por um mês apenas.

Neste sonho, que é só meu, mas que também é de muitos, os estádios construídos especialmente para a Copa, com suas somas astronômicas e seus atrasos estratosféricos, seriam transformados em assembleias populares permanentes. Ali, naqueles monstros de concreto, contratos e coquetéis, o povo – esse estranho ser que costuma aparecer muito na prévia e pouco na estréia dos megaeventos – duas vezes por semana, como a seleção na Copa, decidiria quais as demandas mais urgentes, quais os políticos que devem ir para o banco (de reservas, é bom deixar claro!) e qual seria o destino dos bancos, esses criminosos coletivos, em alusão à famosa assertiva de Brecht: “o que é roubar um banco comparado a fundar um?”.

A surpresa, o assombro, o milagre, a imprevisibilidade, são ingredientes fundamentais do futebol, marcas que só o esporte da bola no pé possui, como afirma Galeano, um de seus mais notáveis entusiastas, que em entrevista recente ao Estadão5 disse que Messi e Neymar são verdadeiros “milagres” no atual quadro do futebol-lucro, dos estádios-arena, dos clubes-empresa, pois ainda que milionários, tem alegria nas pernas. Enquanto sonhar ainda é de graça, sigo com meus devaneios pré-Copa. Certo de que a bola, o drible e o sonho seguirão incertos... e serão ainda muito contados.










5 http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,messi-e-neymar-sao-verdadeiros-milagres-diz-eduardo-galeano,1155824


Carlos Eduardo Rebuá é Professor de História no ensino superior e na educação básica, mestre e doutorando em Educação.


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