sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Haddad e Alckmin juntos para riscar do mapa Favela do Moinho



Apesar de o prefeito paulistano ter prometido durante a campanha eleitoral que a comunidade seria regularizada, administrações municipal e estadual trabalham juntas para eliminá-la. O Arquitetura da Gentrificação mostra quais os interesses sobre a área ocupada.

Por Sabrina Duran e Fabrício Muriana - Da Repórter Brasil 

A Favela do Moinho está sob disputa acirrada desde que Gilberto Kassab (PSD) assumiu a prefeitura de São Paulo, em 2006. Naquele ano, o então prefeito José Serra (PSDB) abandonou a administração municipal para disputar as eleições ao governo do Estado. Kassab, seu vice e afilhado político, assumiu a cadeira e, em 2007, como primeira medida de disputa pela área onde está a Favela do Moinho, entrou com uma ação para comprar o terreno pertencente a dois particulares. Essa ação de compra geraria, automaticamente, a desapropriação da comunidade, que teria de sair dali.
Desde então, os moradores viram a disputa judicial tornar ainda mais difícil sua permanência na área. Uma permanência marcada por esgoto a céu aberto, por falta de água encanada, de energia elétrica e de pavimentação, por violência policial e pela total omissão do poder público.
Em 2011 e 2012, últimos dois anos do segundo mandato de Kassab, a Favela do Moinho sofreu dois grandes incêndios, que eliminaram mais de um terço dos barracos da comunidade e deixaram mortos, feridos e milhares de desabrigados.
No ano passado, quando ainda era candidato ao governo municipal, o atual prefeito Fernando Haddad (PT) visitou o Moinho e fez uma promessa aos seus moradores: se eleito, resolveria a questão fundiária da comunidade e reurbanizaria a favela, concretizando o desejo da maioria de permanecer ali. A promessa foi gravada em vídeo e veiculada em TV aberta como propaganda de campanha.
No cargo, porém, Haddad deu continuidade aos planos de seu antecessor de erradicar a Favela do Moinho. Nos últimos meses, tanto o governo municipal quanto o governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) vêm tornando a vida dos moradores especialmente difícil, seja com incursões ostensivas da PM e da Guarda Civil na comunidade, seja com o descumprimento do compromisso de realizar saneamento básico na área ou com o oferecimento, pela prefeitura, de bolsa-aluguel para quem está na favela se mudar de lá, numa tentativa, segundo moradores e movimentos de moradia, de esvaziar a comunidade e minguar a resistência local.
Em reportagem de maio de 2013 feita pela “Agência Pública” sobre o Moinho, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação afirmou: a administração Haddad pretende erradicar a favela.
A questão é: por que Haddad está empenhado em eliminar a favela que prometeu regularizar e reurbanizar? Por que ele está disposto a assumir o ônus político e moral do descumprimento de uma promessa tão estratégica? Quais os interesses por trás da sua decisão? Quais os planos para a área da favela que não incluem as pessoas que vivem ali?
Após mais de dois meses de apuração, o Arquitetura da Gentrificação chegou a algumas respostas. Acompanhe agora esta “reportagem-linha do tempo” contando a história da Favela do Moinho, os desafios que a comunidade vem enfrentando e quem está interessado naquele pedaço de terra que, de acordo com pesquisas, é o terceiro bairro, de uma lista com 140, com maior índice de valorização dos preços dos imóveis entre 2008 e 2011: 182%.
Incêndio de 2011 destruiu um terço das casas da favela.Há suspeitas de que o fogo foi proposital.
Foto: Pragmatismo Político
Há quase três décadas

Cravada entre duas linhas de trem da Companhia Paulista de Trens Paulistanos (CPTM) e no coração da cidade, o Moinho é a última favela do centro da capital paulista. Sua história começou há cerca de 25 anos, com a ocupação do terreno sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, onde ficava o antigo Moinho Matarazzo, que lhe rendeu o nome.

Antes dos dois grandes incêndios de 2011 e 2012, a comunidade chegou a abrigar 1.200 famílias – cerca de 5 mil pessoas. O número hoje, após a destruição dos barracos pelas chamas, é de 480 famílias. Alessandra Moja, de 29 anos, é uma das lideranças da favela e integrante do Movimento Moinho Vivo, organização política local composta por moradores e parceiros da comunidade. Há 18 anos ali, é uma das moradoras mais antigas entre os atuais 1.900 habitantes da favela. É ela quem guia nossa reportagem pela história passada e recente do Moinho, além de Caio Castor, também morador e integrante do movimento e realizador do Projeto Comboio, juntamente com Flávia Lobo. Desde 2012, Caio e Flávia desenvolvem um projeto independente de pesquisa, urbanismo e comunicação na comunidade.
Em 2007, a tentativa de compra do terreno pela gestão municipal de Kassab, com depósito de indenização em dinheiro e pedido de posse provisória da terra, acrescentou mais um elemento à disputa pela área. Originalmente, a área do Moinho pertencia à Rede Ferroviária Federal S/A. Mas, em 1999, por conta de uma dívida de IPTU, o terreno da empresa foi a leilão. Nessa época, a comunidade já ocupava o local há pelo menos uma década. No leilão, o empresário Ademir Donizetti Monteiro e a empresa Mottarone Serviços de Supervisão, Montagens e Comércio Ltda arremataram o terreno, mas não o registraram. Dessa forma, as terras continuaram em nome da Rede Ferroviária, que foi à falência um tempo depois, tendo seus bens e dívidas repassados ao domínio da União.
A União, por sua vez, pediu judicialmente a anulação do leilão. A ação ainda corre na Justiça, após ter sido julgada improcedente em primeira instância e a Rede Ferroviária Federal ter entrado com recurso. Assim, prefeitura, Monteiro e Mottarone, Rede Ferroviária Federal e a União estão na disputa pelo terreno do Moinho.
Diante de cenário tão frágil, os moradores da favela resolveram se proteger juridicamente também. Em 2008, com a assessoria jurídica popular do Escritório Modelo da Pontifícia Universidade Católica (PUC), a Associação de Moradores da Favela do Moinho entrou com uma ação coletiva de usucapião. A ação, de acordo com o escritório, garante o direito à propriedade às pessoas que utilizam um imóvel particular como sua moradia por mais de cinco anos, desde que não tenham outro imóvel e as famílias sejam de baixa renda.
Em abril de 2008, o juiz federal José Marcos Lunardelli deu decisão provisória assegurando a posse para os moradores até o julgamento final da ação, que não tem data para acontecer. Com isso, os moradores talvez estivessem seguros de que permaneceriam na Favela do Moinho sem serem ameaçados de despejo. Ou talvez não.
Os incêndios

Em 2011, a Favela do Moinho foi atingida por uma tragédia. Na manhã de 22 de dezembro, um fogo de grandes proporções tomou o antigo edifício do Moinho Matarazzo, dentro e em torno do qual viviam 450 famílias da favela – cerca de 1.800 pessoas. Todas elas ficaram desabrigadas. Um terço das moradias da comunidade foi eliminado. Na época, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas no incêndio. Os moradores, porém, acreditam que foram pelo menos 30.


