sábado, 10 de agosto de 2013

A síndrome da militância arrogante


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Parte dos oprimidos adota, previsivelmente, a ideologia do opressor. Mas nem por isso feminismo, ou outros movimentos libertários, deveriam julgar-se superiores.
Por Marília Moschkovich, editora de Mulher Alternativa | Imagem: Nick Gentry
A situação não é nada nova: mulheres reforçando o machismo. Isso sempre existiu e existirá, enquanto houver machismo. Ser mulher não torna ninguém automaticamente revolucionária, feminista. Estar na condição de oprimido não torna ninguém necessariamente contra a opressão. Aqueles que lutaram e lutam pelo socialismo no mundo todo sabem bem disso. Se essa condição fosse suficiente para derrubarmos as opressões, definitivamente não teríamos saído da guerra fria como majoritariamente capitalistas, no mundo todo. Quem eram (e quem são) os soldados estadunidenses nas guerras contra “o comunismo”? Donos de empresas? A classe que tem os meios de produção? (eu realmente preciso responder essas perguntas pra vocês?)
A lógica é relativamente simples: existe uma forma dominante de pensar, que defende sempre os interesses de quem domina. Marx chamou isso de ideologia, Gramsci foi mais longe e pensou numa hegemonia, Althusser explicou que esse negócio se difunde por “aparelhos ideológicos” responsáveis em transmitir essas maneiras de pensar e reforçá-las (e, depois, dirá Foucault, a coagir e controlar as pessoas para que as executem). Essa é, substancialmente, a maneira pela qual quem concentra poder mantém o poder concentrado e a sociedade funciona como funciona. As opressões de classe, raça e gênero têm ainda uma série de ferramentas próprias para que se mantenham.
Por isso, não é de se espantar que mulheres reforcem o machismo, ou que pessoas negras reforcem o racismo, ou que pessoas mais pobres defendam os interesses de pessoas mais ricas, e daí em diante. Como militantes, porém, temos duas formas de lidar com essa situação.
A primeira forma é um tanto contraditória, mas extremamente popular entre militantes de diversas causas, infelizmente. Frustrados com essa contradição gerada pelos próprios sistemas de opressão, muitos de nós acabam descontando a frustração nas pessoas que, em tese, estaríamos defendendo. Há algumas semanas, várias companheiras feministas compartilharam no Facebook uma imagem que apontava alguns motivos pelos quais as mulheres deveriam reconhecer o feminismo. No fim da imagem, um pequeno asterisco estragava todo o propósito de militância, com os seguintes dizeres: “Mas se você prefere continuar lavando louça, provavelmente você deve ser mais útil na cozinha. Então fique lá, enquanto outras lutam por você. Não precisa expor sua ignorância para toda a rede”.
Ai. Essa me doeu na alma.
Doeu porque é uma postura muito comum: o militante, ou a militante, sente-se de alguma maneira superior porque consegue enxergar além do véu da ideologia dominante (como diria o barbudo alemão). Esse ar de superioridade faz com que ele ou ela sinta-se no direito de falar por grupos dos quais muitas vezes ele/ela não fazem parte e, muito pior que isso, excluir as próprias pessoas em situação de opressão da luta contra essa opressão. Acham-se no direito de determinar que sua luta “serve” apenas para algumas pessoas – aquelas iluminadas como ele/a, que enxergam os mesmos grilhões. Que raio de militância é essa?
Pessoalmente, prefiro uma segunda atitude possível diante dessa frustração. A bem da verdade, ela inibe o próprio sentimento de frustração. Consiste em enxergar, na existência de oprimidos que agem contra seus próprios interesses, um resultado inevitável do próprio sistema de opressão. Isso permite entender que, enquanto nossos movimentos (negro, feminista, de trabalhadores, etc) existirem, essa contradição existirá, já que a partir do momento em que acabarmos com a opressão, nossa própria militância perde o propósito de existir. Quer dizer: lutamos para acabar com uma opressão; enquanto essa opressão existir, existirá essa contradição que frustra muitos e muitas de nós; quando conseguirmos acabar com a opressão, conseguiremos acabar com a contradição; mas então, nosso próprio movimento deixará de existir.
O fim último de todo movimento contra opressões é que, como resultado de seu próprio trabalho, ele deixe de ser necessário. Que ele deixe de ser necessário precisa ser um objetivo geral, que valha para absolutamente todas as pessoas envolvidas nesses sistemas de opressão. Não dá pra pensar um feminismo que quer incluir apenas as feministas no processo e no resultado da luta. Não dá, gente. Não dá.
Ou o feminismo será para todas e todos, ou não será.

Marília Moschkovich é socióloga, editora do site Mulher Alternativa e co-editora de Blogueiras Feministas. Seus textos em Outras Palavras podem ser lidos aqui.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Senta que o leão (Cabral) é manso. Mansinho

O governador Sérgio Cabral está provando que manifestações de rua contra ele não foram um equívoco popular.


 Manifestação do Rio


Por Edgard Catoira


Esta semana o Rio começou aparentemente bem. O governador Sérgio Cabral anunciou que voltou atrás e que não vai mais mandar demolir o histórico – e precioso bem arquitetônico da cidade – Quartel General da Polícia Militar, no Centro do Rio.

Instalado junto à Cinelândia, o terreno de 13,5 mil metros quadrados não será mais usado para aumentar a ganância das empreiteiras de construir numa das mais valorizadas áreas do Rio de Janeiro, alvo da insaciável especulação imobiliária.

Depois de mais de um ano de protestos contra a inabalável decisão, no mesmo tom de bebê chorão que vem adotando há quase duas semanas, Cabral atendeu a reivindicação de associações de classe, de moradores, historiadores e da própria PM, contrariando – e isso também é novidade – os interesses de construtoras, cujos donos possuem jatinhos sempre disponíveis ao governador para passeios de lazer dentro ou fora do país.

