terça-feira, 25 de março de 2014

Sociedade do Espetáculo ou o verão dos justiceiros

Foto retirada de bancariosal.org.br

Por Luciane Soares da Silva
Um dos principais livros da sociologia do século XX, foi escrito por um canadense, que esteve no Brasil e trabalhou boa parte da vida nos Estados Unidos. O livro tem pouco mais de cem páginas e seu autor, Erving Goffman, desenvolveu uma teoria sofisticada para a situação mais simples da vida social: o encontro cara-a-cara. Ou como podemos ler em ‘O Estigma’, o encontro “face-to-face”. Estou em um daqueles espaços de ninguém, em um aeroporto de São Paulo, durante o carnaval. Tentando usar o tempo para eleger o fato que sintetiza este verão. Acabo de chegar a uma conclusão: este foi o “verão dos justiceiros”.
Pelos idos de 1760, em pequenas cidades europeias, era parte do convívio social a exposição do parricida em praça pública, a forca, o esfolamento e outras formas de punições corporais. Após seu julgamento, dentro de um ritual que deveria alertar os povos sobre as consequências da vida criminosa ou mesmo do ato isolado, passional, a exposição era parte do grand finale. Um espetáculo substituído ao longo dos séculos pela pena de prisão.
A cada dia que acordo, tento escrever o texto sobre a ação dos justiceiros. E a cada semana vejo multiplicarem-se ações semelhantes em lugares diferentes do país. E modalidades diferentes do mesmo princípio de justiça com as próprias mãos. Tenho me perguntando, as razões pelas quais não consegui nestas semanas todas, escrever uma única linha sobre um jovem negro amarrado a um poste na zonal sul carioca.
Lembro da chegada dos policiais à cidade no filme Mississipi em Chamas de Alan Parker. Nenhum negro ousava contar o que acontecia por ali. Os assassinatos, a violência cotidiana. Por outro lado, todos os moradores e mesmo as autoridades acreditavam na separação entre brancos e negros.
Mas não vivemos esta separação no Brasil. Vivemos os cruzamentos, apadrinhamentos e depois de Lombroso, e passado o século XIX, vivemos sob mitos fundadores de uma raça mestiça. Não criamos igrejas separadas, duplicamos os santos. Nossos santos são bifrontes. Não vivemos (nâo?) a chaga do ódio racial se compararmos nossas relações sociais com as vividas nos Estados Unidos da América e o regime do Apartheid na África do Sul. Como explicaremos então, o verão de 2014, e outros verões feitos de chacinas? Não dialogo aqui com os defensores de penas mais duras ou que aqueles que acreditam que a lei não funciona no Brasil. Estes precisam antes, observar os números do sistema prisional e sua escalada no Brasil e nos Estados Unidos.
Dialogo com aqueles que andando pelos aeroportos, rodoviárias, Universidades, shoppings, percebem o significado do olhar. Era disto, sobretudo que Goffman se ocupava em suas observações. Como os “normais” em sua forma de uso do espaço público exercem as formas de olhar. Se qualquer pessoa exercitasse o olhar, veria que neste momento, em Viracopos, dezenas de atendentes, faxineiros, serventes de banheiro, trabalham. Eles não nos olham.
Existe um constante desvio de olhar, uma fuga social intensificada pelo medo. Mas engana-se quem pensa que é o medo do crime, da violência ou da morte. É o medo do estabelecimento de relações menos desiguais, o medo da percepção do sofrimento alheio, uma espécie de escapismo coletivo.
Volto ao ritual público no bairro do Flamengo. As explicações dadas dão conta de parte do fenômeno. Mas nem o descaso nem o aumento de roubos é a grande novidade dos verões do Rio de Janeiro. O problema nas explicações que racionalizam a ação dos justiceiros é que deixam escapar o que está no inconsciente coletivo: a forma de justiça aplicada pelo grupo. Entre todas as formas de violência possíveis, por que amarrar um jovem sem roupa foi a forma empregada?
Revejo agora que era necessário esperar, antes de escrever. Após a leitura de textos publicados nos principais jornais e nos veículos de mídia independente, é surpreendente a aprovação da ação dos “justiceiros do Flamengo”. A publicação de uma reportagem com um dos integrantes do grupo, no dia 10 de fevereiro deste ano, no portal G1, não deixou dúvidas. Todos os 53 comentários foram favoráveis a ação. O termo mais utilizado foi “pivete”, o problema seria a falência da segurança pública e o governo do PT. Um ainda cita ter “saudades do Mão Branca” e outros pedem a ronda dos milicianos justiceiros em Niterói e Copacabana.