Embora o edifício fosse de alvenaria, ao contrário dos barracos de madeira que ocupam a maior parte da comunidade, o fogo se espalhou rapidamente pelo prédio. Essa é uma das principais estranhezas que Alessandra Moja aponta sobre o caso: “desde quando tijolo pega fogo?”, pergunta, reafirmando que a velocidade e intensidade com que as chamas se espalharam não são explicadas por nenhuma causa espontânea ou natural.
Alegando que o fogo abalou a estrutura do prédio e que havia risco de desabamento, o prefeito Gilberto Kassab decidiu pela implosão do que havia sobrado dele. Imediatamente, ainda em dezembro, a prefeitura conseguiu um documento que garantia ao município a posse de parte do imóvel.
Dez dias depois do incêndio, em 1º de janeiro de 2012, pouco depois das cinco da tarde e a um custo de R$ 3,5 milhões, 800 quilos de dinamite instalados no edifício foram detonados.
Quando a nuvem de poeira formada pela implosão baixou, moradores da favela, jornalistas, curiosos e técnicos que assistiam à operação viram, com surpresa, que o edifício havia ficado quase inteiro em pé. Os 800 quilos de explosivos, considerados por muitos especialistas um excesso naquele caso, não foram suficientes para levar abaixo o antigo prédio do Moinho Matarazzo. Em entrevista à imprensa, Kassab deu sua explicação para o fiasco da implosão que, em sua conta, foi nota 10. O que ficou em pé do prédio – quase tudo – foi demolido posteriormente por tratores e escavadeiras.
A medida seguinte de Gilberto Kassab foi construir um muro de concreto armado de 55 metros de comprimento e 50 centímetros de base construído de fora a fora, dividindo a favela ao meio e isolando os moradores do terreno onde ficavam os barracos atingidos pelo incêndio. Além de impedir que os moradores reocupassem a área destruída, a construção obstruiu uma importante rota de fuga no caso de um novo incêndio. Cercados por duas linhas férreas em uso e pelo muro de concreto de Gilberto Kassab, os moradores do Moinho passaram a contar com uma única rota de fuga, situada sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, com entrada pela rua Dr. Elias Chaves, por onde o caminhão dos bombeiros não consegue passar.
Laudo do corpo de bombeiros emitido em outubro de 2012 aponta a “necessidade imediata de ser criada uma rota de fuga alternativa (…) a qual propicie (…) o acesso operacional das viaturas de combate a incêndios e das equipes do corpo de bombeiros”. A rota sugerida no laudo seria pela rua Silva Pinto, cujo trajeto conduz à parte de trás do muro construído por Kassab.
Um ano depois da emissão do laudo, a rota de fuga ainda não havia sido construída, e os equipamentos do Programa de Prevenção contra Incêndio (Previn) em assentamentos precários, criado pela gestão Kassab em 2010, não tinham sido instalados e distribuídos.
Em 17 de setembro de 2012, outro incêndio atingiu a favela do Moinho, destruindo cerca de 80 barracos, matando uma pessoa e deixando pelo menos 300 desabrigadas. Um total de 810 famílias que ficaram sem moradia, tanto no primeiro quanto no segundo incêndio, foram cadastradas pela prefeitura para receber uma bolsa-aluguel de R$ 450 por família (valor de 2013). Com esse dinheiro, os desabrigados do Moinho tiveram de se mudar para moradias precárias, favelas ou cortiços, longe do centro da cidade. Além do valor insuficiente, os atrasos constantes no pagamento da bolsa-aluguel fizeram que muitas pessoas fossem despejadas de suas casas. Algumas delas voltaram ao Moinho. Haddad não só herdou os atrasos de Kassab como os perpetuou em sua gestão.
Haddad e a promessa de urbanizar e regularizar o Moinho

Visto como potencial contraponto a Kassab e suas políticas habitacionais excludentes, Fernando Haddad começou sua campanha eleitoral de 2012 dando prioridade aos moradores da última favela do centro da cidade mais rica da América Latina, ignorados há décadas pelo poder público. Em visita à comunidade do Moinho, o candidato entrou na casa de Zeza, moradora local, e gravou um vídeo que se tornou propaganda política de sua candidatura. À dona Zeza e a todos os habitantes da comunidade, Haddad prometeu trabalhar para levar saneamento básico e regularização fundiária para a área.


Primeiro grande ato da comunidade
A promessa foi feita, mas não foi cumprida até o décimo mês do primeiro ano de mandato do petista. Em 5 de julho de 2013, os moradores da Favela do Moinho organizaram o primeiro grande ato da comunidade para pedir que Haddad honrasse o compromisso firmado. Em marcha pelas ruas do centro da cidade, eles caminharam da favela até a sede da prefeitura, onde uma comissão de negociação já os esperava. Funcionários da administração municipal souberam do protesto de antemão por meio do Facebook da comunidade e pela imprensa, e por isso ficaram a postos.
Lideranças da favela foram recebidas pelo secretário municipal de Habitação, José Floriano, e pelo secretário de Relações Governamentais, João Antonio da Silva Filho. De saída, Floriano ofereceu “um apartamento que vale R$ 150 mil” fora do Moinho e indenização aos moradores.
A derrubada do muro de Gilberto Kassab e a construção da rota de fuga, implantação de sistema de água, luz e esgoto, coleta de lixo e a execução do Previn, o programa de prevenção a incêndios, entre outras exigências, foram demandas básicas apresentadas nesse primeiro encontro entre lideranças da favela e o poder público. As lideranças citaram à comissão da prefeitura o laudo de 2012 dos bombeiros recomendando a criação da rota de fuga. Informaram também que o mesmo documento deu base à determinação do juiz Domingos de Siqueira Frascino, que decidiu, em 13 de março de 2013, que o município teria um mês para construir a rota.
Na reunião ficou decidido, a pedido dos moradores, que a Secretaria de Habitação (Sehab) se comprometia a convidar todos os órgãos responsáveis por implementar as demandas apresentadas a visitarem o Moinho em 11 de julho. Logo depois do encontro, a assessoria de Fernando Haddad ligou para Alessandra Moja, liderança do Moinho, e marcou uma reunião entre a comunidade e o prefeito para a manhã de 12 de julho, na sede da prefeitura.
Em 11 de julho, como combinado, foram à Favela do Moinho José Floriano, o então subprefeito da Sé Marcos Barreto, o secretário-adjunto de Relações Governamentais José Pivato e uma comissão formada por Defesa Civil e Bombeiros. A visita, segundo os gestores públicos, teve como objetivo visualizar as reivindicações feitas dias antes na prefeitura e buscar meios para efetivá-las. Aos moradores presentes no encontro, o secretário José Floriano afirmou que apenas em 10 de agosto estabeleceria uma data de início das obras.