Essa decisão vem seguida de outras, todas controversas, que geraram ondas de protesto no Rio, como a suspensão das demolições do Parque Aquático Júlio Delamare, o Estádio Célio de Barros, o Museu do Índio e a Escola Municipal Friedenreich, imóveis que formam o complexo do Maracanã, cujos contratos com empresas ficaram em aberto.

Parlamentares municipais, estaduais e federais de oposição não poderão ir mais acusar o governador em suas respectivas casas legislativas, como fizeram nos últimos meses os vereadores Eliomar Coelho, Paulo Pinheiro, Cesar Maia; o deputado estadual Marcelo Freixo e, no Congresso Nacional, Alessandro Molon, Anthony Garotinho, para citar apenas alguns de diferentes partidos.

Até surgirem os movimentos de rua, o governador se mostrava um ditador implacável. Não ouvia os protestos, não se importava com audiências públicas. Sua palavra sempre foi a última, definitiva, ditatorial.

Agora estamos nos deparando com um chefe do Executivo fluminense que decidiu ouvir o povão. Abriu mão até dos helicópteros do Estado, que o conduzia até para os descansos de fim de semana com a família na sua mansão de Mangaratiba, praia nobre dos ricos e famosos do Rio. Aliás, não se sabe como está sendo feito este deslocamento agora.

Com humildade, Cabral se desculpa publicamente e vai recuando em suas tradicionais decisões despóticas. Seguramente vai acertar tudo para que os empreiteiros não saiam perdendo, principalmente no Complexo do Maracanã. Como os empresários são íntimos do governador, não reagirão publicamente. Mas, nos bastidores, com certeza, farão bons acordos com o Estado. As compensações virão em doses homeopáticas e mais seguras.

Em alguns negócios, porém, as ordens do antigo ‘imperador’ não terão como ser evitadas, como a “tripa” que é a planta do metrô do Centro até a Barra. Nisso, Cabral não tem mais como voltar atrás. As obras já estão adiantadas, o que continua sendo péssimo para a população.

O parceiro Eduardo Paes, prefeito unha-e-carne de Cabral, continua calado, observando os protestos focados principalmente para o governador. Ou omisso, como sempre esteve nos últimos anos.

Enfim, o povo falou mais alto nas ruas. Ou o governo sente a proximidade das eleições, a ponto de Cabral, no fim da semana, mandar anistiar os mesmos PMs e bombeiros que ele chamara de baderneiros.

Conclusão – ou moral da história? – o leão não é manso. O povo, agora, sabe disso e continua protestando nas casas legislativas do Rio. A verdade é que, mesmo em pele de cordeiro, a rejeição ao poder executivo do Rio só se restabelecerá, se é que algum dia isso vá acontecer, dentro de um futuro nada próximo. Quem votar em 2014, verá.




quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Como a falsa “austeridade” europeia está contaminando o mundo

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Dois estudos indispensáveis revelam: políticas de corte de direitos sociais e serviços públicos já atingem maior parte do planeta, interessam a um pequeno grupo e ameaçam democracia

Por Antonio Martins

Três dados muito eloquentes sobre o fracasso das políticas de ”austeridade fiscal” estão sendo divulgados no início desta semana. Em Portugal, tornaram-se públicos os planos do governo para reduzir em 10% o valor das aposentadorias. Na Espanha, missão do FMI, em visita ao país sugeriu o que chamou de “ambicioso pacto social”: os trabalhadores na ativa aceitariam cortar seus salários, também em 10%, para tornar a produção nacional “mais competitiva”. Ataques aos direitos sociais vêm se sucedendo pelo menos desde 2011, no Velho Continente, mas a cada dia parecem mais inúteis — ou, o que é mais provável, visam outros objetivos, que não os declarados. Números divulgados hoje revelam que a economia italiana viveu, entre abril e junho, o oitavo trimestre seguido de recessão, algo nunca antes visto na história daquele país… Engana-se, porém, quem julga que a obsessão por tais políticas é característica apenas da Europa.

Em março deste ano, duas organizações internacionais voltadas ao exame crítico das políticas econômicas (Initiative for Policy Dialogue e South Center) publicaram conjuntamente o relatório A Era da Austeridade [The Age of Austerity]. Ele pode ser lido aqui e revela que:

a) Houve uma mudança drástica, por volta de 2010, nas políticas adotadas pela maior parte dos governos em relação à crise financeira aberta em 2008. Numa primeira fase, adotou-se, corretamente, ações para ampliar o investimento público. Mas há três anos, elas vêm sendo revertidas. Em sua grande maioria, os Estados continuam a usar recursos públicos para salvar instituições financeiras amaçadas. Mas reverteram as as políticas de criação de empregos e a expansão de serviços públicos. Isso foi possível porque, até o momento, foi possível vender às sociedades a ideia de que aposentadorias dignas, ou serviços de Saúde eficientes, são “gorduras” a ser cortadas — mas os ganhos da oligarquia financeira, não! China, principalmente e a maior parte da América do Sul, em menor escala, são exceções à regra.

b) Oitenta por cento da população do planeta, ou 5,8 bilhões de habitantes já vivem sob políticas de “austeridade”. E elas são mais fortes entre os países em desenvolvimento (onde, em média, a relação entre investimento público e PIB caiu 3,7 pontos percentais) do que entre os “desenvolvidos” (queda de 2,2 pontos).

Que explica a adoção de políticas que reduzem os negócios e, à primeira vista, os próprios lucros dos capitalistas? É algo a ser examinado com atenção, mas ao menos dois elementos devem ser levados em conta:

> Construiu-se nos últimos anos, a partir de argumentos ideológicos, uma fraude teórica. Difundiu-se a ideia de que a elevação dos investimentos públicos gera déficits; e que, segundo modelos estatísticos indesmentíveis, estes reduzem a produção de riquezas. Trata-se de um argumento já desmascarado pelos fatos, conforme demonstra nosso colaborador Álvaro Bianchi.