Não é apenas uma “imagem que relembra os tempos escravidão”, tampouco a ação isolada de jovens de classe média do bairro do Flamengo. É o fundamental encontro entre aqueles que classificados como “normais” na linguagem de Goffman, e os “pivetes”. Encontro fundamental desde os Miseráveis de Vitor Hugo e muito antes. Os pivetes do Flamengo sintetizam este sentimento bem representado nas rondas: o desejo de limpar o bairro.
O que há de novo então? Talvez a escala do espetáculo proposto. Intuitivamente ou não, eles poderiam imaginar os efeitos da imagem que proporcionaram às redes sociais. Não haveria manchete sem elas. A imagem ali exposta é o triunfo final da Sociedade do Espetáculo. Todos os articulistas descreveram a mesma cena, na mesma ordem.
A nudez, o material utilizado, a cor do jovem acorrentado. Até que o signo ficasse vazio e se transformasse em algo diferente: o corpo estava refém da sociedade que o estava expondo, martirizado então pela segunda vez. E os milicianos sabiam disto. Aí reside a potência de sua ação: mobilizar (como é possível perceber no apoio e solicitação da ação), uma parcela considerável da sociedade civil em torno do discurso do ódio. Que travestido de ódio a desordem, é ódio de classe, ódio racial. E o olhar sobre a cidade é central para pensar estas interações.
Caso alguém nunca tenha experimentado uma situação de discriminação pública, oferto alguns exemplos bastante comuns, todos com o mesmo objetivo de evitar relações sociais horizontais: o primeiro, sofrido quando se está em um ambiente no qual há hegemonia de raça, gênero ou classe, é o olhar da estranheza. A senhora da boa sociedade que incomodada com nordestinos em sua adega, demonstra toda sua agressividade servindo as mesas rapidamente, enquanto demora-se em outras com sorrisos e perguntas sobre o bem-estar dos clientes.
O olhar de famílias em uma loja de brinquedos quando uma criança negra busca o mesmo brinquedo que seu filho está utilizando. Estes são casos comuns, cotidianos e qualquer verbalização sobre eles é vista como uma forma de “síndrome de perseguição dos subalternos”, ou seja, o problema estaria em quem sofre a ação e não no olhar de quem demonstra desconforto.
A segunda forma, tão comum e ainda mais invasiva é o olhar da suspeita. Longe de ser monopólio dos policiais, é empregada por porteiros, empregadores, vendedores de loja e seguranças privados. São olhares que acompanham seu alvo de forma fixa, prestes a entrar em ação ao mínimo ato que comprove as razões da desconfiança.
O terceiro tipo de olhar é menos comum: é o olhar de espanto diante da diferença, da revelação de um status não esperado: o médico mestiço em um hospital caro de São Paulo, a professora que entra em aula exibindo cabelos crespos e pele negra na faculdade de Medicina em Minas Gerais, a dentista nordestina que chega em um carro importado em um prédio no Moinhos de Vento. Este olhar é semelhante ao ato de “desnudar” o outro. Se por alguns segundos pode parecer menos agressivo, ele revela a mesma sensação de desconforto dos anteriores.
Existe ainda um tipo avesso, mas talvez o complemento perfeito dos exemplos anteriores. Um dos momentos mais tensos do filme “Linha de Passe” de Walter Salles, é o momento em que o moto boy comete um roubo de carro. Enquanto o proprietário passa todos os seus pertences, ele berra enfurecido e ao mesmo tempo, desesperado “Você tá me vendo playboy? Olha para mim, você tá me vendo?”
E em uma ficção urbana, um menino, um pivete, encara a multidão e grita:
Você está me vendo? Já nem importa mais a verdade, a liberdade não está nem perto dos homens, é uma das mais temíveis batalhas, existem muitas formas de escravidão, mas não há liberdade relativa, a liberdade é intransitiva, uma vez que rompemos grilhões, não se volta mais ao ponto anterior, uma vez presumida como experiência, não se pode voltar a ser escravo. Nem das próprias paixões, nem de outros homens.

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