sábado, 28 de setembro de 2013

Chile: da revolução à democracia


Por Alberto Aggio



Uma coluna de fumaça espessa e escura levantou-se na área central de Santiago do Chile na manhã de uma terça-feira, 11 de setembro de 1973. Era um estranho acontecimento. Não parecia um incêndio qualquer, mas algo mais grave e ameaçador, especialmente porque minutos antes foi possível ouvir o ruído dos caças da Força Aérea do Chile em voos rasantes sobre o centro da cidade, onde fica o Palácio La Moneda. O que ocorria não era fortuito. 

O governo do socialista Salvador Allende chegava ao fim com seu suicídio no interior do palácio, que estava sendo bombardeado. O golpe militar e o regime autoritário que se instaurou em seguida alterariam profundamente a história contemporânea do Chile. Foi derrubado não apenas o governo da Unidade Popular (UP), que Allende encabeçava, mas suprimida a democracia em todos os aspectos da sociedade chilena. 

O presidente deposto, que assumira o mandato em novembro de 1970, queria construir o socialismo por meio de mecanismos democráticos. Através de decretos do Executivo, Allende realizava estatizações e, em alguns momentos, procurou também fazer alianças no Parlamento com a Democracia Cristã (DC), um partido considerado de centro. Para ele e parte importante da esquerda de então, socialismo significava poder popular e estatização. Mas havia vertentes da esquerda que se opunham às vias institucionais. Fortemente influenciados pela Revolução Cubana, amplos setores da UP e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) procuraram acirrar as contradições. Queriam acelerar as mudanças, pressionando o governo. As bases sociais mobilizadas por esses setores buscavam resolver a chamada “questão do poder” para implantar mais rapidamente o socialismo. 

As diferenças de estratégias e condutas no interior da esquerda afetavam o ambiente político, que cada vez mais se polarizava com a radicalização de ações da direita em oposição ao governo Allende. A falta de consenso dentro da esquerda fez com que a “via chilena ao socialismo” permanecesse apenas como um slogan, o que bloqueou a sua real transformação numa “via democrática ao socialismo”, inédita na história. Era notório que o governo buscava realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado, mas por meio dela pretendia implantar um socialismo equivalente ao que existia na União Soviética, na China ou em Cuba. A espiral crescente das contradições condenou a liderança de Allende como “disfuncional”, uma vez que o presidente nunca advogou a ruptura institucional, mas também não parecia ter completo controle do processo político. O resultado foi uma polarização catastrófica e o advento do golpe que colocou por terra o governo Allende. 

Esse desfecho obviamente não estava estabelecido de antemão, mas acabou por comprovar que aquela proposta de revolução era impossível, ao menos no Chile da época. Salvador Allende e a UP concebiam a revolução e o socialismo a partir da cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana e mundial, com raízes marxistas, bolcheviques, maoístas e, mais tarde, guevaristas e castristas. Tais linhagens têm como referência a revolução como tomada de poder de Estado pela via armada, por insurreição ou guerrilhas. Essa cultura política revelou-se incapaz de enfrentar o ineditismo do processo, demonstrando que não estava amadurecido na esquerda chilena o significado e as implicações da adoção de uma via democrática ao socialismo. Por isso, o governo Allende não pode ser interpretado como o exemplo histórico da impossibilidade desta transição ao socialismo. A chamada “experiência chilena” apenas anunciou esta possibilidade, mas fracassou inapelavelmente. 

Personificado no general Augusto Pinochet (1915-2006), a partir de 1973, o novo regime assumiu uma perspectiva fundacional — com a intenção de fundar um novo regime, e não de restaurar a democracia — e impôs ao país uma nova ordem econômica, social e política. Para isto, contou com um aparato repressivo que perseguiu, torturou e assassinou quem era considerado opositor. Em seus primeiros momentos, a ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP. Paradoxalmente, foi a partir de sua negação que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se agora de uma contrarrevolução: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não prazos. Em analogia ao “socialismo real” (da URSS e do Leste europeu), o que se estabeleceu no Chile foi uma espécie de “liberalismo real”: um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores. 

O regime autoritário, que se estenderia até 1990, não foi um “parêntese” na história do Chile. Nesse período, a privatização de empresas, serviços de saúde e previdência, além da abertura comercial, do estímulo às exportações e da supressão do controle de preços redefiniram as estruturas da sociedade. O regime Pinochet transformou-se no show casedos neoliberais de todo o mundo. Até então, o neoliberalismo não havia sido implementado integralmente em nenhum país. O Chile foi, portanto, anterior à Inglaterra de Margareth Thatcher e aos Estados Unidos de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais individualista, consumista e despolitizada, ou seja, anulando traços distintivos da cultura política anterior. O reconhecimento dessa mudança profunda iria cobrar o seu preço no momento de superação do autoritarismo. 

As tentativas de derrubar a ditadura por via armada fracassaram. As ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (las protestas) que eclodiram entre 1983 e 1986, pensadas como possível embrião de uma insurreição de massas, revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura. 

A surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No, que dizia “não” ao governo Pinochet, em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. O resultado do plebiscito foi de 56% dos votos válidos pelo “Não” contra 44% pelo “Sim”. Os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano seguinte. Mas Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição de 1980 acordadas entre os principais atores políticos legalizados. Nesse ponto, a submissão da transição democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou o que ficou conhecido como enclaves autoritarios: normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista que se propusesse a desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional da ditadura. 

A derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988 converteu-se, portanto, numa vitória política estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas reformas superficiais na Constituição de 1980. A transição, contudo, seguiria em marcha. No início da década de 1990, os espaços políticos se democratizam e a disputa se concentra em dois polos: a Concertación, agregando os partidos de centro-esquerda — como o Partido Socialista e a DC — e a Alianza por Chile, articulando as forças de direita e neoliberais — como a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI). 

Em relação às outras transições para a democracia no continente latino-americano, o Chile viveu dois aspectos peculiares: não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior e conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes à mesma coalizão política que havia derrotado a ditadura. A partir de 1990, governaram o Chile Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Os governos da Concertación conduziram com êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia chilena nesses anos, até a crise econômica mundial que abriu o século XXI, foi notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas públicas dos governos da Concertación tenham se revelado insuficientes. 

A manutenção de boa parte dos enclaves autoritários, pelo menos até 2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático está consolidado, mas a presença de Pinochet no imaginário político chileno deixa a sensação de que a transição permanece inconclusa. A imagem que fica do Chile pós-Pinochet é a de uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito condicionada aos ditames do regime anterior, que só conseguiu produzir “governos de negociação” e, com eles, um “reformismo fraco”. Em 2010, o fim da sequência de governos da Concertación, com a eleição de Sebastián Piñera, da Alianza, representou uma preocupante involução. 

Os 20 anos da Concertación não passaram em vão, mas deixaram muitos déficits nos planos político e social. Em meio a novos movimentos sociais de estudantes e indígenas e a um conjunto de insatisfações resultantes do excesso de privatizações realizadas durante a ditadura e do avanço de empresas capitalistas em terras indígenas, os chilenos vêm demonstrando nos últimos anos que procuram alternativas que possam resultar em reformas efetivas para uma vida melhor. Mas sabem também que essa é uma história aberta e bastante distinta daquilo que eles viveram 40 anos atrás.


----------

Alberto Aggio é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca, e autor de Democracia e socialismo: a experiência chilena (Annablume, 2002).


Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional & Gramsci e o Brasil.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Épico Discurso em Português de Pepe Mujica na Assembleia da ONU

mujica-onu


O discurso do presidente do Uruguai, Pepe Mujica, na 68ª Assembleia Geral da ONU, surpreendeu ao criticar o “inútel” bloqueio a Cuba, o “deus mercado” e a própria Nações Unidas: “Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade….A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta.”
Mujica teceu críticas à sociedade atual centrada no consumismo: “Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão”. Segundo o presidente, se todos consumissem igual a um americano médio, seriam necessários três planetas Terras para podermos viver. “Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana…..Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.”
Mujica, que já havia surpreendido em seu discurso na Rio+20, no ano passado, e vem implantando medidas progressistas em seu país, criticou o fato de que “a cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar”.
Mujica criticou ainda a desigualdade do mundo: “Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente”.
Apesar das críticas, Mujica reforçou sua crença na humanidade: “É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética. Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.”
Confira o discurso na íntegra abaixo:


"Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.
Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.
Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.
Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.
Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.
Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.
Carrego o dever de lutar por pátria para todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.
O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.
Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.
Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.
A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.
Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.
O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.
Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.
Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.
Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.
Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…
Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.
Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.
Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.
Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.
Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.
A cobiça, tão negatica e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.
Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.
Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.
Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.
Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.
Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.
A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.
Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.
Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.
As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.
Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.
Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.
A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.
Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.
Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.
Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.
Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.
O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.
Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.
Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.
Obrigado."
Introdução da Revista Fórum.

Vídeo do discurso:

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Qual liberalismo?

Karl Marx e Adam Smith: pensadores fundamentais das teorias socialistas e liberais

Por Nadia Urbinati



A crise da esquerda é geralmente explicada com o ocaso da ideologia igualitária que marcou sua identidade desde as origens setecentistas e revolucionárias. Crise da esquerda, portanto, como um aspecto da crise da modernidade e dos seus mitos: o universalismo da cidadania e a impessoalidade da lei. No seu lugar vimos surgir recentemente duas soluções alternativas preocupantes: a solidariedade comunitária (apropriação identitária do bem-estar e dos direitos em nome do “nosso território”, da “nossa cultura” e da “nossa riqueza”) e a prioridade do interesse particular (seja ele econômico, de classe ou de território regional) sobre o geral. O tempo da política clássica parece ter se consumado; seus lugares, sua linguagem e suas finalidades parecem ter se rarefeito.