Novas promessas

Na reunião com Haddad no dia seguinte, os moradores voltaram a falar das demandas básicas e apresentaram o laudo dos bombeiros sobre a necessária rota de fuga. Na ocasião, o prefeito pareceu ter entendido a urgência do pedido e prometeu a derrubada do muro para 15 de julho, dali três dias. Outro compromisso assumido por Haddad a pedido dos moradores foi a criação de um grupo de trabalho formado por membros da prefeitura e lideranças da favela. O grupo iria discutir, de modo frequente, o andamento das melhorias na comunidade.

O prefeito também se comprometeu a manter os moradores na ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) onde está inserida a Favela do Moinho (ZEIS 3 – C009 (SE)). As áreas de ZEIS têm perímetro delimitado, são destinadas à reurbanização, regularização fundiária e construção de habitação de interesse social, e são regidas por legislação específica (Decreto 44.667/2004). Com essa promessa, Haddad descartou a possibilidade de retomada da oferta que havia sido feita por Kassab, de transferir os moradores do Moinho para habitação permanente a ser construída perto da ponte dos Remédios, na Zona Oeste da cidade.
A reunião com o prefeito foi registrada em vídeo pelas lideranças da favela.
A derrubada do muro
Chegada a data prometida para a derrubada do muro, ninguém apareceu na comunidade para executar o serviço. De acordo com os moradores, apenas técnicos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) estiveram no Moinho querendo saber o número de casas de alvenaria e madeira existentes para instalar os relógios de medição. Em 16 de julho, bombeiros visitaram a favela, caminharam por lá e, da mesma forma que chegaram sem falar com ninguém, foram embora sem fazer contato com a comunidade.

Em 29 de julho, aconteceu a primeira reunião do grupo de trabalho formado por moradores do Moinho e gestores públicos. O encontro foi realizado na Secretaria Municipal de Habitação, no centro da cidade, e contou com a presença de lideranças da favela e com o então chefe de gabinete da Subprefeitura da Sé, Maurício Dantas (hoje subprefeito interino). Segundo os moradores, pouco se avançou naquela primeira reunião. Ao contrário do que pediu a comunidade, não estava presente no encontro nenhum representante da Sehab ou da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, encabeçada por Fernando de Mello Franco.
Após duas semanas de atraso no prazo dado pelo prefeito para a derrubada do muro que divide a favela, os moradores do Moinho decidiram, por conta própria, abrir a rota de fuga. Em 30 de julho começaram a operação lenta de derrubada de 4 metros de largura da estrutura de concreto armado. Essa era a única parte possível de ser demolida, já que o restante do muro de 55 metros de extensão hoje serve de apoio a novas moradias, construídas após o incêndio de 2011.
Em 2 de agosto, uma sexta-feira, por volta das 18 hs, a líder comunitária Alessandra Moja recebeu no celular uma ligação curiosa: era João Antonio, secretário de Relações Governamentais, dizendo que os moradores do Moinho deveriam sair dali porque “o Ministério Público está em cima de nós”. ”Não dá pra gente brigar com o mundo pra vocês ficarem aí”, disse o secretário.
Em relato no Facebook da comunidade, Caio Castor dá detalhes do telefonema. “O secretário ligou no celular da Alessandra (…) dizendo basicamente que não poderíamos permanecer na área e que eles tinham resolvido que daqui 2 anos e meio nós iríamos para o terreno da Rua do Bosque, no centro [terreno onde a prefeitura afirma, desde a administração anterior, que serão construídas moradias definitivas para a população do Moinho. As obras, no entanto, ainda não foram iniciadas]“. Para Castor, a “ligação atravessada” do secretário se deu por conta do início da derrubada do muro pela comunidade alguns dias antes, anunciada por meio das redes sociais.
O dia 4 de agosto, domingo, foi marcado pelo Segundo Grande Ato em prol da Favela do Moinho. Dessa vez, a manifestação foi realizada na própria favela. Houve apresentações de músicos da comunidade e a abertura oficial do muro, com britadeiras e marretas empunhadas pelos próprios moradores.
A Polícia Militar apareceu durante a tarde com o intuito de impedir a derrubada da estrutura, mas precisou recuar. Os PMs foram informados pelas lideranças sobre a decisão do juiz autorizando a abertura da rota de fuga e sobre o direito de os moradores permanecerem na área graças à tutela antecipada de usucapião concedida pelo juiz federal José Marcos Lunardelli em 2008.
Em 5 de agosto de 2013 aconteceu a segunda reunião do grupo de trabalho formado por moradores e poder público para discutir a reurbanização da favela. Dessa vez, o encontro foi realizado na própria comunidade. Ao verem a abertura no muro feita um dia antes, os gestores não esconderam o ar de reprovação. Eles apresentaram aos moradores uma proposta da prefeitura. Entre os itens, algumas das reivindicações já feitas pela comunidade e um dado novo: o governo municipal pedia que as pessoas não reocupassem a área livre onde aconteceu o primeiro grande incêndio. Insatisfeitas com a oferta, as lideranças se comprometeram a fazer uma contrapropostaa ser entregue dali uma semana, no dia 12 de agosto, durante a terceira reunião do grupo de trabalho.

Começa o silêncio do poder público

Em 8 de agosto, uma empreiteira contratada pela prefeitura criou a rota de fuga, que consistiu na retirada de parte do entulho do antigo prédio demolido e o mato que se acumulou em quase dois anos de abandono. A limpeza restringiu-se à criação de uma pequena faixa livre de lixo e vegetação que continuavam obstruindo a passagem dos moradores mesmo depois da derrubada parcial do muro.

Prevista para acontecer em 12 de agosto, a terceira reunião com o grupo de trabalho no Moinho não se realizou. Os integrantes do poder público não apareceram na favela na hora marcada e deixaram a comunidade esperando.
Desde então, e até hoje, nenhum outro encontro semanal foi realizado, embora os moradores permaneçam aguardando a comissão da prefeitura sempre às segundas-feiras, às três da tarde, na Casa Pública da comunidade. As lideranças acreditam que a recusa do poder público em conversar é uma represália à não aceitação das propostas do governo municipal pelos moradores e à afirmação da comunidade de que voltariam a ocupar o terreno antes isolado pelo muro. “A maior preocupação deles era garantir que o terreno não fosse reocupado. Em todas as reuniões repetíamos seguidamente que ocuparíamos de forma organizada e em todas eles perguntavam e repetiam essa preocupação excessiva. Isso evidencia o quanto essa gestão está muito mais preocupada em tirar das pessoas do que garantir a segurança e os direitos”, afirma Flávia Lobo, membro do Movimento Moinho Vivo.