> Esta manipulação interessa, objetivamente, a uma subclasse social: a aristocracia financeira, o 1% (ou menos da população) que extrai sua riqueza dos rendimentos pagos pelo Estado, na forma de juros. Quem a analisa é o filósofo Patrick Viveret, aqui. Embora reduzidíssimo, este grupo tem imenso poder sobre os governos, o mundo político em geral e a mídia. A ele importa que os Estados gastem cada menos com serviços públicos (e mais consigo mesmo…). A ele interessa, sobretudo, esvaziar a democracia, para que as atuais políticas sejam irreversíveis.


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Friedrich Engels por Vladimir Lênin



Friedrich Engels faleceu em Londres a 5 de Agosto (24 de Julho) de 1895. A seguir ao seu amigo Karl Marx (que morreu em 1883), Engels foi o mais notável sábio e mestre do proletariado contemporâneo em todo o mundo civilizado. Desde o dia em que o destino juntou Karl Marx e Friedrich Engels, a obra a que os dois amigos consagraram toda a sua vida converteu-se numa obra comum. Assim, para compreender o que Friedrich Engels fez pelo proletariado, é necessário ter-se uma ideia precisa do papel desempenhado pela doutrina e actividade de Marx no desenvolvimento do movimento operário contemporâneo. Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe operária e as suas reivindicações são um produto necessário do regime económico actual que, juntamente com a burguesia, cria e organiza inevitavelmente o proletariado; demonstraram que não são as tentativas bem intencionadas dos homens de coração generoso que libertarão a humanidade dos males que hoje a esmagam, mas a luta de classe do proletariado organizado. Marx e Engels foram os primeiros a explicar, nas suas obras científicas, que o socialismo não é uma invenção de sonhadores, mas o objectivo final e o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade actual. Toda a história escrita até aos nossos dias é a história da luta de classes, a sucessão no domínio e nas vitórias de umas classes sociais sobre outras. E este estado de coisas continuará enquanto não tiverem desaparecido as bases da luta de classes e do domínio de classe: a propriedade privada e a produção social anárquica. Os interesses do proletariado exigem a destruição destas bases, contra as quais deve, pois, ser orientada a luta de classe consciente dos operários organizados. E toda a luta de classe é uma luta política.

Todo o proletariado que luta pela sua emancipação tornou hoje suas estas concepções de Marx e Engels; mas nos anos 40, quando os dois amigos começaram a colaborar em publicações socialistas e a participar nos movimentos sociais da sua época, eram inteiramente novas. Então, eram numerosos os homens de talento e outros sem talento, honestos ou desonestos, que, no ardor da luta pela liberdade política, contra a arbitrariedade dos reis, da polícia e do clero, não viam a oposição dos interesses da burguesia e do proletariado. Não admitiam sequer a ideia de os operários poderem agir como força social independente. Por outro lado, um bom número de sonhadores, algumas vezes geniais, pensavam que seria suficiente convencer os governantes e as classes dominantes da iniquidade da ordem social existente para que se tornasse fácil fazer reinar sobre a terra a paz e a prosperidade universais. Sonhavam com um socialismo sem luta. Finalmente, a maior parte dos socialistas de então e, de um modo geral, os amigos da classe operária, não viam no proletariado senão uma chaga a cujo crescimento assistiam com horror à medida que a indústria se desenvolvia. Por isso todos procuravam o modo de parar o desenvolvimento da indústria e do proletariado, parar a «roda da história». Contrariamente ao temor geral ante o desenvolvimento do proletariado, Marx e Engels punham todas as suas esperanças no contínuo crescimento numérico deste. Quanto mais proletários houvesse, e maior fosse a sua força como classe revolucionária, mais próximo e possível estaria o socialismo. Pode exprimir-se em poucas palavras os serviços prestados por Marx e Engels à classe operária dizendo que eles a ensinaram a conhecer-se e a tomar consciência de si mesma, e que substituíram os sonhos pela ciência.

É por isso que o nome e a vida de Engels devem ser conhecidos por todos os operários; é por isso que, na nossa compilação, cujo fim, como o de todas as nossas publicações, é acordar a consciência de classe dos operários russos, devemos dar um apanhado da vida e da actividade de Friedrich Engels, um dos dois grandes mestres do proletariado contemporâneo.