No entanto, o universalismo não desapareceu. Ele migrou para fora da política: por exemplo, para o mercado e a economia. Trata-se, como se intui, de outro universalismo. Globalização dos interesses econômicos e das competências financeiras, por um lado, e, quase como reação, localismo dos pertencimentos identitários e coletivos, por outro. O universalismo se transferiu da sociedade política para a sociedade civil, radicalizando o dualismo entre liberdade individual e liberdade política. Lendo o noticiário italiano e europeu destes meses, parece que o desafio da sociedade civil à sociedade política está destinado por ora a se concluir com a derrota da segunda: os “salteadores” tomaram o Estado. E o que acontecerá com a justiça social? Esta será distribuída (é o que alguns esperam) pela vontade benévola dos bons cristãos e das comunidades de fé ou assistenciais e beneficentes, não mais pelo direito e pelos órgãos de Estado.

Parece que a justiça social tomou o caminho da misericórdia ou da benevolência moral e religiosa (como bem se vê no programa dos republicanos americanos) e que o Estado não deve ter outro papel além de se ocupar da justiça civil e penal para proteger a esfera dos interesses privados. Crise da esquerda e crise do universo de valores e instituições que nutriram a democracia nas décadas passadas caminham juntas, orquestradas pela ideologia que apregoa o evangelho dos mercados que se autorregulam e sabem coordenar espontaneamente méritos e carecimentos, sem que seja necessária a intervenção programadora da lei. Imparciais porque automáticos. A sociedade civil reivindica sua centralidade diante da sociedade política: nesta transformação reside a fonte da crise da esquerda. Redistribuir recursos, desenhar estratégias de justiça social — como se dizia há alguns anos —, governar os processos sociais: tudo isso parece hoje arqueologia. Se existem valores universais, estes se transferiram para a dimensão do privado. Este cenário ajuda a compreender por que o liberalismo é hoje a ideologia vencedora, uma ideologia que é universalista exatamente lá onde o universalismo fez seu nicho.

Desde seu surgimento, o liberalismo expressou a dupla alma da modernidade: celebração do indivíduo e limitação da política e do Estado. Ele marchou ao lado da afirmação da prioridade da esfera civil — que é esfera dos direitos individuais e dos interesses — e da visão instrumental ou de coordenação das instituições políticas. O liberalismo é uma doutrina universalista que não é hostil ao particular. Aqui está sua força prometeica e sua extraordinária capacidade de adaptação, sua transversalidade; de fato, o antiestatalismo pode unir, e de fato une, movimentos que parecem muito distantes entre si, como católicos e federalistas etnocêntricos, para dar um exemplo italiano. A ideia transversal de que é necessária uma devolução das competências do Estado à sociedade civil faz concordarem liberais-liberistas e teólogos católicos. O paradoxo é só aparente, porque pôr o indivíduo no centro pode significar promover a comunidade e os pertencimentos locais, lugares nos quais a pessoa encontra estímulos para seguir o caminho da realização pessoal, mundana ou divina, mas também significa rede protetora que intervém quando o “infortúnio” econômico se abate sobre as pessoas como um deus cego.

Portanto, o que se deve fazer é retomar a reflexão sobre a identidade do liberalismo. Para compreender sua complexidade, para desarticular suas interpretações canônicas, para recuperar, enfim, aquele fôlego universalista e social a que a esquerda não pode renunciar. O liberalismo pode dar novas energias às visões emancipadoras. Este, também, um paradoxo da modernidade: a esquerda bate na porta daquele que seus pais fundadores marxistas consideravam o inimigo natural. Mas só é paradoxo, se se considerar a história da esquerda como se fosse uma história homogênea. Atribuir complexidade ao liberalismo implica, para a esquerda, recuperar a complexidade das suas próprias raízes. E as raízes da esquerda europeia e italiana são plurais e complexas.

Aquém da cortina de ferro

Recuperar a identidade complexa do liberalismo (e, como consequência, da esquerda) significa ajustar contas com a codificação que foi dada ao liberalismo (e, como consequência, à esquerda) no curso da segunda metade do século XX na Europa Ocidental, do lado de cá da cortina de ferro. O liberalismo foi canonizado como aquilo que, em 1958, Isaiah Berlin identificou com a “verdadeira liberdade”, a liberdade como não interferência e não impedimento por parte da lei, mesmo quando quem vota a lei são Parlamentos eleitos democraticamente. Um liberalismo que fundou a si mesmo na ideia de que a liberdade é licença e anarquia, é fazer o que individualmente se quer e escolhe, e que, portanto, todo obstáculo exterior a esta liberdade implica ausência de liberdade, limitação da escolha individual, ainda que necessária. A liberdade se dá onde a lei cala, não através da lei.

A lógica que orientou e orienta este liberalismo é a mesma que move as ações do homo oeconomicus: um indivíduo que, como a bola de bilhar no plano inclinado, seguiria por força de inércia se outros ou algo externo ao seu movimento não lhe obstruíssem o curso. A liberdade é aqui pensada como movimento no espaço e, sobretudo, em oposição a um obstáculo: a lei, a política, o Estado. A sociedade liberal assim imaginada será tão mais realizada quanto menor for o espaço ocupado pela política e pela esfera pública. Menos Estado/mais mercado: esta é a consequência pragmática do liberalismo que se contrapôs à ideologia social-democrata a partir dos anos da Guerra Fria. Como se lia no libelo de von Hayek, opressão e servidão são proporcionais à interferência da lei e é irrelevante saber se a lei goza de legitimação constitucional-democrática ou é dominação despótica; é irrelevante saber se quem interfere com as ações dos indivíduos é um Parlamento democraticamente eleito ou o Parlamento dos sovietes.

No final da era das ideologias, este é o núcleo teórico-político hegemônico do liberalismo contemporâneo. Este venceu a competição com a ideia da intervenção reguladora do Estado, mesmo quando o Estado é uma democracia constitucional. Um liberalismo que tem origem datada, mas não é datado: porque seu verdadeiro alvo, desde os anos da Guerra Fria, não foi tanto o comunismo soviético quanto a social-democracia ocidental: não Lenin, mas Thomas H. Marshall. A última grande batalha deste liberalismo da não-interferência é, portanto, a que está combatendo nestes meses contra aquele resíduo distributivo e de justiça social via Estado democrático que a modernidade também nutriu. Hoje, a trincheira da esquerda parece ser esta.

Difícil dizer se será sua grande derrota. Mas é certo que o renascimento da esquerda, tanto na Itália como na Europa, aparentemente terá de passar pela transformação do liberalismo. Com aquele liberalismo da soberania dos interesses privados a esquerda só pode perder. No entanto, sem ou contra o liberalismo, a esquerda não pode vencer e certamente está fadada a perder e até a desaparecer. O nó a ser desatado, pois, está aqui, na interpretação da liberdade e do liberalismo. A esquerda poderá ter esperança de vencer o desafio lançado pelo indivíduo privado ao cidadão, se souber formular uma interpretação da liberdade e do liberalismo que seja capaz de desafiar sua leitura hegemônica, aquela que vê a lei, o público e o Estado como obstáculos, limites a serem maximamente contidos ou superados.

O valor das liberdades

Recorramos aos grandes teóricos do liberalismo social do nosso tempo, por exemplo, Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia (mas marginal no trend contemporâneo governado pelas business schools) e teórico representativo da revisão do liberalismo da não-interferência, não para negá-lo, mas para fazê-lo interagir com outras liberdades. Sua perspectiva ideal é a mesma que compartilham outros grandes liberal-democratas e social-democratas do nosso tempo, John Rawls e Jürgen Habermas. Mas Sen adota uma estratégia metodológica diferente e que pode ser politicamente vitoriosa nesta fase de revisão liberista, porque construída a partir de uma gramática que é, ao mesmo tempo, normativa e utilitarista, universalista mas atenta ao contexto e às circunstâncias concretas nas quais as pessoas agem. O princípio — a liberdade individual — é conjugado por Sen não simplesmente através das instituições e dos procedimentos distributivos, mas também através do conhecimento das concretas e substantivas “capacitações (capabilities) dos indivíduos para viver o tipo de vida que valorizam e que têm motivo para valorizar”.

O “desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais gozadas pelos seres humanos”. As liberdades, portanto, são plurais, têm custos e benefícios, são escolhas políticas que têm por objetivo o desenvolvimento do indivíduo em relação à sociedade na qual vive e opera. Um indivíduo que é um agente, que tem projetos e valores ideais e morais, e que usa os recursos econômicos como meios para realizá-los. Sen tenta uma operação corajosa: combinar a ideia de felicidade (Aristóteles) com a de interesse (Adam Smith), isto é, atribuir à economia um papel instrumental em vista de um “bem” qualitativo como o bem-estar, a felicidade ou a qualidade de vida.

A ideia de “capacitações” fica clara se se mantiver um nexo entre o conceito de individualidade como “florescimento” e “desenvolvimento” das capacidades individuais e a análise econômica dos “bens necessários” e das condições de vida de que tais capacidades necessitam para se expressarem da melhor forma. O bem individual é um componente do bem geral: as liberdades são um ganho para toda a sociedade. “A utilidade da riqueza está nas coisas que nos permite fazer, nas liberdades substanciais que nos ajuda a conseguir”, uma correlação entre meios e fins que não é nem simples nem uniforme, que é contextual e varia em relação à estrutura política e social de um país, que não renuncia a pensar em termos de conveniência, crescimento econômico e condicionamentos do desenvolvimento. Uma economia a serviço do bem-estar geral da pessoa.

A liberdade é um bem para o indivíduo porque é um bem para a sociedade, dizia John Stuart Mill: aumenta as capacidades e é vantajosa. Inversamente, a injustiça é “privação de liberdade”: negar a liberdade política, violar os direitos civis, suprimir os direitos sociais configura não só uma condição de imoralidade, mas é um obstáculo ao crescimento. Onde não há segurança quanto aos direitos, as trocas estão em risco, o empreendedorismo individual se frustra: é a sociedade toda que sofre as consequências disso, não só o indivíduo.

A ideia de liberdade como “capacitação” se contrapõe, por um lado, àquela “mais restrita” que nos vem do liberalismo econômico, ou seja, a identificação do desenvolvimento com “o aumento das rendas individuais, com a industrialização, com o progresso tecnológico ou com a modernização da sociedade”, e, por outro, a uma visão puramente negativa ou como não interferência por parte da lei. Ao contrário, propõe uma ideia de liberdade que está centrada numa filosofia social que se preocupa com a “felicidade” (como prometia a democracia americana no século XVIII, ao escrever ao Declaração de Independência). Portanto, a filosofia da esquerda pós-socialista pode ser rastreada no pensamento democrático, que é diferente tanto do liberismo econômico quanto do socialismo planificador, porque atento ao contexto e à opinião das pessoas (ao voto), em vez do dogma do mercado e da naturalidade das suas regras. O objetivo desta teoria do bem-estar é negativo, isto é, eliminar as iliberdades; por isso, não cai no erro de promover um Estado paternalista que nos diga em que consiste nossa felicidade, uma falha do ideal de justiça social que os liberais temem com razão. Os meios para concretizá-lo são positivos, ou seja, remover as condições que produzem as iliberdades.

Democracia como atenção às circunstâncias

A esquerda deveria recuperar plenamente a dimensão projetiva da política e fazer isso através da ideia de “desenvolvimento como liberdade”. É uma ideia revolucionária, na medida em que força os liberais a dizer explicitamente quais liberdades querem defender, isto é, qual visão do indivíduo têm e a quem esta visão pode ser estendida, quantos são ou quantos deveriam ser aqueles que gozam, efetivamente, da liberdade. O papel das circunstâncias é importante, porque importa reconhecer que nem todas as liberdades têm o mesmo peso em toda parte e seja de que modo for. Portanto, as liberdades são plurais, heterogêneas e, certamente, em conflito. A função da política é a de tomar decisões exatamente porque existe este conflito. E é aqui que direita e esquerda mostram suas diferenças. É aqui que quem se declara “moderado” deve se deter para esclarecer o que significa moderação numa sociedade que retira de muitos as capacidades de agir funcionalmente e de aspirar a uma vida digna.

Tomemos, como exemplo, o modo de entender algumas “liberdades instrumentais”, ou seja, as infraestruturas econômicas. Estas últimas são “possibilidades” dadas aos indivíduos de “utilizar recursos econômicos para consumir, produzir ou trocar”. Estas “possibilidades” dependem de várias circunstâncias: não só de quanto uma pessoa recebe mensalmente, mas também da riqueza nacional geral e da presença de importantes recursos, como o funcionamento das instituições públicas, a disponibilidade de acesso à cultura e à formação. Se, para obter um financiamento, devo corromper um funcionário, pertencer a um partido, submeter-me a uma organização criminosa, ser membro de uma comunidade religiosa ou ser homem e não mulher, então ter um salário decente não constitui para mim uma garantia de gozo efetivo da liberdade.

Substancialmente, minhas “possibilidades”, como pessoa que vive numa sociedade altamente evoluída, não são muito superiores às de uma pessoa que more numa sociedade menos evoluída e tenha uma renda inferior à minha. Eu, mulher italiana, deste ponto de vista, tenho uma expectativa de reconhecimento e de vida social satisfatória inferior ou não superior àquela de uma mulher que vive num país do Norte da Europa, porque, em relação aos recursos e às oportunidades que minha sociedade oferece, sofro maior privação de liberdade do que minha homóloga europeia do Norte. Além disso, sou também menos livre em relação a um homem italiano. Em outras palavras, sou mais “pobre” tanto em sentido absoluto quanto em sentido relativo, porque minha pobreza não é só econômica ou material, mas ligada intrinsecamente a fatores sociais, culturais e políticos. Sou mais discriminada, tenho menos reconhecimento social e político, tenho mais dificuldade para tornar efetivos os direitos que, no entanto, a lei me reconhece, sou humilhada nas minhas capacidades. Suprimo tempo e energia ao meu bem-estar e ao de toda a sociedade. Sou espelho da Itália: atarefada, insatisfeita, deprimida, paralisada para explorar minhas possibilidades.

A regra que se pode deduzir deste exemplo é a seguinte: considerar a liberdade seja como fim, seja como meio implicar perceber como as várias liberdades que temos não podem ser consideradas uma a uma, individualmente, porque os seres humanos, quando agem, colocam-nas em ação todas juntas. Portanto, o fato de que as liberdades criem um todo solidário é que é razão de liberdade, não o fato de que gozemos de uma liberdade em particular, por exemplo, a de vender e comprar. Assim, Sen pode explicar a pobreza nas zonas mais deserdadas do mundo, mas também a que cresce dentro de sociedades ricas, como as europeias. Se se examinasse só a renda per capita ou as instituições, esta injustiça real permaneceria invisível ou não determinante. Mas, se considerarmos outras formas de iliberdade — a ausência efetiva de possibilidades e de “capacitações”, como o esforço que uma mulher italiana realiza para ser respeitada na sua dignidade e reconhecida nas suas capacidades, etc. —, então a pobreza emerge como uma chaga das próprias sociedades liberais, não menos das ocidentais do que daquelas que dizemos estar em vias de desenvolvimento.

Ter escolas péssimas, distribuir a qualidade da instrução desigualmente e segundo as possibilidades econômicas ou a alocação geográfica dos recursos torna as mulheres italianas, os italianos meridionais ou os jovens de famílias não proprietárias menos livres do que seus concidadãos homens, nortistas e abastados. Pôr as mulheres na impossibilidade de ter um emprego fora da família torna as mulheres dos países ocidentais menos livres do que seus concidadãos homens, se à liberdade delas não se der o suporte de infraestruturas sociais. E, sobretudo, torna o país menos rico, porque impede muitos dos seus habitantes de fazer coisas que poderiam considerar como direito fazer e, ao mesmo tempo, empobrece a sociedade no seu conjunto, porque privada de recursos importantes.

Um desafio no terreno da coerência liberal

Esta visão de “sociedade justa porque livre” põe sob acusação o estrabismo daqueles liberais que fazem da modernização e da expansão da renda o único fator que mede a liberdade. Neste caso, são ignoradas as liberdades políticas e civis. Mas estas liberdades não imediatamente materiais e econômicas são “apropriadas”, porque sem elas a sociedade seria não só menos livre para muitos, mas também mais pobre, na medida em que muitos dos seus cidadãos encontrariam mais obstáculos para agir livremente e seu âmbito de ação seria mais restrito. É o “desenvolvimento difuso” ou a “liberdade difusa” que a esquerda deve considerar, um conceito que Carlo Rosselli expressou com estas palavras: “Entre uma liberdade média estendida ao universal, e uma liberdade sem limites assegurada a poucos, em detrimento de muitos, melhor, cem vezes melhor, uma liberdade média”.
Insistir nas possibilidades efetivas de liberdade nos induz a corrigir a teoria clássica da social-democracia, porque nos ensina que o problema não é simplesmente defender a liberdade nas normas e nas instituições distributivas, mas fazer com que a liberdade tenha um valor para as pessoas que a vivem e um significado para nós que concretamente a usamos. “A liberdade — continua Rosselli —, não acompanhada e sustentada por um mínimo de autonomia econômica, pela emancipação em relação ao freio das necessidades essenciais, não existe para o indivíduo, é um mero fantasma”. Neste sentido, quando se fala de liberdades no plural, a distinção entre liberdade como meio e como fim é sempre relativa, nunca absoluta.

Estas são as premissas que devem convencer a esquerda a desafiar o tabu das políticas anti-inflacionárias e a dar centralidade ao emprego e aos serviços sociais, a considerar as infraestruturas um vetor de riqueza e de liberdade. Os críticos liberistas ou de direita opõem ao Welfare clássico uma interpretação do Estado Social do ponto de vista das necessidades dos clientes. Sen ensina-nos a pôr em dúvida a eficácia e a governabilidade de uma oferta de assistência sanitária ou instrução baseada num controle das necessidades ou dos meios econômicos dos clientes (ensina-nos a contestar a eficácia da política de vouchers, que tanto agrada a diversos católicos-liberais entre nós e que orientou a reestruturação do Estado Social na Lombardia).

O ceticismo de Sen é ditado por razões realistas e pragmáticas: a informação sobre as “incapacitações” de uma pessoa, ou seja, sobre suas condições econômicas em relação ao bem saúde ou instrução (para os quais se propõe o voucher), não é nada objetiva e economicamente fácil de fazer. Além disso, muito mais facilmente do que o universalismo do Welfare, esta estratégia pode gerar corrupção, morosidade burocrática e discriminação. De fato, fornecer um serviço na forma de voucher, ou seja, monetizá-lo em relação à efetiva disponibilidade econômica de quem dele precisa, implica que o poder público deva monitorar direta e constantemente as reais disponibilidades econômicas dos potenciais fruidores de vouchers (com uma ingerência na privacy que é grave e verdadeiramente lesiva das liberdades individuais); por fim, pressupõe uma condição que, como sabem os italianos, não é nada óbvia, a saber, que não haja evasão fiscal, ocultamento das informações sobre os efetivos recursos econômicos e abusos clientelistas. Personalizar a oferta dos serviços — como faz a política dos vouchers — implica aumentar os riscos de disfunção, abuso, corrupção e discriminação, ao mesmo tempo que necessariamente deve interferir mais na vida das pessoas.

A forma do Estado Social, portanto, pode fazer a diferença. Sen escreve: “Quando a ajuda social é concedida com base no diagnóstico direto de uma necessidade específica (por exemplo, depois de se verificar que uma pessoa está afetada por uma determinada doença) e é ofertada diretamente, na forma de serviços específicos e intransferíveis (como uma terapia para aquela enfermidade particular), reduz-se em medida significativa a possibilidade de uma distorção da informação [...]. No entanto, ocorre exatamente o contrário quando se financiam cuidados médicos concedendo dinheiro que se pode usar livremente, o que requer monitoração mais direta. Deste ponto de vista, a oferta direta de serviços, como a assistência médica e a instrução, está menos exposta a abusos” e é menos dispendiosa.

O Estado Social que se apoia em acordos entre o público e os fornecedores privados de serviços pode ser, então, o caminho para novas desigualdades, ao mesmo tempo que, como sabemos, não ajuda de modo algum a aliviar a despesa pública e, sobretudo, grava sobre o poder regulador do Estado, com a eventualidade de procedimentos privilegiados obtidos como favores (corrupção). O controle das condições econômicas efetivas da pessoa que deverá receber subvenção e, ademais, da qualidade do serviço fornecido pelos particulares conveniados é gerador de burocracia e custos de gestão, como os sistemas médicos e escolar americano estão demonstrando (para reformar tais sistemas, o presidente Obama mobilizou a ideia da igualdade das condições de liberdade).

A esquerda deve desafiar os teóricos da monetização dos serviços precisamente em nome da eficiência do mercado e das liberdades das pessoas: isso pode torná-la atual, fundamentada e persuasiva. Os direitos sociais instituídos pelo universalismo do Welfarede base são estruturas não mercantis, que ajudam o mercado porque geram “capacitações” e criam possibilidades de liberdade; ou seja, são oportunidades de crescimento econômico e segurança social. Portanto, os direitos são investimentos, e as políticas que visam a criar uma equânime distribuição dos recursos não são só moralmente justas, mas também economicamente vantajosas. Esta é a mensagem que uma esquerda democrática europeia deveria metabolizar e propor: uma mensagem que tem seus fundamentos no liberalismo e na economia de mercado. Aqui reside sua força e a razão do seu valor. Força e valor de uma esquerda que não se resigna a sucumbir à ideologia do liberalismo liberista e não renuncia a dar à política o próprio papel dirigente e a própria dignidade, em nome da igual liberdade.

----------

Nadia Urbinati é professora de Teoria Política na Columbia University, de Nova York. Artigo publicado em Italianieuropei, 5/6, 2013, p. 141-51.


Fonte: Italianieuropei & Gramsci e o Brasil.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Gilmar Mendes: Ignorância e Preconceito


gilmar-mendes-stf
A incrível entrevista em que ministro do STF exibiu, além de grosseria, desconhecimento extremo. E o que ele precisa aprender sobre a Bolívia
Por Antonio Barbosa Filho
Certamente abalado pela aula magna de Direito pronunciada pelo ministro Celso de Mello na sessão do dia 18 de setembro, onde todos os seus patéticos argumentos vociferados na semana anterior foram reduzidos a pó, o ministro Gilmar Mendes cometeu mais um erro crasso em fala à imprensa. Ao deixar o plenário, o emérito jurista de Mato Grosso afirmou aos jornalistas, segundo se lê no Portal UOL: “Daqui a pouco nós conspurcamos o tribunal, corrompemos o tribunal, transformamos ele (sic) num tribunal de Caracas, de La Paz, num tribunal bolivariano”.
Tentando ser irônico e cometendo um ato de hostilidade a seus colegas magistrados de dois países com os quais o Brasil mantém excelentes relações em todos os setores, Gilmar revelou também profunda ignorância em Geografia e sobre o Judiciário dessas nações vizinhas.
Não há tribunais em La Paz! Os quatro tribunais superiores do Estado Plurinacional de Bolívia (nome oficial do país) localizam-se e funcionam na histórica cidade de Sucre. E Sucre, para surpresa do eminente, mas desatento, aluno de Celso de Mello é a Capital da Bolívia, como determina o artigo 6, item I.  da Constituição Política do Estado, elaborada por uma Assembléia Constituinte livremente eleita em 2006, e depois submetida a Referendo popular, em 25 de janeiro de 2009. O povo boliviano aprovou a Constituição por 61,43% e o dispositivo mencionado afirma: “Sucre es capital de Bolívia” – dispenso-me de traduzir.
Se não sabe nem qual é a capital do país a que se refere, muito menos saberá o ilustre derrotado que o sistema judicial boliviano foi estruturado com a assessoria da União Europeia, que destinou 450 mil euros para um programa de colaboração com duração de 18 meses, nos quais magistrados espanhóis trabalharam com juristas bolivianos.
A especialista Ana Esther Sanchez, da Audiência Internacional da Espanha explicou que o trabalho visava o estabelecimento de um sistema judicial “com parâmetros totalmente diferente dos anteriores”, mas em conformidade com as normas e padrões internacionais de direitos humanos, transparência das instituições, acesso das pessoas à Justiça e independência judicial, previstos na Constituição de 2009.
Para ilustração do concessor de habeas-corpus a banqueiros condenados, acrescento que são quatro os órgãos integrantes da cúpula do “órgão judicial” – na Bolívia de Evo Morales aboliu-se a expressão “Poder”, havendo os “orgãos” judicial, executivo e legislativo. Isso porque a nova Constituição radicalizou ao definir que o poder “reside do Povo”, quando as anteriores diziam que o poder “emana do Povo”. O “orgão judicial”, portanto, é formado pelo Tribunal Supremo de Justiça, o Tribunal Constitucional Plurinacional, o Conselho da Magistratura, e o Tribunal Agro-Ambiental. Todos instalados e funcionando na capital do país, que é Sucre.
O Tribunal Supremo de Justiça, equivalente ao colegiado que tolera Gilmar Mendes, tem nove membros efetivos e nove suplentes,  eleitos pelo povo, em cada um dos nove Departamentos (no Brasil seriam os Estados) que conformam a nação. As Assembleias Legislativas Departamentais selecionam seis nomes em duas listas, uma só de homens, outra só de mulheres. Os candidatos precisam ter mais de 30 anos de idade, e no mínimo oito como juízes, advogados ou professores de Direito. Há espaço para indígenas, desde que tenham exercido funções judiciárias em suas comunidades originárias. O órgão eleitoral faz a campanha, divulgando igualmente os méritos de todos os candidatos; esses, se fizerem campanha pessoal, tornam-se imediatamente inabilitados à disputa. Feita a votação popular, na qual cada cidadão vota duas vezes, uma em um homem, outra em nome da lista feminina, torna-se membro do Tribunal  o mais votado de ambas. Se for homem, a mulher mais votada na outra lista torna-se a suplente, e vice-versa. Assim, o Tribunal terá sempre 50% de homens e 50% de mulheres, entre os 18 titulares e suplentes.
Os membros desta Corte Superior têm seis anos de mandato e não podem ser reeleitos – uma idéia que muitos no Brasil talvez gostassem de incluir numa eventual Reforma do Judiciário, tão propalada quanto postergada. Também poderia cogitar-se de que na Bolívia o presidente da Corte Suprema não participa da linha sucessória do presidente da República (lá, presidente do Estado), diferentemente do Brasil. Talvez isso permitisse que o chefe do Judiciário esteja menos envolvido nas questões políticas…
Outra diferença fundamental com as instituições brasileiras é a existência da “jurisdição indígena originária camponesa”, que consiste no respeito às práticas judiciárias de cada um dos povos originários da Bolívia – um país que congrega 34 nações diferentes. Tudo com base no artigo primeiro da Constituição, segundo o qual “a Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, dentro do processo de integração do país”. Assim, há uma Justiça indígena-comunitária, nos moldes históricos, já que tais comunidades são preexistentes ao próprio Estado. E tanto esta Justiça, como a ordinária gozam de igual hierarquia. Para dirimir os naturais conflitos de competência, em casos concretos, existe o Tribunal Constitucional Plurinacional, que harmoniza também as decisões das comunidades que conflitem com as jurisdições agrária e agro-ambiental.
Parece complicado, e é. Mas a Bolívia é um país que passa por um processo de “refundação”, tentando descolonizar-se interna e externamente. Suas instituições têm a complexidade de um país com vários idiomas e uma História de privação de direitos e ausência total de cidadania para as grandes maiorias. Todos reconhecem, inclusive o governo de Evo Morales, que há um longo caminho a percorrer até que todas as novas instituições funcionem sem atritos e prestando os serviços que a população apenas começa a receber.
Juízes eleitos:  A Argentina, que tem muito mais tradição institucional, também está trabalhando numa reforma judicial, que  prevê a eleição direta de juízes, e de membros do Conselho da Magistratura, inclusive indicados pelos partidos políticos. Recentemente, a brasileira Gabriela Knaul, relatora especial das Nações Unidas e sediada em Genebra, criticou este ponto que os argentinos estão discutindo: “A eleição partidária dos membros do Conselho da Magistratura é contrária ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e relativos à independência judicial”.
A observadora deveria observar, digamos, os Estados Unidos, onde apenas cinco dos 50 Estados conferem ao governador ou ao órgão legislativo a competência para indicarem membros de suas cortes; em todos os demais Estados há alguma forma de eleição. Em sete deles, os candidatos precisam ter vinculação partidária; em 14, não podem ter tal vínculo; em 16, os juízes são nomeados, mas depois obrigados a se submeterem ao voto popular se quiserem cumprir mais de um mandato, embora sem adversários: o eleitor diz apenas “sim” ou “não” à continuidade no cargo. Enfim, cada Estado dos EUA pode estabelecer suas próprias normas e isso difere até de acordo com o momento histórico em que cada unidade aderiu ao Estado central.
Sobre a Bolívia, já vimos que Gilmar Mendes (erroneamente chamado de Gilmar Dantas pelo notório cronista político Ricardo Noblat, por razões que prefiro ignorar), não sabe nada, nem o nome da sua capital. Já sobre a Venezuela, teríamos que ocupar outro espaço. Basta assinalar que quem critica o sistema judicial bolivariano daquele país-irmão é o ex-juiz Eladio Aponte. Ele diz que o governo Chávez e, agora, o do presidente Nicolás Maduro, controlam o Judiciário. Eladio Aponte foi destituído de seu cargo e saiu da Venezuela porque descobriu-se que havia dado um documento de identidade governamental, usado apenas por autoridades, a um tal Walid Makled, narcotraficante que foi preso na Colômbia em 2010 e depois extraditado para a Venezuela. Makled é, inclusive procurado pela polícia dos Estados Unidos. Como se vê, o crítico da justiça bolivariana não tem as melhores credenciais. E parece que na Venezuela a Justiça funciona até contra banqueiros.