Reocupação do terreno

Com a rota de fuga criada, em 23 de agosto os moradores fizeram o Terceiro Grande Ato em prol da favela com uma reocupação simbólica do terreno onde aconteceu o incêndio de 2011. Eles capinaram o campo, limparam, tiraram entulho e cinzas. Durante a reocupação, instalaram a estrutura de madeira do que será a sede da associação de moradores. Essa retomada do terreno vinha sendo discutida há tempos no âmbito do Projeto Comboio, em parceria com a comunidade. A proposta é que a reocupação da área, que ainda não foi iniciada, seja feita de forma organizada para permitir, inclusive, que as obras de saneamento e instalações elétricas prometidas por Haddad possam ser feitas na favela. Segundo laudo dos bombeiros de 2012, para realizar as melhorias será preciso desadensar algumas áreas. O novo espaço aberto pelos moradores no antigo terreno será essencial para receber os barracos dos que tiverem de deixar suas casas para as obras de melhorias.

Moradores do Moinho em marcha pelas ruas do centro da cidade
no primeiro g
rande ato da comunidade. Foto: Movimento Moinho Vivo
Aumentam as incursões da polícia

Desde o início das manifestações da comunidade pelo cumprimento das promessas de campanha de Fernando Haddad, a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana intensificaram suas incursões na favela, sempre com armas em punho e postura intimidadora diante da comunidade, denunciam os moradores. Além disso, desde a derrubada do muro, em 4 de agosto, as lideranças da favela não conseguiram mais marcar reuniões do grupo de trabalho com o poder público nem fazer contato consistente com os gestores, seja por telefone ou e-mail.

Em 10 de setembro de 2013, a PM fez uma nova incursão no Moinho. Naquele dia, acontecia nos fundos da favela uma assembleia com moradores, funcionários da Sehab municipal e o promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo Maurício Ribeiro Lopes. A assembleia foi interrompida por um morador que avisou que a PM estava “barbarizando” a comunidade. Lopes foi instado pelos presentes a intervir junto aos policiais. Acompanhado por dezenas de moradores, o promotor se dirigiu ao barraco onde estavam os policiais, supostamente à procura de um traficante. Após uma breve conversa, os PMs deixaram a favela “escoltados” por Lopes e sob os gritos de “Fora!” dos moradores. No vídeo a seguir, o promotor aparece em uma ligação explicando o ocorrido ao assessor do secretário de Segurança Pública, Eduardo Grella. Sobre a audiência do dia 10 de setembro falaremos mais abaixo, no item “Ou vai ou racha. Racha”.

PPP, CPTM e Secretarias

Em 29 de abril de 2013, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação, a Sehab, informou ao repórter Luciano Onça, da “Agência Pública”, que a Favela do Moinho seria erradicada e que as famílias seriam atendidas com unidades habitacionais definitivas. A informação ia na contramão da promessa feita por Haddad em 2012, de regularizar a questão fundiária da favela e reurbanizá-la.

A partir dessa declaração oficial, o Arquitetura da Gentrificação começou a investigar quais os planos concretos do poder público para o terreno. O silêncio repentino da prefeitura sobre as demandas da comunidade após a derrubada do muro, as incursões policiais na favela e a ligação do secretário João Antonio para Alessandra deixavam entrever que Haddad estava mesmo disposto a descumprir sua promessa de campanha.
Em mãos, tínhamos três caminhos para a apuração: o primeiro, a ligação do secretário municipal de Relações Governamentais a Alessandra comunicando a necessária saída dos moradores da Favela do Moinho; o segundo, a Parceria Público-Privada entre governo do Estado, município e empreiteiras para a construção de 20 mil unidades de habitação popular no centro da cidade. Em documentos oficiais, a área do Moinho está inserida no perímetro do projeto, conhecido como PPP de Habitação do Centro, e que prevê a desapropriação de mais de 900 imóveis na região central para a construção das moradias.
Por fim, tínhamos um vídeo da CPTM divulgado em 2012 detalhando o enterramento dos 12 km de trilhos do trecho Lapa-Brás, e a construção, na superfície desse enterramento, de avenidas, ruas, parques e edifícios. A Favela do Moinho aparece no vídeo quando se mostra os trilhos na atualidade. Com a projeção em 3D das futuras obras concluídas, a comunidade desaparece no vídeo, e em seu lugar surge a estação Campos Elíseos da CPTM.
Os trilhos representam um entrave para o mercado imobiliário, uma vez que cindem aquele trecho da cidade, dificultando transposições e retirando espaço linear de possíveis construções. Da mesma forma, a Favela do Moinho também é um problema para as construtoras, já que favelas desvalorizam os imóveis no seu entorno.
O projeto de enterramento dos trilhos estava previsto na Operação Urbana Consorciada Lapa-Brás, de 2011. O projeto não foi adiante porque nenhum concorrente da licitação preencheu os requisitos mínimos.

CPTM primeiro

A assessoria de imprensa da CPTM confirmou à reportagem que a empresa “está desenvolvendo projeto funcional para a nova estação na região central de São Paulo. A conclusão do estudo, prevista para o final deste ano [2013], indicará a melhor localização para implantação da nova estação, bem como seus acessos, contemplando a inserção urbana. A construção dessa estação dependerá também de entendimentos com outros órgãos para negociação de área no entorno da região onde ficava [sic] a favela do Moinho”.

“A nova estação”, prossegue a assessoria, “terá o papel de melhorar a distribuição de demanda no eixo estruturador das linhas da CPTM, aliviando a transferência entre as linhas da CPTM na Estação da Luz”. O nome da nova estação informado pela assessoria no título do e-mail de resposta era Bom Retiro, e não Campos Elíseos, como aparece no vídeo de 2012 da companhia.
Em 31 de agosto deste ano, o jornal “Folha de S. Paulo” publicou reportagem anunciando a criação de nova estação de trem no centro da cidade. No texto, a nova estação era citada em uma única frase dita pelo secretário estadual de Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes, como estação Campos Elíseos, a ser construída em frente à Luz. O nome anunciado pelo secretário não bate com o nome da estação informada, via e-mail, pela assessoria da CPTM. Da mesma forma, a localização dada por um e outro diverge um pouco: a estação Bom Retiro, ao que parece, fica no entorno imediato à Favela do Moinho; já a Campos Elíseos fica em frente à Luz, distante cerca de dois quilômetros da favela.
Apesar das disparidades pontuais de nomes e localização, os planos de nova estação da CPTM são claros, e têm potencial para se sobrepor à favela, dada a magnitude das obras do gênero feitas em São Paulo.