Engels nasceu em 1820 em Barmen, na província renana do reino da Prússia. O pai era um fabricante. Em 1838, Engels teve de abandonar por motivos familiares os estudos no liceu e de entrar como empregado numa casa de comércio de Bremen. Este trabalho não o impediu de completar a sua instrução científica e política. Foi desde o liceu que ele ganhou ódio ao absolutismo e à arbitrariedade da burocracia. Os seus estudos de filosofia levaram-no ainda mais longe. Predominava então na filosofia alemã a doutrina de Hegel, e Engels tornou-se seu discípulo. Embora Hegel fosse, por seu lado, um admirador do Estado prussiano absolutista, ao serviço do qual se encontrava na qualidade de professor na Universidade de Berlim, a sua doutrina era revolucionária. A fé de Hegel na razão humana e nos seus direitos e o princípio fundamental da filosofia hegeliana segundo o qual o mundo é teatro de um processo permanente de mudança e desenvolvimento conduziram os discípulos do filósofo berlinense, que não queriam acomodar-se à realidade, à ideia de que a luta contra a realidade, a luta contra a iniquidade existente e o mal reinante, também procede da lei universal do desenvolvimento perpétuo. Se tudo se desenvolve, se certas instituições são substituídas por outras, porque é que o absolutismo do rei da Prússia ou do tsar da Rússia, o enriquecimento de uma ínfima minoria à custa da imensa maioria, o domínio da burguesia sobre o povo, hão-de perdurar eternamente? A filosofia de Hegel tratava do desenvolvimento do espírito e das ideias; era idealista. Do desenvolvimento do espírito a filosofia de Hegel deduzia o desenvolvimento da natureza, do homem e das relações entre os homens no seio da sociedade. Retomando a ideia hegeliana de um processo perpétuo de desenvolvimento(1), Marx e Engels rejeitaram a sua preconcebida concepção idealista; analisando a vida real, viram que não é o desenvolvimento do espírito que explica o da natureza, mas que, pelo contrário, é necessário explicar o espírito a partir da natureza, da matéria... Contrariamente a Hegel e outros hegelianos, Marx e Engels eram materialistas. Partindo de uma concepção materialista do mundo e da humanidade, verificaram que, tal como todos os fenómenos da natureza têm causas materiais, igualmente o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desenvolvimento de forças materiais, as forças produtivas. Do desenvolvimento das forças produtivas dependem as relações que se estabelecem entre os homens no processo de produção dos objectos necessários à satisfação das necessidades humanas. E são estas relações que explicam todos os fenómenos da vida social, as aspirações do homem, as suas ideias e as suas leis. O desenvolvimento das forças produtivas cria relações sociais que se baseiam na propriedade privada; mas vemos hoje esse mesmo desenvolvimento das forças produtivas privar a maioria dos homens de toda a propriedade e concentrar esta nas mãos de uma ínfima minoria; ele destrói a propriedade, base da ordem social contemporânea, e tende ele próprio para o objectivo que se fixaram os socialistas. Estes últimos devem apenas compreender qual é a força social que, pela sua situação na sociedade actual, está interessada na realização do socialismo, e incutir nesta força a consciência dos seus interesses e da sua missão histórica. Esta força é o proletariado. Engels conheceu-o na Inglaterra, em Manchester, centro da indústria inglesa, onde se fixou em 1842 como empregado de uma firma comercial de que seu pai era um dos accionistas. Aí Engels não se limitou a permanecer no escritório da fábrica: percorreu os bairros sórdidos em que viviam os operários e viu com os seus próprios olhos a miséria e os males que os afligiam. Não se limitando à sua observação pessoal, Engels leu tudo o que antes dele se tinha escrito sobre a situação da classe operária inglesa e estudou minuciosamente todos os documentos oficiais que pôde consultar. O resultado dos seus estudos e observações foi um livro que saiu em 1845: A Situação da Classe Operária em Inglaterra. Já atrás assinalámos o principal mérito de Engels como autor dessa obra. É certo que antes dele muitos tinham descrito os sofrimentos do proletariado e indicado a necessidade de lhe prestar ajuda. Engels foi o primeiro a declarar que o proletariado não é só uma classe que sofre, mas que a miserável situação económica em que se encontra empurra-o irresistivelmente para a frente e obriga-o a lutar pela sua emancipação definitiva. E o proletariado em luta ajudar-se-á a si mesmo. O movimento político da classe operária levará, inevitavelmente, os operários à consciência de que não há para eles outra saída senão o socialismo. Por seu lado, o socialismo só será uma força quando se tornar o objectivo da luta política da classe operária. Tais são as ideias fundamentais do livro de Engels sobre a situação da classe operária em Inglaterra, ideias hoje aceites por todo o proletariado que pensa e luta, mas que eram então absolutamente novas. Estas ideias foram expostas numa obra escrita num estilo cativante onde abundam os quadros mais verídicos e impressionantes da miséria do proletariado inglês. Este livro era uma terrível acusação contra o capitalismo e a burguesia. Produziu uma impressão muito grande. Em breve, por toda a parte começaram a referir-se a ele como o quadro mais fiel da situação do proletariado contemporâneo. E, com efeito, nem antes nem depois de 1845 apareceu uma descrição tão brilhante e tão verdadeira dos males sofridos pela classe operária.

Engels só se tornou socialista em Inglaterra. Em Manchester pôs-se em contacto com os militantes do movimento operário inglês de então e começou a escrever para as publicações socialistas inglesas. Em 1844, ao passar por Paris de regresso à Alemanha conheceu Marx, com quem se correspondia já há algum tempo, e que se tinha igualmente tornado socialista durante a sua estada em Paris, sob a influência dos socialistas franceses e da vida em França. Foi aí que os dois amigos escreveram em conjunto A Sagrada Família ou Crítica da «Crítica Crítica». Este livro, escrito na sua maior parte por Marx, e saído um ano antes de A Situação da Classe Operária em Inglaterra, contém as bases do socialismo materialista revolucionário de que atrás expusemos as ideias essenciais. A Sagrada Família é uma denominação jocosa dada a dois filósofos, os irmãos Bauer, e aos seus discípulos. Estes senhores pregavam uma crítica que se colocava acima de toda a realidade, acima dos partidos e da política, repudiava toda a actividade prática e limitava-se a contemplar «criticamente» o mundo circundante e os acontecimentos que nele se produziam. Os senhores Bauer qualificavam desdenhosamente o proletariado de massa desprovida de espírito crítico. Marx e Engels opuseram-se categoricamente a esta tendência absurda e nefasta. Em nome da verdadeira personalidade humana, do operário espezinhado pelas classes dominantes e pelo Estado, Marx e Engels exigiam não uma atitude contemplativa, mas a luta por uma melhor ordem social. Era, evidentemente, no proletariado que eles viam a força capaz de travar esta luta e directamente interessada em fazê-la triunfar. Já antes do aparecimento de A Sagrada Família, Engels tinha publicado na revista Anais Franco-Alemães editada por Marx e Ruge o seu Estudo Crítico sobre a Economia Política[N58] em que analisava, de um ponto de vista socialista, os fenómenos essenciais do regime económico contemporâneo como consequências inevitáveis da dominação da propriedade privada. As suas relações com Engels contribuíram incontestavelmente para que Marx se decidisse a ocupar-se do estudo da economia política, ciência em que os seus trabalhos iriam operar uma verdadeira revolução.

De 1845 a 1847 Engels viveu em Bruxelas e em Paris, aliando os estudos científicos com uma actividade prática entre os operários alemães destas duas cidades. Foi aí que Marx e Engels entraram em contacto com uma associação secreta alemã, «Liga dos Comunistas», que os encarregou de expor os princípios fundamentais do socialismo elaborado por eles. Assim nasceu o célebre Manifesto do Partido Comunista de Marx c Engels, publicado em 1848. Este pequeno livrinho vale por tomos inteiros: ele inspira e anima até hoje todo o proletariado organizado e combatente do mundo civilizado.