Esconde-esconde da PPP

Para saber se haveria conflito ou complementação entre o projeto da CPTM e a Parceria Público-Privada de Habitação dos governos do Estado e do município, a reportagem fez contato com a Secretaria Estadual de Habitação. Por e-mail, a assessoria da Sehab estadual respondeu que “não prevê, em seu projeto de PPP – Parceria Público Privada para viabilização de empreendimentos habitacionais no centro paulistano, intervenções diretas na Favela do Moinho. Isso porque consta que a Secretaria Municipal de Habitação tem um projeto específico para a área”.

A afirmação da Sehab estadual contraria o que está escrito no edital de chamamento da Casa Paulista, agência do Estado que coordena a PPP. No documento, o Moinho é citado no setor A do projeto subdividido em seis lotes que sofrerão intervenção urbana. Com base na informação recebida, solicitamos à assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação uma entrevista com o secretário José Floriano. A entrevista foi negada com o argumento de que Floriano estava sem agenda para nos receber. Pediram que enviássemos as perguntas por e-mail, o que foi feito em seguida. A questão principal era saber quais eram os planos que a Sehab municipal tinha para o Moinho.
Simultaneamente ao contato com esta secretaria, procuramos a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Relações Governamentais para saber detalhes sobre o telefonema do secretário João Antonio da Silva Filho para Alessandra Moja, moradora do Moinho, em 2 de agosto.
Nossas dúvidas eram: que tipo de pressão ele alegou estar sofrendo do Ministério Público? Por que o poder público deixou de comparecer às reuniões com o grupo de trabalho na favela desde 12 de agosto? Por que retirar os moradores da Favela do Moinho se a promessa de Fernando Haddad era exatamente o oposto? A entrevista pessoal com o secretário também foi negada por falta de agenda, e pediram o envio das perguntas por e-mail, o que também foi feito em seguida.
Em 20 de agosto, a assessoria de imprensa do secretário João Antonio enviou à reportagem uma nota oficial dizendo, entre outras coisas, que “em face do processo de negociação da Prefeitura de São Paulo com a comissão de representantes dos moradores da Comunidade do Moinho, a Secretaria Municipal de Relações Governamentais (SMRG) e a Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) informam que a administração municipal cumpre seu papel de manter um canal permanente de conversação com as lideranças locais, seja na sede do governo, seja na própria comunidade, como já foi feito em diversas ocasiões, com a presença de técnicos e equipes da Secretaria Municipal de Habitação, da Secretaria Municipal de Relações Governamentais e da Subprefeitura da Sé”.
A nota foi assinada por João Antonio e pelo secretário municipal de Habitação, José Floriano. Nenhuma das cinco perguntas pontuais enviadas por e-mail anteriormente foi respondida. Por telefone, entramos em contato com Djair Galvão, assessor de imprensa da Secretaria Municipal de Relações Governamentais para obter as respostas. O assessor continuou sem responder com precisão às questões objetivas, disse que o assunto era “delicado” e que o órgão que teria as informações sobre possíveis planos do governo para a Favela do Moinho era a Secretaria Municipal de Habitação.
Também por telefone, fizemos contato com a assessoria de imprensa da Sehab municipal. Contradizendo o colega Djair Galvão, o assessor Nivaldo Carboni disse que as informações sobre o Moinho estão a cargo da Secretaria Municipal de Relações Governamentais e que a secretaria para a qual ele trabalha não tem nenhum plano concreto para a Favela do Moinho. Confrontado com informações da Sehab estadual que o contradiziam, Carboni se irritou: “eu já te disse, não adianta você ficar me cercando, eu não tenho informações sobre isso [sobre os planos para o Moinho que a Sehab estadual afirma que a Sehab do município tem]. Por fim, questionado sobre a nota que sua assessoria emitiu em 29 de abril de 2013 dizendo que a Favela do Moinho seria erradicada, Nivaldo Carboni disse que a informação não procede, mas que também não estava “desmentindo ninguém”.

Mapeamento e clareza

Não é de se estranhar o empurra-empurra de uma secretaria para outra e o mistério em torno da PPP de Habitação do Centro e dos planos para o Moinho no contexto desse projeto. Anunciada pelo governo do Estado em abril de 2012, a PPP nunca foi devidamente exposta à apreciação da sociedade quando ainda estava em fase de elaboração. O Instituto Urbem, vencedor da licitação para desenvolver o projeto, concluiu os estudos em outubro de 2012. Mais de um ano depois, esses documentos nunca foram apresentados na íntegra à população.

Em junho de 2013, o governador Geraldo Alckmin assinou um decreto desapropriando mais de 900 imóveis no centro da cidade para serem usados como moradia na PPP. Em tese, os imóveis estavam vazios ou subutilizados. Eram “vazios urbanos”, como informou Milton Braga, um dos arquitetos do Urbem que desenvolveu o projeto.
Mas não demorou até que os primeiros proprietários atingidos pelo decreto, dezenas deles, viessem a público reclamar estarem sendo desalojados de suas casas e comércios há anos consolidados. Diante de tantos desencontros e obscuridades, o promotor de Justiça Maurício Ribeiro Lopes, da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público, decidiu intervir, e conseguiu, por meio de liminar concedida pela Justiça em 23 de agosto, suspender temporariamente a PPP. Em atitude inesperada, porém, o desembargador Xavier de Aquino, que havia paralisado o projeto, voltou atrás e revogou a própria liminar em 16 de outubro, pondo fim à suspensão da PPP. A ação ainda segue na Justiça e espera a decisão de outros dois desembargadores.
Embora as três secretarias consultadas pela reportagem tenham se furtado a responder objetivamente às questões sobre a PPP e o Moinho, um mapeamento dos imóveis desapropriados feito de forma independente deixou visível, literalmente, os possíveis planos do poder público para a favela. Com uma lista com mais de 900 endereços contemplados no decreto e a ajuda do Google Maps, a bióloga Cláudia Roedel, administradora da página “Desalojados do Alckmin” no Facebook e membro da Associação Acorda Brasil, que está sendo criada para dar suporte aos moradores afetados pela PPP, vem marcando no mapa virtual cada um dos imóveis que serão desapropriados. O mapeamento ainda está em processo, mas os achados de Cláudia até o momento são reveladores sobre os planos de Alckmin e Haddad para a região onde está o Moinho.
No mapa, a Favela do Moinho aparece cercada por propriedades que darão lugar às novas e “requalificadas” moradias propostas no projeto do governo estadual.
Ali, onde o vídeo da CPTM feito em 2012 mostra uma estação de trem, onde a assessoria de imprensa da CPTM aponta a criação de uma estação de trem, e onde o secretário de Transportes Metropolitanos sugere que será construída uma estação de trem, está cravada a área da qual faz parte a Favela do Moinho. Em um projeto de R$ 4,6 bilhões como a PPP de Habitação, que prevê a “requalificação” urbana da região central para abrigar famílias que ganham até 16 salários mínimos (mais de R$ 12 mil) e que tem como agentes de construção os governos estadual e municipal de acordo firmado com grandes empreiteiras, é evidente que favela alguma compõe bem com a paisagem.
A Favela do Moinho está marcada para ser riscada do mapa.

Ou vai ou racha. Racha

Conforme o tempo passa e os certames para a execução da PPP e da nova estação de trem se aproximam, é cada vez mais urgente a retirada dos moradores da área do Moinho. Agora o poder público municipal passou a usar outro artifício para acelerar o desmonte da favela. Sem que ninguém estivesse esperando – e sem que a comunidade fosse consultada –, Maria José Calderine, da Secretaria Municipal de Habitação, marcou uma assembleia geral no Moinho para 10 de setembro. A funcionária limitou-se, por telefone, a comunicar a data ao Escritório Modelo da PUC, que dá assessoria jurídica aos moradores, e perguntar se estariam presentes na assembleia. O Escritório Modelo repassou o recado à comunidade, que recebeu a notícia com surpresa.

Na data marcada, os moradores se reuniram no terreno recém-capinado nos fundos da favela, onde aconteceu o primeiro grande incêndio. Ali, foram instalados um microfone e uma caixa de som para Maria José se pronunciar. Acompanhando a funcionária da Sehab estava o mesmo promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo Maurício Ribeiro Lopes, que conseguiu liminar suspendendo temporariamente a PPP.
O tópico mais importante da reunião foi a bolsa-aluguel, mas não a paga aos antigos moradores do Moinho que ficaram sem suas casas por conta dos incêndios e que precisaram alugar um barraco longe dali. O assunto principal da assembleia foi a bolsa-aluguel que a Secretaria Municipal de Habitação estava disposta a pagar para que os moradores remanescentes do Moinho saíssem de lá. Ao aceitar o auxílio, explicou Maria José na reunião em 10 de setembro, o morador teria de se mudar da favela, e seu barraco seria destruído em seguida para que não houvesse nova ocupação.
A tática não é nova, denunciam militantes pelo direito à moradia: o poder público se omite na obrigação de resolver os problemas de saneamento básico da favela, perpetuando a precariedade da vida de quem nela mora. Depois, acontecem as incursões policiais intimidadoras, as ameaças de despejo e o silêncio do governo sobre o futuro da comunidade. Em seguida, surge a oferta da bolsa-aluguel para que os habitantes tentem uma moradia melhor fora da área, com a promessa de que uma habitação definitiva será dada pelo governo num futuro próximo. Quando e onde essa habitação será entregue, não é dito.
O cansaço, a insegurança e o medo do despejo fazem que alguns moradores aceitem a oferta da bolsa, suficiente para pagar aluguel numa outra favela ou cortiço longe dali. Com a favela esvaziada, mina-se a resistência da comunidade, e a retomada do espaço pelo poder público torna-se mais fácil.
A tática do governo Haddad, que culminou com a bolsa-aluguel oferecida pela Sehab, é a mesma usada por Gilberto Kassab em sua gestão para tentar reaver o terreno do Moinho. Alguns dias antes da visita surpresa de Maria José Calderine à favela, Caio Castor havia relatado o que a mesma Sehab municipal fez em 2012 com os moradores, tentando retirá-los do terreno por vias aparentemente “não-violentas”.

Arco Tietê: sai o Moinho, entra o mercado

Enquanto esta reportagem era produzida, a Prefeitura de São Paulo lançou, em setembro, o hotsite oficial do Arco Tietê, parte central do megaprojeto de intervenção urbana chamado Arco do Futuro, carro-chefe da campanha de Fernando Haddad em 2012. O objetivo do Arco Tietê é criar diversas centralidades espalhadas ao longo das marginais do rio Tietê, gerando polos de emprego, ampliando e ramificando o viário e aproximando, assim, moradia, trabalho e transporte. O projeto abarca pelo menos 22 bairros da cidade em cerca de 5 milhões de metros quadrados, e está previsto para ser realizado ao longo de 30 anos e ao custo de “dezenas de bilhões de reais”, como informou o secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco.

E o Moinho está no arco de Fernando Haddad. Na proposta de viabilidade do Arco Tietê apresentado no hotsite da prefeitura e que serve de diretriz aos consórcios que apresentarão projetos, na área da favela estão contempladas duas importantes intervenções: o enterramento dos trilhos e a criação de um equipamento público que servirá como “projeto indutor”. “No Estatuto da Cidade, o termo ‘indutor’ tinha o objetivo de forçar a terra urbana a cumprir sua função social”, informa a arquiteta e urbanista Luciana Itikawa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Luciana diz que é importante, no entanto, distinguir os Instrumentos Indutores de Desenvolvimento Urbano do Estatuto da Cidade dos “projeto indutores” e “obras indutoras”.
“‘Instrumento Indutor’, de fato, é um termo técnico mas, nesse caso, ‘projeto indutor’ ou ‘obra indutora’ estão sendo utilizados no Projeto Arco Tietê como âncoras inseridas em projetos abrangentes de mudança de uso e ocupação do solo, e não parece que têm o mesmo viés de correção, como o IPTU progressivo no tempo, ou os PEUCs (Parcelamento, Edificação ou Utilização compulsórios), que, teoricamente, foram pensados para forçar o uso de terrenos vazios ou ociosos que eram inutilizados muitas vezes com o propósito de retenção especulativa”, explica Luciana.
Um “projeto indutor”, nesse caso uma possível estação de trem na área do Moinho, é um equipamento que irá reconfigurar toda a orla e, sobretudo, irá adensar o entorno, segundo as regras do Plano Diretor Estratégico, que determina a potencialização do uso da terra nas áreas onde há transporte de massa. No entanto, da maneira como está sendo mostrado no Arco Tietê, o “projeto indutor” poderá ter um efeito contrário, segundo a urbanista. Em vez de garantir a democratização do direito à cidade, poderá gerar valorização imobiliária do entorno e afastar da região a população de menor renda. ”Não está claro se as famílias que seriam removidas devido às obras da estação e ao encarecimento do entorno poderão ser contempladas em programas habitacionais sociais na região”, diz Luciana Itikawa.
Assim como no projeto de PPP de Habitação e no projeto de criação de uma nova estação da CPTM, até o momento os moradores da Favela do Moinho não foram consultados sobre suas necessidades e planos pelos gestores responsáveis pelo Arco Tietê.

Novo laudo, nova aposta

Por fim, a mais recente ameaça à permanência da comunidade na Favela do Moinho: um novo laudo do Corpo de Bombeiros, emitido em 1º de agosto de 2013, recomenda a desocupação imediata da área por medidas de segurança. O documento foi conseguido por acaso pelos moradores por meio de um funcionário da CPTM. Em contatos feitos com a prefeitura após a data de sua emissão, a gestão Haddad afirmava que ainda não estava pronto.