A revolução de 1848, que rebentou primeiro em França e se propagou em seguida aos outros países da Europa ocidental, permitiu a Marx e Engels regressarem à sua pátria. Aí, na Prússia renana, tomaram a direcção da Nova Gazeta Renana, jornal democrático que se publicava em Colónia. Os dois amigos eram a alma de todas as tendências democráticas revolucionárias da Prússia renana. Defenderam até ao fim os interesses do povo e da liberdade contra as forças da reacção. Estas últimas, como é sabido, acabaram por triunfar. A Nova Gazeta Renana foi proibida. Marx, que enquanto se encontrava na emigração tinha sido privado da nacionalidade prussiana, foi expulso. Quanto a Engels, tomou parte na insurreição armada do povo e combateu em três batalhas pela liberdade, e, após a derrota dos insurrectos, fugiu para Londres através da Suíça.

Foi igualmente em Londres que Marx veio fixar-se. Engels em breve voltou a ser empregado, e mais tarde sócio, da mesma casa comercial de Manchester onde tinha trabalhado nos anos 40. Até 1870 Engels viveu em Manchester e Marx em Londres, o que não os impediu de estar em estreito contacto espiritual; escreviam-se quase todos os dias. Nessa correspondência, os dois amigos trocavam as suas ideias e os seus conhecimentos, e continuaram a elaborar em conjunto a doutrina do socialismo científico. Em 1870, Engels veio fixar-se em Londres, e a sua vida intelectual conjunta, cheia de uma actividade intensa, prosseguiu até 1883, data da morte de Marx. Esta colaboração foi extremamente fecunda: Marx escreveu O Capital, a mais grandiosa obra de economia política do nosso século, e Engels toda uma série de trabalhos, grandes e pequenos. Marx dedicou-se à análise dos fenómenos complexos da economia capitalista. Engels escreveu, num estilo simples, obras muitas vezes polémicas em que esclarecia os problemas científicos mais gerais e os diversos fenómenos do passado e do presente, inspirando-se na concepção materialista da história e na teoria económica de Marx. Dentre esses trabalhos de Engels citaremos: a sua obra polémica contra Dühring (onde analisa as questões capitais da filosofia, assim como das ciências naturais e sociais)(2), A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (tradução russa saída em São Petersburgo, 3.a edição, 1895), Ludwig Feuerbach (tradução russa anotada por G. Plekhánov, Genebra, 1892), um artigo sobre a política externa do governo russo (traduzido em russo no Sotsial-Demokrat de Genebra, n.° 1 e 2)[N61], notáveis artigos sobre o problema da habitação[N62], e, finalmente, dois artigos, curtos mas de grande interesse, sobre o desenvolvimento económico da Rússia (Friedrich Engels sobre a Rússia[N63], tradução russa de Vera Zassúlitch, Genebra, 1894). Marx morreu sem ter conseguido completar a sua obra monumental sobre o capital. Contudo esta obra estava já terminada em rascunho e Engels, após a morte do amigo, assumiu a pesada tarefa de redigir e publicar os tomos II e III de O Capital. Editou o tomo II em 1885 e o tomo III em 1894 (não teve tempo de redigir o tomo IV) [N64]. Estes dois tomos exigiram um trabalho enorme da sua parte. O social-democrata austríaco Adler observou muito justamente que, editando os tomos II e III de O Capital, Engels ergueu ao seu genial amigo um grandioso monumento no qual, involuntariamente, tinha gravado também o seu próprio nome em letras indeléveis. Estes dois tomos de O Capital são, com efeito, obra de ambos, de Marx e Engels. As lendas da Antiguidade contam exemplos comoventes de amizade. O proletariado da Europa pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos. Engels, em geral com toda a razão, sempre se apagou diante de Marx. «Ao lado de Marx, escreveu ele a um velho amigo, fui sempre o segundo violino.»[N65] O seu carinho por Marx enquanto este viveu e a sua veneração à memória do amigo morto foram ilimitados. Este militante austero e pensador rigoroso tinha uma alma profundamente afectuosa.

Durante o seu exílio, depois do movimento de 1848-1849, Marx e Engels não se dedicaram unicamente ao trabalho científico. Marx fundou em 1864 a "Associação Internacional dos Trabalhadores», de que assegurou a direcção durante dez anos. Engels desempenhou nela, igualmente, um papel considerável. A actividade da «Associação Internacional», que unia, de acordo com os ideais de Marx, os proletários de todos os países, teve uma enorme importância no desenvolvimento do movimento operário. Mesmo após a sua dissolução, nos anos 70, continuou o papel de Marx e Engels como unificadores da classe operária. Melhor: pode dizer-se que a sua importância como dirigentes espirituais do movimento operário não cessou de crescer, pois o próprio movimento se desenvolvia sem parar. Após a morte de Marx, Engels, sozinho, continuou a ser o conselheiro e o dirigente dos socialistas da Europa. A ele vinham pedir conselhos e indicações tanto os socialistas alemães, cuja força crescia contínua e rapidamente apesar das perseguições governamentais, como os representantes dos países atrasados, por exemplo, os espanhóis, romenos, russos, que meditavam e mediam então os seus primeiros passos. Todos eles corriam ao riquíssimo tesouro dos conhecimentos e experiência do velho Engels.

Marx e Engels, que conheciam o russo e liam obras publicadas nessa língua, interessaram-se vivamente pela Rússia, seguiam com simpatia o movimento revolucionário do nosso país e mantinham relações com os revolucionários russos. Ambos eram já democratas antes de se tornarem socialistas e tinham profundamente arraigado o sentimento democrático de ódio à arbitrariedade política. Este sentimento político nato, aliado a uma profunda compreensão teórica da relação existente entre a arbitrariedade política e a opressão económica, assim como a sua riquíssima experiência da vida, tinham tornado Marx e Engels extraordinariamente sensíveis precisamente no sentido político. Por isso a luta heróica de um pequeno punhado de revolucionários russos contra o poderoso governo tsarista encontrou a mais viva simpatia no coração dos dois experimentados revolucionários. Inversamente, toda a veleidade de voltar as costas, em nome de pretensas vantagens económicas, à tarefa mais importante e mais imediata dos socialistas russos — a conquista da liberdade política — parecia-lhes naturalmente suspeita, vendo mesmo nisso uma traição à grande causa da revolução social. «A emancipação do proletariado deve ser obra do próprio proletariado», eis o que ensinavam constantemente Marx e Engels[N66]. E para lutar pela sua emancipação económica, o proletariado deve conquistar certos direitos políticos. Além disso, Marx e Engels viram com toda a clareza que uma revolução política na Rússia teria também uma enorme importância para o movimento operário na Europa ocidental. A Rússia autocrática foi sempre o baluarte de toda a reacção europeia. A situação internacional excepcionalmente favorável em que a Rússia se encontrou depois da guerra de 1870, que semeou durante muito tempo a discórdia entre a França e a Alemanha, não podia evidentemente deixar de fazer aumentar a importância da Rússia autocrática como força reaccionária. Só uma Rússia livre, que não tivesse necessidade de oprimir os Polacos, os Finlandeses, os Alemães, os Arménios e outros pequenos povos, nem de lançar, incessantemente, a França e a Alemanha uma contra a outra, permitiria à Europa contemporânea respirar aliviada do peso das guerras, enfraqueceria todos os elementos reaccionários da Europa e aumentaria as forças da classe operária europeia. Por isso mesmo Engels advogou calorosamente a instauração da liberdade política na Rússia no próprio interesse do movimento operário do Ocidente. Os revolucionários russos perderam nele o seu melhor amigo.

A memória de Friedrich Engels, grande combatente e mestre do proletariado, viverá eternamente!

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Notas de rodapé:
(1) Marx e Engels declararam várias vezes que, em grande medida, o seu desenvolvimento intelectual era devido aos grandes filósofos alemães, e designadamente a Hegel. "Sem a filosofia alemã - declara Engels - o socialismo científico nem sequer existiria."[N57] (retornar ao texto)

(2) É um livro notavelmente rico de conteúdo e altamente instrutivo[N59]. Lamentavelmente, apenas foi traduzida em russo uma pequena parte, a que contém a história do desenvolvimento do socialismo (Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, 2." ed.. Genebra, 1892[N60]. (retornar ao texto)

Notas de fim de Tomo: 

[N56] Os versos em epígrafe foram extraídos por Lénine do poema de N. Nekrássov À Memória de Dobroliúbov. (retornar ao texto

[N57] F. Engels, Prefácio a A Guerra Camponesa na Alemanha. (retornar ao texto)

[N58] Trata-se da obra de F. Engels Esboços para a Crítica da Economia Política. (retornar ao texto)

[N59] Trata-se do livro de F. Engels Anti-Dühring. O Senhor Eugen Dühring Revoluciona a Ciência. (retornar ao texto)

[N60] Com este título foi publicada em 1892 a edição russa da obra de F. Engels Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Esta edição era composta por três capítulos do Anti-Dühring. (retornar ao texto)

[N61] Lénine refere-se ao artigo de F. Engels A Política Externa do Tsarismo Russo, publicado nos dois primeiros fascículos daSotsial-Demokrat com o título A Política Estrangeira do Império Russo.
Sotsial-Demokrat: revista política e literária editada no estrangeiro (Londres e Genebra) de 1890 a 1892 pelo grupo «Emancipação do Trabalho». Desempenhou um grande papel na difusão das ideias do marxismo na Rússia; no total saíram quatro cadernos. Colaboraram activamente na Sotsial-Demokrat G. Plekhánov, P. Axelrod e V. Zassúlitch. (retornar ao texto)

[N62] Lénine refere-se aos artigos de F. Engels Sobre a Questão da Habitação. (retornar ao texto)

[N63] Trata-se do artigo de F. Engels Sobre as Relações Sociais na Rússia e do epílogo deste artigo, incluídos no livro Friedrich Engels sobre a Rússia, Genebra, 1894. (retornar ao texto)

[N64] Lénine, de acordo com a indicação de Engels, assinala como t. IV de O Capital a obra de Marx Teorias da Mais-Valia, escrita em 1862-1863. No seu prefácio ao t. II de O Capital, Engels escreveu: «Reservo-me a publicação da parte crítica deste manuscrito [Teorias da Mais-Valia. - N. Ed.] como t. IV de O Capital; além disso, dela eliminar-se-ão numerosas passagens que foram tratadas exaustivamente nos tomos II e III.» No entanto, Engels não pôde preparar a edição do t. IV de O Capital. A referida obra foi publicada pela primeira vez sob a redacção de K. Kautsky em 1905-1910, em língua alemã. Esta edição não respeitou as exigências fundamentais da publicação científica do texto e foram adulteradas diversas teses do marxismo.
O Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS fez uma nova edição da obra Teorias da Mais-Valia (t. IV de O Capital) em três volumes, segundo o manuscrito de 1862-1863. (retornar ao texto)
[N65] Trata-se da carta de F. Engels a J. F. Becker de 15 de Outubro de 1884. (retornar ao texto)

[N66] Ver K. Marx, Estatutos Provisórios da Associação dos Trabalhadores, Estatutos Gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores; F. Engels, Prefácio à edição alemã de 1890 do Manifesto do Partido Comunista. (retornar ao texto)

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domingo, 4 de agosto de 2013

“Eu, sequestrado na Europa”

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Evo Morales narra ação que ameaçou sua vida e dispara: governos do Velho Continente traíram valores democráticos que inspiraram gerações

Por Evo Morales, no Le Monde DiplomatiqueTradução Cristiana Martin

O último 2 de julho produziu um dos eventos mais insólitos da história do Direito Internacional: a interdição feita ao avião presidencial do Estado Plurinacional da Bolívia de sobrevoar os territórios francês, espanhol, italiano e português, seguida de sequestro, no aeroporto de Viena (Áustria), por quatorze horas.

Várias semanas depois, este atentado contra a vida de membros de uma delegação oficial, cometido pelos Estados considerados democráticos e respeitosos da lei, continua a provocar indignação ao mesmo tempo que abundam as condenações de cidadãos, de organizações sociais, de organismos internacionais e de governos por todo o mundo.

O que aconteceu?

Estava em Moscou, alguns instantes antes do início de uma reunião com Vladmir Putin, quando um assistente me alertou de dificuldades técnicas: era impossível nos levar até Portugal como o previsto inicialmente. Mas assim que terminou o encontro com o presidente russo, já havia ficado claro que o problema não tinha nada de técnico…

Desde La Paz, nosso ministro de Relações Externas, David Choquehuaca, tratou de organizar uma escala em Las Palmas, na Espanha, e validar um novo plano de voo. Tudo parece em ordem… mas, agora que estamos no ar, o coronel de aviação Celiar Arispe, que comanda o grupo aéreo presidencial e pilotava o avião neste dia, vem me ver: “Paris retirou nossa autorização de vôo! Nós não podemos penetrar no espaço aéreo francês!”. A surpresa era tão grande quanto sua inquietude: estávamos prestes a cruzar o sul da França. 

Podíamos, é claro, tentar retornar à Rússia, mas corríamos risco de ficar sem combustível. O coronel Arispe fez, então, contato com a torre de controle do aeroporto de Viena para soliciar uma autorização de aterrisagem de urgência. Que as autoridades austríacas sejam aqui agradecidas por nos dar sinal verde. 

Instalado em um pequeno escritório que me colocaram à disposição no aeroporto, conversava com meu vice-presidente, Alvaro Garcia Linera e com o ministro Choquehuanca, para decidir o que fazer na sequência e, sobretudo, tentar compreender as razões da decisão francesa, uma vez que o piloto havia me informado que a Itália também tinha recusado nosso pedido de entrada em seu espaço aéreo. 

Neste momento, recebi a visita do embaixador da Espanha na Áustria, Alberto Carnero. Ele me comunicou que um novo plano de vôo para me levar à Espanha havia sido aprovado. Explicou que era necessário fazer, antes de tudo, uma inspeção no avião presidencial. Tratava-se de uma condição sine qua non para a nossa partida em direção à Las Palmas, nas Grandes Canárias.

Quando pergunto sobre as razões de tal exigência, Carnero invocou o nome de Edward Snowden, empregado de uma empresa norte-americano que prestava serviços de espionagem a Washington. Respondi que só o conhecia pelo que era noticiado na imprensa. Lembrei igualmente, ao diplomata espanhol, que meu país respeitava as convenções internacionais: em nenhum caso eu estava tentando extraditar alguém para a Bolívia.
Carnero estava em contato permanente com o subsecretário dos assuntos estrangeiros espanhol, Rafael Mendívil Peydro, que lhe pedia, visivelmente, para insistir. 

Você não inspecionará este avião, tive que reforçar. Se você não acredita que no que eu digo, você está chamando o presidente do Estado soberano da Bolívia de mentiroso.” O diplomata retirou-se para se aconselhar com seu superior, antes de retornar. Pediu-me, então, que o convidasse tomar um rápido café no avião. “Mas você acha que eu sou um delinquente?” — perguntei. “Se você tentar entrar neste avião será necessário que use a força. E eu não resistirei a uma operação militar ou policial, não tenho meios para tanto.”
 
  
Definitivamente assustado, o embaixador descartou a opção da força, não sem antes afirmar que, nestas condições, não poderia autorizar o plano de vôo: “Às nove da manhã, indicaremos se vocês podem ou não partir. Por enquanto, vamos discutir com nossos amigos”, explicou. “Amigos?”Mas que amigos da Espanha são esses que você se refere? A França e a Itália?” Ele recusou-se a responder saiu…

Aproveitei o momento para discutir com a presidente argentina Cristina Fernández, uma excelente advogada que me aconselha nas questões jurídicas, e também com os presidentes venezuelano e equatoriano, Nicolás Maduro e Rafael Correa, ambos muito inquietos com o assunto. 

O presidente Correa chamou várias vezes durante o dia, para saber as novidades. Esta solidariedade me deu forças: “Evo, eles não têm nenhum direito de inspecionar seu avião!”, repetiu. Eu não ignorava que um avião presidencial tem o mesmo status de uma embaixada. 

Mas estes conselhos e a chegada dos embaixadores da Aliança Bolivariana para os Povos da nossa América (ALBA) [1] aumentou dez vezes minha determinação de me mostrar firme. Não, nós não ofereceremos à Espanha ou à qualquer outro país – aos Estados Unidos, ainda menos que aos outros – a satisfação de inspecionar nosso avião. Nós defenderemos nossa dignidade, nossa soberania e a honra de nossa pátria, nossa grande pátria. Nós jamais aceitaremos esta chantagem.

O embaixador da Espanha reapareceu. Preocupado, inquieto e nervoso, disse que eu já disponha de todas as autorizações e que podíamos partir. Enfim, decolamos…

A interdição de sobrevoo, decretada de maneira simultânea por quarto países e coordenada pela CIA (Central Intelligence Agency) contra um país soberano, sob o único pretexto que nós talvez estivéssemos transportando Snowden, atualiza o peso político da principal potência imperial: os Estados Unidos. 

Até 2 de Julho (data do nosso sequestro), todos compreendia que os Estados pudessem dotar-se de agências de segurança, afim de proteger seu território e populacão. Mas Washington ultrapassou os limites concebíveis. Violando todos os princípios da boa fé e as convenções internacionais, transformaram parte do continente europeu em território colonizado. Um insulto aos direitos do homem, uma das conquistas da Revolução Francesa.

O espírito colonial que conduziu a submissão de tantos países demonstra, mais uma vez, que o império não tolera nenhum limite – nem legal, nem moral, nem territorial. A partir de agora, está claro para o mundo inteiro que, por esta potência, todas as leis podem ser transgredidas, toda soberania violada, todo direito humano ignorado.

O poder dos Estados Unidos, está claramente nas suas forças armadas, envolvidas em várias guerras de invasão apoiadas por um complexo militar-industrial fora do comum. As etapas de suas intervenções são bem conhecidas: após as conquistas militares, a imposição do livre comércio, de uma concepção singular de democracia, e, enfim, a submissão das populações à voracidade das multinacionais.

As marcas indeléveis do imperialismo – militares ou econômicas – desconfiguraram o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria. Alguns destes países foram invadidos por serem suspeitos de portarem armas de destruição em massa ou de abrigar organizações terroristas. Em todos, milhares de seres humanos foram mortos, sem que a Corte Penal Internacional instituísse o mínimo julgamento.

Mas o poder norte-mericano provém igualmente de dispositivos subterrâneos de propagação do medo, chantagem e intimidação. Algumas das receitas utilizadas por voluntários de Washington para manter o seu status: a “punição exemplar”, no mais puro estilo colonial que levou à repressão de índios Abya Yala. [2]

Esta prática agora recai sobre os povos que decidiram se libertar, e sobre os dirigentes políticos que optaram por governar para os humildes. A memória desta política de punição exemplar ainda está viva na América Latina: pensemos nos golpes de Estado contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002, contra o presidente hondurenho Manuel Zelaya em 2009, contra Correa em 2010, contra o presidente paraguaio Fernando Lugo em 2012 e, claro, contra nosso governo em 2008, sob a chefia do embaixador Americano na Bolívia, Philip Goldberg [3].
O “exemplo” para que os indígenas, os operários, os trabalhadores do campo, os movimentos sociais, não ousem levantar a cabeça contra as classes dominantes. 

O “exemplo”, para curvar os que resistem e aterrorizar os outros. No entanto um “exemplo” que, a partir de agora, conduz os humildes do continente e do mundo inteiro a redobrar seus esforços de unidade para fortalecer suas lutas.

O atentado de que fomos vítimas revela as duas faces de uma mesma opressão contra a qual os povos decidiram se revoltar: o imperialismo e seu gêmeo politico e ideológico, o colonialismo. O sequestro de um avião presidencial e de seu equipamento – o que tínhamos direito de considerar impensável no século XXI – ilustra a sobrevivência de uma forma de racismo no seio de certos governos europeus. Para eles, os Índios e os processos democráticos ou revolucionários nos quais eles estão engajados representam obstáculos no caminho da civilização.

Este racismo se refugia agora na arrogância e nas explicações “técnicas” mais ridículas para maquiar uma decisão política nascida em um escritório de Washington. Aqui estão os governos que perderam até a capacidade de se reconhecer como colonizados e que tentam proteger a reputação de seu mestre. 

Quem diz império, diz colônias

Tendo optado pela obediência às ordens que lhes foram dadas, certos países europeus confirmaram seu status de país submisso. A natureza colonial da relação entre os Estados Unidos e a Europa foi reforçada após os atentados do 11 de Setembro de 2001 e revelada à todos em 2004, quando tomamos conhecimento da existência de vôos ilícitos de aviões militares norte-americanos, transportando supostos prisioneiros de guerra, para Guantánamo ou para prisões europeias. 

Sabemos hoje que estes presumidos “terroristas” eram submetidos a tortura; uma realidade que mesmo as organizações de defesa dos direitos humanos silenciam frequentemente. A “Guerra contra o terrorismo” reduziu a velha Europa à classificação de colônia; um ato hostil, que podemos tratar como terrorismo de Estado, coloca a vida privada de milhões de cidadãos à disposição dos caprichos do império.

Mas a ofensa ao Direito Internacional que nosso sequestro expressa pode constituir um ponto de ruptura. A Europa foi berço das mais nobres idéias: liberdade, igualdade, fraternidade. Ela contribuiu largamente para o progresso científico e à emergência da democracia. Ela não é mais que uma pálida figura de si mesma. Um neo-obscurantismo ameaça os povos de um continente, que séculos atrás, iluminava o mundo com suas idéias revolucionárias e suscitava a esperança.

Nosso sequestro poderia oferecer a todos os povos e governos da América Latina, do Caribe, da Europa, da Ásia, da África e da América do Norte a oportunidade única de constituir um bloco solidário condenando a atitude indigna dos Estados envolvidos nesta violação do direito internacional.

Trata-se também de uma oportunidade ideal de reforçar as mobilizações dos movimentos sociais que desejam construir um outro mundo, de fraternidade e de complementariedade. Cabe aos povos construí-lo.
Estamos certos que os povos do mundo, principalmente os da Europa, lamentam a agressão da qual nós fomos vítimas e que os afeta igualmente. E interpretamos a indignação deles como uma maneira indireta de nos pedirem as desculpas a que se ainda recusam os governos responsáveis. [4]


[1] Dos quais são membros: Antigua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua, República Dominicana, São Vicente e Granadinas e a Venezuela. 

[2] Nome dado pelas etnias Kunas do Panamá e da Colôbia ao continente amerciano antes da chegada de Cristóvão Colombo. Em 1992, esse nome foi escolhido pelas nações indígenas da América para designer o continente.

[3] Sobre estes eventos, consultar a página “Honduras” em nosso site e ler “Estado de Exceção no Equador” de Maurício Lemoine, La valise diplomatique, 1 de Outubro de 2010 e “O Paraguai tomado pela Oligarquia” de Gustavo Zaracho, La valise diplomatique, 19 de Julho de 2010; “Pequena desestabilização específica na Bolívia” de Hernando Calvo Ospina, Le Monde Diplomatique, Junho de 2010. 

[4] Lisboa, Madri, Paris e Roma fizeram um pedido de desculpas oficial tardio para La Paz .