Com distância de menos de um ano entre um laudo e outro, os dois documentos são muito parecidos em seu conteúdo no que se refere à recomendação da criação da rota de fuga. No entanto, no documento deste ano, na última das 30 linhas que o compõem, foi adicionada a frase: “sob o aspecto de segurança contra incêndio a solução é a imediata desocupação do local”.
Na reunião que teve na prefeitura com lideranças da favela em 12 de julho, Fernando Haddad fez um comentário que ganha outros contornos diante do novo documento dos bombeiros: “aquele terreno, se não for urbanizado emfunção de questões técnicas e jurídicas [grifo nosso], não vai servir à exploração privada”.
Minutos depois da fala do prefeito, o secretário Municipal de Habitação José Floriano insistiu na necessidade de uma nova avaliação do Corpo de Bombeiros mesmo com um laudo já pronto, e declarou: “pode ser que não seja o muro que eles queiram [derrubar], pode ser o outro lado… o que eles definirem a gente faz [grifo nosso]“.
Um dia antes daquela reunião com o prefeito, o mesmo Floriano, em visita à Favela do Moinho, já havia “adiantado” aos moradores que só poderia dar uma data de início das obras de melhoria em 10 de agosto – mesmo mês de emissão do laudo.
Com a potencial não urbanização por motivos técnicos – o novo parecer dos bombeiros, nesse caso –, com um claro interesse da CPTM pelo local para a criação de uma nova estação, e com a valorização do preço da terra com a PPP e o Arco Tietê no entorno do Moinho, parece estar pronto, já há algum tempo, o cenário que pode por fim à última favela do centro da cidade.
Embora seja foco de disputa, a Favela do Moinho é motivo de união: união dos interesses que movem governos estadual e municipal, CPTM e setor imobiliário em direção àquela região. Para todos os efeitos, a Favela do Moinho é o que unifica o discurso e as políticas públicas de Alckmin e Haddad, na medida em que ambos veem e tratam a comunidade como o entrave ao progresso a ser erradicado do centro da mais rica cidade da América Latina.
A reportagem tentou ouvir o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad sobre o caso. A assessoria de Alckmin informou que a posição oficial do governador é a mesma da Sehab estadual e da CPTM. A assessoria de Fernando Haddad não enviou qualquer resposta até o fechamento desta matéria.
Foto: Movimento Moinho Vivo





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Homens de Carne e Osso por António Gramsci



Tema levantado por Gramsci sobre greves e se enquadra perfeitamente nos dias de hoje, na situação dos professores da Cidade e do Estado do Rio de Janeiro.



Os operários da Fiat retornaram aos seus trabalhos. Traição? Negação dos ideais revolucionários? Os operários da Fiat são homens de carne e osso. Eles resistiram por um mês. Eles souberam como lutar e resistir, não apenas por eles mesmos, não apenas pelo resto das massas operárias de Turim, mas por toda a classe operária italiana.

Eles resistiram por um mês. Estavam fisicamente desgastados porque, por várias semanas e vários meses, seus salários foram reduzidos e não eram mais suficientes para sustentar suas famílias, e ainda assim resistiram por um mês. Eles foram completamente isolados da nação, imersos numa atmosfera geral de cansaço, indiferença e hostilidade, e ainda assim resistiram por um mês.

Eles sabiam que não podiam esperar nenhum auxílio externo. Eles sabiam que a classe operária italiana estava agora desamparada, fadada à derrota, e ainda assim resistiram por um mês. Não há vergonha alguma na derrota dos operários da Fiat. Não podemos pedir a uma massa de homens, acometida pelas necessidades mais opressoras de existência, que é responsável pela existência de uma população de 40.000 pessoas, não podemos pedir a eles mais do que nos foi dado por esses camaradas que retornaram ao trabalho, infelizes, pesarosos, conscientes da impossibilidade de uma resistência ou ação mais além.

Principalmente nós, Comunistas, que vivemos lado a lado com os operários, que conhecemos suas necessidades, que temos uma ideia realista da situação, deveríamos entender os motivos para a conclusão da luta turinesa.

Por vários meses as massas lutaram, por vários anos elas se esgotaram em ações de pequena escala, desperdiçando seus recursos e suas energias. E esta é a reprimenda que, ao final de maio de 1919, nós do “Ordine Nuovo” oferecemos aos líderes dos movimentos operários e socialistas: não abusem da resistência e da virtude de sacrifício do proletariado. Nós estávamos lidando com homens comuns, homens reais, sujeitos às mesmas fraquezas de todos os homens comuns que passam por nós nas ruas; que bebem nas tavernas, conversam em grupos nas praças, que estão famintos e com frio, que ficam comovidos quando sabem que seus filhos choram e suas esposas lamentam ruidosamente.

Nosso otimismo revolucionário sempre foi sustentado por esta visão pessimista da realidade humana, que deve, inexoravelmente, ser levada em conta. Há um ano atrás, já antevimos no que iria resultar a situação italiana se os líderes responsáveis continuassem com suas táticas de rajadas revolucionárias e práticas oportunistas. E desesperadamente lutamos para fazer estes indivíduos responsáveis retornarem a uma visão mais realista, mais prática, a uma visão mais de acordo com a evolução dos acontecimentos.

Hoje pagamos pela ineptidão e pela cegueira dos outros. Mesmo hoje, o proletariado turinês tem que suportar o adversário, fortalecido pela não-resistência dos outros. Não há vergonha na rendição dos operários da Fiat. O que implacavelmente aconteceria, aconteceu. A classe operária italiana foi achatada pelo rolo compressor da reação capitalista. Por quanto tempo? Nada é perdido se a crença e a consciência continuam intactas, se os corpos se rendem, porém não as almas.

Os operários da Fiat lutaram arduamente por anos, banharam as ruas com seu sangue, padeceram de fome e frio. Graças ao seu glorioso passado, continuam na vanguarda do proletariado italiano, continuam militantes fiéis e devotados à revolução. Eles fizeram o que homens de carne e osso podem fazer. Deveríamos tirar nossos chapéus antes de sua humilhação, pois mesmo nisto há algo de grandioso que inspira os sinceros e honestos.


Fonte: MIA

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Educar para o trabalho ou para o convívio?


Criada há nove anos, comunidade em Porto Alegre repensa agora formação de suas crianças, para valorizar singularidades e superar concepções produtivistas
Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: Cândido Portinari, Cambalhota (1958)
A Comunidade Osho Rachana comemora nove anos de existência este mês. Durante este tempo, experimentamos diferentes formas de conviver. Algumas pessoas que ajudaram a construir o projeto já não estão mais; outras, chegaram. Crianças nasceram. Novos sonhos foram despertados. Um deles vem sendo gestado há alguns anos: a possibilidade de uma outra educação para nossos filhos.
A primeira vez que a bailarina Ana Thomaz esteve conosco foi há três anos. Na época, a semente da ideia da desescolarização foi plantada. No início do mês, ela retornou com suas duas filhas e criou um turbilhão em nossas mentes e corações. Sua simplicidade, autenticidade e paixão nos tocaram profundamente. Foi uma semana de muito debate, descobertas e reavaliações.
Ana vem aplicando a desescolarização com seus filhos, sem a pretensão de criar um movimento ou convencer multidões da sua verdade. Mas ao observar a doçura, inteligência e solidariedade de suas meninas, comprova-se a veracidade da sua prática. Segundo ela, o princípio da desescolarização é a valorização das singularidades. “É na singularidade que aceitamos a diferença e nos unimos verdadeiramente, sem interesses, muletas, especulações. É na diferença que a vida acontece de modo potente”, explica.
Uma das principais críticas que Ana Thomaz faz à escola é a constituição de corpos impotentes. Crianças que vão perdendo a vitalidade e a alegria, sentadas em classes escolares que não despertam sua criatividade. “Um corpo desequilibrado, descoordenado, impotente, cria uma cultura desequilibrada, descoordenada e impotente. Enquanto não reorganizarmos nossa condição biológica, enquanto não colarmos nossa existência à sua força criadora, todas as mudanças em nossa cultura serão só a melhora do que está ruim, e continuaremos a nos destruir, a perder a grande possibilidade da vida plena e potente.”
Inspirada na teoria do biólogo chileno Humberto Maturana, Ana defende que o corpo é a potência. “Não esse corpo que estamos acostumados a pensar, mas um corpo que é o todo, e como sabemos, o todo é mais do que a soma de suas partes. As partes são muitas, pois não temos ideia do que pode um corpo.” Para exemplificar, ela cita: físico, emocional, cognitivo, energético, anímico, espiritual, instinto, intuição, mente, intelecto, consciente, inconsciente, subconsciente, percepção sensorial, percepção cinestésica, e muitas outras “partes” inseparáveis que formam o todo, o corpo.
Segundo ela, se não temos todas as partes ativas, vivas, acordadas, não somos o todo. “Os bebês, as crianças pequenas, mesmo sem saberem de nada, estão inteiras em seus corpos. Em nossa cultura, vamos desinvestindo partes do nosso todo, e assim crescemos pela metade. E se não temos o todo ativado, não temos corpo, só partes dele. Nos tornamos impotentes, e por isso buscamos o poder.”
Instigada pelas ideias apresentadas, fui pesquisar mais sobre a visão do biólogo. Encontrei um artigo de Adriano J.H. Vieira, “Humberto Maturana e o espaço relacional da construção do conhecimento”. O autor explica que, acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e nos desafia a buscar uma educação que resgate a biocentralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.
Na visão de Maturana, um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim. “A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar”. Para Maturana isso se dá de forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas relações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões.”
Estas foram algumas das questões apresentadas por Ana. Ao compartilhar sua vivência, práticas e conhecimentos, muitas lacunas foram abertas, e ainda mais possibilidades. Muito do que ela expôs já faz parte da nossa realidade e busca, em nossas práticas terapêuticas e meditativas. Mas, com certeza, precisamos avançar bastante na relação com as crianças. Afinal, como também defendia Jung, “quem não se envolve, não se desenvolve”. E o medo ou as barreiras que nos impedem de nos envolvermos mais verdadeiramente com nossos filhos nos dizem muito de nós mesmos.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Filme A Onda: pedagogia para uma autocracia ditatorial e fascista - Link para download


Por Lucas Marcelino


“Hoje a gente não tem contra o que se revoltar. O que precisamos é de um objetivo comum para unir a geração.” Essa é a frase que resume o filme “A onda”, um longa-metragem alemão que discute a possibilidade do nascimento de um novo regime ditatorial, como ele é formado e o que é necessário para transformar um povo unido em apoiadores de um sistema opressor e fascista.
O filme – que é baseado em uma história real ocorrida em 1967 na Flórida (EUA) – conta a história do professor Rainer Wenger, um professor de formação libertária que perde a oportunidade de coordenar uma semana de projetos sobre anarquia em uma escola alemã. Devido a um atraso ele fica responsável por ensinar sobre autocracia.
Muitos alunos se inscrevem no projeto devido a presença do professor. Wenger então decide por um plano pedagógico onde estabelece uma autocracia na prática. Através das ideias dos alunos ele vai desenvolvendo os pilares de uma autocracia ditatorial e fascista: presença de um líder – personificada no professor; disciplina – todos os alunos precisam de autorização para falar, e, unidade – os estudantes criam um uniforme, um símbolo e um nome para o grupo – “A onda”.
Alguns estudantes com ideais mais justos e com visões diferentes deixam o grupo por achar a experiência pedagógica uma loucura.Outros estudantes se animam e em alguns dias “a onda” se torna um movimento que abrange a grande maioria dos jovens da cidade. Quem não adere “a onda” acaba sendo discriminado pelo grupo que toma atitudes irracionais pichando o símbolo pela cidade chegando até o prédio da prefeitura e rivalizando com outros grupos como os anarquistas, numa clara alusão ao nazi-fascismo.
Quando o professor percebe que a situação está perdendo o controle, ele convoca os alunos para o auditório da escola, onde começa um discurso em que fala da unidade do grupo. Um dos alunos – namorado de uma estudante que criticava “a onda” – tenta se opor ao plano de ampliar o grupo e é considerado traidor. O professor pede que outros alunos o levem até o palco e decidam o que fazer com ele. Nenhum deles sabe o que fazer, demonstrando que todos estavam psicologicamente controlados pela figura de liderança do professor.
Então o professor decide acabar com a experiência e pedir para os alunos refletirem sobre a ditadura que eles haviam criado, mas um aluno com problemas pessoais e psicológicos ameaça à todos com uma arma, obrigando que se continue com “a onda”. Ele acaba atirando em um aluno e se suicidando.
O filme, muito bem produzido, tem como maior destaque a capacidade de levantar um debate sobre a possibilidade de surgirem novos governos opressores na sociedade atual, inclusive em um país que muito sofreu com o nazismo. Os principais pontos para estruturação desse governo são expostos e acabam por mostrar que, mesmo com a denúncia constante dos crimes cometidos por governos autoritários como a ditadura militar brasileira e o 3° Reich alemão (nazismo), a população ainda está suscetível a uma manipulação por parte da mídia, de um líder ou de um grupo, que com ideias falsas de igualdade e determinação de um povo pode vir a organizar um novo regime de atrocidades e genocídios como muitas vezes a humanidade teve que combater.

Lucas Marcelino, militante da UJR e do PCR

Fonte: A Verdade

Link para baixar o filme A Onda via torrent.

Veja online versão de 1981: