sábado, 6 de julho de 2013

Ignacio Ramonet: “Somos todos vigiados”

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Que é a mega-rede global de espionagem montada pelos EUA. Como os cidadãos são monitorados. Por que a denúncia de Edward Snowden é um fato histórico

Por Ignacio Ramonet | Tradução Cauê Ameni

Nós já temíamos (1). Tanto a literatura de (1984, de George Orwell), como o cinema (Minority Report, de Steven Spielberg) haviam avisado: com o progresso da tecnologia da comunicação, todos acabaríamos sendo vigiados. Presumimos que essa violação de nossa privacidade seria exercida por um Estado neototalitário. Aí nos equivocamos. Porque as revelações inéditas do ex-agente Edward Snowden sobre a vigilância orwelliana acusam diretamente os Estados Unidos, país considerado como “pátria da liberdade”. Aparentemente, desde a promulgação, em 2001, da lei Patriot Act (2), isso ficou no passado. O próprio presidente Barack Obama acaba de admitir: “Não se pode ter 100% de segurança e 100% de privacidade”. Bem-vindos, portanto a era do “Grande Irmão”…

O que revelou Snowden? Este antigo assistente técnico da CIA, de 29 anos, que trabalhava para uma empresa privada – a  Booz Allen Hamilton (3) – subcontratada pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, sua sigla em inglês), vazou para os jornais The Guardian e Washington Post, a existência de programas secretos que tornam o governo dos Estados Unidos capaz de vigiar a comunicação de milhões de cidadãos.

Um primeiro programa entrou em operação em 2006. Consiste em espiar todas as chamadas telefônicas feitas pela companhia Verizon, dentro dos Estados Unidos, e as que se fazem de lá ao exterior. Outro programa, chamado PRISM, foi posto em marcha em 2008. Coleta todos os dados enviados, pela internet (e-mails, fotos, vídeos, chats, redes sociais, cartões de crédito), por (a princípio…), estrangeiros que moram fora do território norte-americano. Ambos os programas foram aprovados em segredo pelo Congresso norte-americano, que teria sido, segundo Barack Obama, “constantemente informado” sobre seu desenvolvimento.

Sobre a dimensão da incrível violação dos nossos direitos civis e nossas comunicações, a imprensa deu detalhes escabrosos. Em 5 de junho, por exemplo, o Guardian publicou a ordem emitida pela Tribunal de Supervisão de Inteligencia Externa, que exigia à companhia telefônica Verizon entregar à NSA os registros de milhões de chamada de seus clientes. O mandato não autoriza, aparentemente, saber o conteúdo das comunicações, nem os titulares dos números de telefone, mas permite o controle da duração e destino dessas chamadas. No dia seguinte, o Guardian e o Washington Post revelaram a realidade do programa secreto de vigilância PRISM, que autoriza a NSA e o FBI a acessar os servidores das nove principais empresas da internet (com a notável exceção do Twitter): Microsoft, Yahoo, Gogle, Facebook (4), PalTalk, AOL, Skype, YouTube e Apple.

Por meio dessa violação, o governo estadunidense pode acessar arquivos, áudios, vídeos, e-mails e fotografias de usuários dessas plataformas. O PRISM converteu-se, desse modo, na ferramenta mais útil da NSA para fornecer relatórios diários aos presidente Obama. Em 7 de junho, os mesmo jornais publicaram um diretiva da Casa Branca que ordenava, a suas agencias (NSA, CIA, FBI), estabelecer uma lista de possíveis países suscetíveis de serem “ciberatacados” por Washigton. E em 8 de junho, o Guardian revelou a existência de outro programa, que permite à NSA classificar os dados recolhidos na rede. Esta prática, orientada a ciber-espionagem no exterior, permitiu compilar  – só em março – cerca de 3 bilhões de dados de computador nos Estados Unidos…

Nas últimas semanas, ambos os jornais conseguiram revelar, sempre graças a vazamentos de Edward Snowden, novos programas de ciberespionagem e vigilância da comunicação em países no resto do mundo. Edward Snowden explica “A NSA construiu uma infra-estrutura que lhe permite interceptar praticamente qualquer tipo de comunicação. Com esta técnica, a maioria das comunicações humanas são armazenadas para servir em algum momento a um objetivo determinado”.

A Agência de Segurança Nacional (NSA), cujo quartel-general fica em Fort Meade (Maryland), é a mais importante e mais desconhecida agência de inteligência norte-americana. É tão secreta que a maioria dos norte-americanos ignora sua existência. Controla a maior parte do orçamento destinado aos serviços de inteligência, e produz mais de cinquenta toneladas de material por dia… É ela – e não a CIA – a proprietária e operadora da maior parte do sistema de coleta de dados da inteligência secreta dos EUA. Desde uma rede mundial de satélites até as dezenas de postos de escuta, milhares de computadores e as florestas de antenas localizadas nas colinas de West Virginia. Uma de suas especialidades é espiar os espiões — ou seja, os serviços secretos de inteligência de todas as potências, amigas e inimigas. Durante a guerra das Malvinas (1982), por exemplo, a NSA decifrou o código secreto dos serviços de inteligencia argentinos, o que lhe possibilitou transmitir, aos britânicos, informações cruciais sobre as forças argentinas.

O vasto sistema de interceptação da NSA pode captar discretamente qualquer e-mail, qualquer consulta de internet ou telefonema internacional. O conjunto total da comunicação interceptada e decifrada pela NSA, constitui a principal fonte de informação clandestina do governo estadounidense.

A NSA colabora estreitamente com o misterioso sistema Echelon. Criado em segredo, depois da Segunda Guerra Mundial, por cinco potências anglo-saxônicas — Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia (os “cinco olhos”). o Echelon é um sistema orwelliano de vigilância global, que se estende por todo o mundo, monitora os satélites usados para transmitir a maioria dos telefonemas, comunicação na internet, e-mails, redes sociais etc. O Echelon é capaz de capturar até dois milhões de conversas por minuto. Sua missão clandestina é a espionagem de governos, partidos políticos, organizações e empresas. Seis bases espalhadas pelo mundo recolhem informações e interceptam de forma indiscriminada enormes quantidades de comunicação. Em seguida, os super-computadores da NSA classificam este material, por meio da introdução de palavras-chaves em vários idiomas.

Em torno do Echelon, os serviços de inteligência dos EUA e do Reino Unido estabeleceram uma larga colaboração secreta. E agora sabemos, graças às novas revelações de Edward Snowden, que a espionagem britânica também grampeia clandestinamente cabos de fibra ótica, o que lhe permitiu espionar as comunicações das delegações presentes na reunião de cúpula do G-20, em Londres, em abril de 2009. Sem distinguir entre amigos e inimigos (5).

Por meio do programa Tempora, os serviços britânicos não hesitam em armazenar enormes quantidades de informação obtidas ilegalmente. Por exemplo, em 2012, manejaram cerca de 600 milhões de “conexões telefônicas” por dia e grampearam, em perfeita ilegalidade, mais de 200 cabos… Cada cabo transporta 10 gigabites (6) por segundo. Em teoria, poderia processar 21 petabytes (7) por dia; equivalente a toda a informação da Biblioteca Britânica, enviada 192 vezes ao dia.

O serviços de inteligência constatam que a internet já tem mais de 2 bilhões de usuários no mundo e que quase 1 bilhão utiliza o Facebook de forma habitual. Por isso, fixaram como objetivo, transgredindo leis e princípios éticos, controlar tudo que circula na internet. E estão conseguindo: “Estamos começando a dominar a internet”, confessou um espião inglês, “e nossa capacidade atual é bastante impressionante”. Para melhorar ainda mais esse conhecimento sobre a internet, o Quartel-Geral de Comunicações do Governo [Government Communications Headquarters, ou GCHQ, a agência de espionagem britânica] lançou recentemente novos programas: Mastering The Internet (MTI) sobre como dominar a Internet, e Programa de Modernização da Interceptação [Interception Modernisation Programme] para uma exploração orwelliana das telecomunicações globais. Segundo Edward Snowden, Londres e Washington já acumulam, diariamente, uma quantidade astronômica de dados, interceptados clandestinamente através das redes mundiais de fibra ótica. Ambos países dispõem de um total de 550 especialistas para analisar essa titânica informação.

Com a ajuda da NSA, a GCHQ aproveita-se de que grande parte dos cabos de fibra ótica por onde trafegam as telecomunicações planetárias passam pelo Reino Unido. Este fluxo é interceptado com programas sofisticados de informática. Em síntese, milhões de telefonemas, mensagens eletrônicas e dados sobre visitas na internet são armazenados sem que os cidadãos saibam, a pretexto de reforçar a segurança e combater o terrorismo e o crime organizado.

Washington e Londres colocaram em marcha o plano orwelliano do “Grande Irmão”, com capacidade de saber tudo que fazemos e dizemos em nossas comunicações. E quando o presidente Obama menciona a suposta “legitimidade” de tais práticas de violação de privacidade, está defendendo o injustificável. Além disso, há de se lembrar que, por interceptarem informação sobre perigosos grupos terroristas com base na Flórida – ou seja, uma missão que, segundo a lógica do presidente Obama seria “perfeitamente legitima” — cinco cubanos foram detidos em 1998 e condenados (8) pela justiça dos EUA a largas e imerecidas penas de prisão (9).

O presidente Barack Obama esta abusando de seu poder e diminuindo a liberdade de todos os cidadãos do mundo. “Eu não quero viver numa sociedade que permite este tipo de ação”, protestou Edward Snowden, quando decidiu fazer suas impactantes revelações. Divulgou os fatos, e não por acaso, exatamente quando começou o julgamento do soldado Bradley Manning, acusado de vazar segredos Wikileaks, organização internacional que divulga informações secretas de fontes anônimas. Enquanto isso, o ciber-ativista Julian Assange está refugiado há um ano na Embaixada do Equador em Londres… Snowden, Manning e Assange, são defensores da liberdade de expressão, lutam em favor da democracia e dos interesses de todos os cidadãos do planeta. Hoje são assediados e perseguidos pelo “Grande Irmão” norte-americano (10).

Por que os três heróis de nosso tempo assumiram correr semelhante riscos, que podem custar sua própria vida? Edward Snowden, obrigado a pedir asilo político no Equador e em vinte países, responde “Quando se dá conta de que o mundo que ajudou a criar será pior para as próximas gerações, e que os poderes desta arquitetura de opressão se estendem, você entende que é preciso aceitar qualquer risco. Sem se preocupar com as consequências”.


(1) Ver, de Ignacio Ramonet, “Vigilancia absoluta”, na Biblioteca Diplô, agosto de 2003.

(2) Proposta pelo presidente George W. Bush e adotada no contexto emocional que se seguiu aos ataques de 11 de setembro de 2001, a lei “Patriot Act” autoriza controles que interferem com a vida privada, suprimem o sigilo da correspondência e liberdade de informação. Não requer a permissão para escutas telefônicas. E os investigadores podem acessar informações pessoais dos cidadãos sem mandado.

(3) Em 2012, a empresa faturou 1,3 bilhão para “missões de assistência de inteligência.”

(4) Recentemente, soube-se que Max Kelly, chefe de segurança no Facebook, encarregado de proteger as informações pessoais dos usuários da rede social contra ataques externos, deixou a empresa em 2010 e foi contratado… pela NSA.

(5) Espiar diplomatas estrangeiros é legal no Reino Unido: protegido por uma lei aprovada pelos conservadores britânicos, em 1994, que coloca o interesse econômico nacional acima da diplomacia.

(6) O byte é uma unidade de informação em computação. Um gigabyte é uma unidade de armazenamento cujo símbolo é GB, igual ou a bilhão de bytes, o equivalentes a uma van repleta de páginas de texto.

(7) Um petabyte (PT) é igual a um quatrilhão de bytes — ou um milhão de gigabyte.

(8) A missão dos cinco Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e René González, era infiltrar-se e observar o processo de grupos de exilados cubanos para evitar atos de terrorismo contra Cuba. Porém o juiz condenou eles à prisão perpétua, disse a Anistia Internacional em um comunicado que “durante o julgamento não mostrou qualquer prova de que os acusados ​​tinham informações classificadas realmente tratado ou transmitida.”

(9) Ler de Fernando Morais, Os últimos soldados da guerra fria, Companhia das Letras

(10 )Edward Snowden corre o risco de ser condenado a trinta anos de prisão após ter sido formalmente acusado pelo governo dos EUA de “espionagem”, “roubo” e “uso ilegal de propriedade do governo.”



quinta-feira, 4 de julho de 2013

25 verdades sobre o caso Evo Morales/Edward Snowden


Por Salim Lamrani


Caso mostra que União Europeia é um engodo político e diplomático, sempre subserviente às exigências de Washington.



O caso Edward Snowden está na raiz de um grave incidente diplomático entre a Bolívia e vários países europeus. Por ordem de Washington, França, Itália, Espanha e Portugal proibiram o avião presidencial de Evo Morales de sobrevoar seus territórios.

1 – Depois de uma viagem oficial à Rússia para assistir a uma cúpula de países produtores de gás, o presidente Evo Morales pegou seu avião para voltar à Bolívia.

2 – Os Estados Unidos, pensando que Edward Snowden, ex-agente da CIAe da NSA, autor das revelações sobre as operações de espionagem de seu país, estava no avião presidencial, ordenou que quatro países europeus – França, Itália, Espanha e Portugal – proibissem que Evo Morales sobrevoasse seus respectivos espaços aéreos.

3 – Paris cumpriu imediatamente a ordem procedente de Washington e cancelou a autorização de sobrevoo de seu território, que havia outorgado à Bolívia em 27 de julho de 2013, enquanto o avião presidencial estava a apenas alguns quilômetros das fronteiras francesas.

4 – Assim, Paris colocou em perigo a vida do presidente boliviano que, por falta de combustível, precisou fazer uma aterrissagem de emergência na Áustria.

5 – Desde 1945, nenhuma nação do mundo impediu um avião presidencial de sobrevoar seu território.
6 – Paris, além de desatar uma crise de extrema gravidade, violou o direito internacional e a imunidade diplomática absoluta da qual todo chefe de Estado goza.

7 – O governo socialista de François Hollande atentou gravemente ao prestígio da nação. A França aparece diante dos olhos do mundo como um país servil e dócil que não vacila um instante sequer para obedecer as ordens de Washington, contra seus próprios interesses.

8 – Ao tomar tal decisão, Hollande desprestigiou a voz da França no cenário internacional.

9 – Paris também se tornou alvo de piada no mundo inteiro. As revelações feitas por Edward Snowden permitiram descobrir que os Estados Unidos espiavam vários países da União Europeia, entre os quais a França. Diante dessas revelações, François Hollande pediu pública e firmemente a Washington que parasse com esses atos hostis. Ainda assim, por debaixo dos panos, o Palácio do Eliseu seguiu fielmente as ordens da Casa Branca.

10 – Depois de descobrir que se tratava de uma informação falsa e que Snowden não estava no avião, Paris decidiu anular a proibição.

11 – Itália, Espanha e Portugal também seguiram as ordens de Washington e proibiram Evo Morales de sobrevoar seu território, antes de mudar de opinião, quando souberam que a informação não era verídica, e permitir que o presidente boliviano seguisse sua rota.

12 – Antes disso, a Espanha até exigiu revistar o avião presidencial, violando todas as normas legais internacionais. "Isto é uma chantagem; não vamos permitir por uma questão de dignidade. Vamos esperar todo o tempo necessário", respondeu o presidente boliviano. "Não sou um criminoso", declarou Evo Morales.

13 – A Bolívia denunciou um atentado contra sua soberania e contra a imunidade de seu presidente. "Trata-se de uma instrução do governo dos Estados Unidos", segundo La Paz.

14 – América Latina condenou unanimemente a atitude da França, Espanha, Itália e Portugal.

15 – A Unasul (União de Nações Sul-Americanas) convocou em caráter de urgência uma reunião extraordinária após esse escândalo internacional e expressou sua "indignação" por meio de seu Secretário-Geral, Ali Rodríguez.

16 – A Venezuela e o Equador condenaram "a ofensa" e "o atentado" contra o presidente Evo Morales.

17 – O presidente Nicolás Maduro, da Venezuela, condenou "uma agressão grosseira, inadequada e não civilizada".

18 – O presidente equatoriano, Rafael Correa, expressou sua indignação: "Nossa América não pode tolerar tanto abuso!".

19 – A Nicarágua denunciou "uma ação criminosa e bárbara".

20 – Havana fustigou o "ato inadmissível, infundado, arbitrário que ofende toda a América Latina e o Caribe".

21 – A presidente argentina, Cristina Kirchner, expressou sua consternação: "Definitivamente, estão todos loucos. O chefe de Estado e seu avião têm imunidade total. Não pode haver esse grau de impunidade".

22 – Por meio de seu Secretário-Geral José Miguel Insulza, a OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou a decisão dos países europeus: "Não existe justificativa alguma para cometer tais ações em detrimento do presidente da Bolívia. Os países envolvidos devem dar uma explicação das razões pelas quais tomaram essa decisão, particularmente porque isso colocou em risco a vida do primeiro mandatário de um país-membro da OEA".

23 – A Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) denunciou "uma flagrante discriminação e ameaça à imunidade diplomática de um Chefe de Estado".

24 – Em vez de outorgar o asilo político à pessoa que lhe permitiu descobrir que era vítima de espionagem hostil, a Europa, particularmente a França, não vacila em criar uma grave crise diplomática com o objetivo de entregar Edward Snowden aos Estados Unidos.

25 – Esse caso ilustra que, se a União Europeia é uma potência econômica, é também um engodo político e diplomático incapaz de adotar uma postura independente em relação aos Estados Unidos.



Fonte: Diário Liberdade

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Inflação deve ser contida com aumento da produção, afirma diretor da Conab

Para Silvio Porto, o controle da inflação dos alimentos só vai ocorrer se existirem medidas de estímulo e subsídios à produção de alimentos pela agricultura familiar (Foto: Agência Brasil)





José Coutinho Júnior da Página do MST

A contenção da inflação dos alimentos se tornou tema de muitos debates nos últimos meses. Diversos especialistas e economistas alegam que, para diminuir a inflação, é necessário um aumento nos juros, medida que quando tomada restringe a capacidade de consumo da população.

Para o diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Silvio Porto, o controle da inflação dos alimentos, assim como a diminuição dos preços e a garantia de independência alimentar no Brasil só vão ocorrer se existirem medidas de estímulo e subsídios à produção de alimentos pela agricultura familiar.  

“É uma questão muito mais conjuntural, e não tem nenhuma relação com a necessidade de aumento de juros. A inflação é um tema preocupante, mas certamente com uma afirmação política no sentido de promoção da produção e maior disponibilidade e oferta se resolve essa questão”.

Confira abaixo a entrevista com Silvio Porto para a página do MST:

MST - Quais os motivos da alta do preço dos alimentos?

Sílvio Porto - É preciso considerar que a forma de medir a inflação tem um critério. É uma lista de produtos bastante restrita, e nesse caso específico, principalmente o arroz, feijão e farinha tem tido um impacto expressivo em manter os preços altos. Principalmente a farinha, por conta da quebra de safra no nordeste em função da prolongada estiagem.

O arroz teve uma elevação expressiva no ano passado, e o feijão teve uma quebra muito significativa na safra de verão de 2012, e não se recompôs em termos de gerar uma grande oferta para uma recaída de preços. Esses três elementos juntos, com a questão conjuntural do tomate, cebola e batata fez com que continuássemos com a alta de preços de 2012 neste quadrimestre.

Na verdade, é uma questão muito mais conjuntural, e não tem nenhuma relação com a necessidade de aumento de juros, porque estamos falando de uma inflação de alimentos, não é uma inflação de demanda por bens duráveis que poderiam, na lógica convencional forçar o uso instrumentos da política monetária como o aumento de juros.

A inflação é um tema preocupante, mas certamente com uma afirmação política no sentido de promoção da produção e maior disponibilidade e oferta se resolve essa questão. 

Quais medidas a Conab toma para ajudar na queda dos preços dos alimentos?

Primeiro, em relação ao arroz, nós temos uma intervenção mais efetiva a partir do estoque público e já defendemos que devíamos ter entrado no mercado vendendo parte do nosso estoque público em nível de atacado, para baixar o preço para o consumidor.

Também precisamos pensar em usar os instrumentos de política pública, em especial dos preços mínimos, que poderiam ser um instrumento para controlar a variação de produtos perecíveis, como tomate, cebola e batata, que tem uma importância muito significativa no consumo diário das famílias. 

Poderíamos fazer dessa medida um sistema para regular esse ciclo de ofertas demasiadas e reduções drásticas, seja por questões climáticas, seja por quedas de preços que promovem um desestímulo à produção. É possível intervirmos para garantir segurança de preços aos produtores usando os instrumentos que temos hoje. 

Como a desregulação dos estoques da Conab, iniciada na década de 1990, afeta a inflação?

Na verdade, de 2003 para cá, conseguimos inverter isso. Nos anos 1990, foi uma afirmação da visão neoliberal no sentido de que a regulação não caberia ao estado, ou seja, o mercado vai regular a oferta e a demanda. 

Retomamos esse papel desde 2003, e a gente vem trabalhando com recomposição de estoque. Chegamos a ter em 2010 quase 6 milhões de estoques em trigo, milho, arroz. Então a importância dos estoques hoje já é algo que não está mais em discussão no governo. 

Assentou-se uma visão de que o estoque público é fundamental e exatamente por isso foi lançado um plano de armazenagem público e privado, na perspectiva de que a Conab vá aplicar R$600 milhões para recompor sua capacidade e estrutura de armazenagem.

O Brasil vem importando grandes quantidades de diversos alimentos básicos, como trigo, arroz e feijão. Qual o impacto desta dependência para a soberania alimentar brasileira?

Há que relativizar essa dependência da importação.  O trigo de fato é um problema, por conta da falta de uma política de estímulo à produção, e também porque nós poderíamos utilizar, no caso da farinha de trigo, algo que tentamos por um projeto de lei, mas que fomos derrotados no Congresso em 2005 é a possibilidade de fazer misturas de outros amidos, como milho ou mandioca, como forma de substituir a importação. 

Hoje tranquilamente poderíamos, sem nenhum tipo de prejuízo do ponto de vista da fabricação de pães, por exemplo, incluir até 20% de outros amidos, e mandioca seria um produto interessante por ser comumente consumido no Brasil, então poderíamos retomar a produção de mandioca pelos assentamentos da Reforma Agrária, pela agricultura familiar e camponesa, fazendo disso um processo de substituição da importação. 

Temos nos mantido em torno de 4,5 a 5,5 milhões de toneladas de trigo para um consumo de 10,5, então temos uma dependência de fato.Quanto ao feijão, não chegamos a importar 10% do que consumimos, mas quando olhamos só o feijão preto, é bastante expressiva a importação.

Isso facilmente poderia ser resolvido por uma questão de estímulo, que é o que tentamos fazer agora a partir de uma recomposição de preços mínimos, onde colocamos o preço mínimo do feijão preto a R$100,00 mesmo o preço no mercado esteja a R$ 200,00, mas fazemos isso na perspectiva de que na safra seguinte tenhamos uma retomada de produção, para conseguir diminuir ou substituir as importações. 

Qual a importância da agricultura familiar e camponesa no controle dos preços dos alimentos e na garantia da soberania alimentar?

A agricultura familiar e camponesa afirma e garante a biodiversidade que nós temos. O agronegócio é um especialista em rentabilidade, principalmente em cima das commodities, e para garantir a produção dos produtos básicos é que a agricultura camponesa é fundamental.



terça-feira, 2 de julho de 2013

A Copa das Manifestações, ou “Quem mexeu no meu futebol?”

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Por Marcelo Sorrentino

Tradicionalmente, pensamos que a paixão pelo futebol contrapõe-se à conscientização política. A ideia vem de longe e remonta, pelo menos, ao “panem et circenses” das Sátiras de Juvenal — a estratégia de prover comida e divertimento ao povo como um meio superficial de apaziguar a insatisfação generalizada. No Brasil, o mesmo expediente para refrear o descontentamento da população foi explorado pelo governo Médici, que assimilou a lição do século primeiro substituindo a arena gladiatória pelo estádio de futebol. À época, o investimento na seleção e a propaganda do futebol, as facilidades para a aquisição de televisores e a retransmissão dos jogos, parecem ter cumprido seus papéis entorpecentes do dissenso popular nos Anos de Chumbo. A teoria marxista também autoriza a equação do futebol com a deficiência de politização na medida em que se pode considerá-lo uma instância da “falsa consciência” — um conjunto de ideias que desvia a atenção das massas e mascara a sua real dominação. É por causa desse consenso em torno da oposição do futebol à mobilização política que é um prazer descobrir nas manifestações de junho de 2013, em todo o Brasil, que esta relação não é necessariamente verdadeira.

Sabemos que os protestos foram deflagrados pelo aumento das passagens de ônibus feitas em junho, em pleno período escolar, quando o acréscimo é geralmente, e estrategicamente, feito em janeiro, durante as férias. Não resta dúvida de que o MPL de São Paulo encabeçou os protestos, e de que o abuso da violência policial produziu tanto novas adesões e uma coesão previamente inexistente naquele grupo, quanto a solidariedade indignada das populações de outros estados, que não só se somaram ao seu ideal, mas somaram mais ideais àquele. Logo, os diversos gravames genéricos “Fora Corruptos”, “Mais Educação”, “Me Cura, Feliciano” e etc., que aparecem em tantos cartazes, configurando uma espécie de assembleia constituinte popular. Diante disso, nos protestos, o papel simbólico do futebol em geral, e a revolta contra os custos nababescos dos estádios em particular, pode ser comparado ao de um ator coadjuvante, ou mesmo a de um mero figurante. Mas é possível que esse papel simbólico do futebol não esteja operando num nível tão subjacente e subliminar  — e que, mesmo se estiver, não seja tão insignificante assim. E mais, é admissível a suposição de que o tema do futebol tenha, a despeito de sua associação típica com um efeito despolitizador, catalisado politicamente e para muito além de uma simples reivindicação (“O Maraca é nosso!”) ou objeção (ao custo dos estádios, por exemplo, face à falta de investimentos em Saúde, Educação, e assim por diante). Submeto aqui a hipótese de que o futebol contrubuiu às manifestações não só com o conteúdo de algumas exigências, mas com a forma do protesto também.

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Vale lembrar que as demonstrações eclodiram durante a Copa das Confederações, num cenário em que a presença do evento nos permite calcular alguma relação. Mas a tentativa de centenas de milhares de manifestantes cariocas, no protesto do dia 20 de junho, de chegar ao novo Maracanã, não deixa dúvidas. Tanto a intenção de chegar ao estádio, como se fosse uma espécie de Bastilha reificando a corrupção da licitação e do ganho da futura gestão pelo mesmo consórcio, OLX/ Odebrecht, quanto a resistência da polícia em deixá-los seguir ao Maracanã (quando já estavam às portas da Alerj e da Prefeitura!) é notável. Por que “Vamos ao Maracanã!” e “Ao Maracanã, não!”? Por que viria a ser essa passagem, justamente, o estopim do confronto? Na origem de tudo isso parece estar o que o novo Maracanã representa, a ressignificação forçada de um artefato cultural que tange o nervo imaginário da própria identidade nacional. Sua relação com o capital, a gentrificação da cidade, o controle de uma entidade estrangeira (a FIFA), a desvirtuação do rito nacional pela Lei Geral da Copa, entre outros que detalharei a seguir, confunde a dicotomia real/político e ideológico/simbólico que organiza a oposição de inspiração marxista entre futebol e conscientização política, animando a tese de que, no caso das manifestações, o tema do futebol transcendeu a sua inscrição na jurisdição ideológica da “falsa consciência”.

Em primeiro lugar, o elo do novo Maracanã com a força semi-soberana do capital (Eike Batista, OLX, Odebrecht) que excluiu a participação popular nos planos de construção, viciou o processo de licitação, idealizou elevar o preço dos ingressos para elitizar o perfil de seus frequentadores e demoliu traumaticamente seus entornos para expor, de forma fulcral, a gentrificação da cidade e do espaço público — esse elo que associa a cidade-negócio ao futebol-negócio — parece anunciar, no imaginário popular, a transformação ameaçadora do próprio futebol jogado dentro de campo, o aspecto central do rito em si.

Em outros aspectos, entretanto, pela Lei Geral da Copa, já é certo que o futebol perde alguma especificidade cultural, alterando a experiência ritual total. Na Bahia, foi proibido o acarajé, no Rio Grande do Sul, a típica cerveja Polar, e nos outros estados, o churrasquinho e o salsichão na farinha nas imediações dos estádios; dance music e animadores alteram a experiência sonora, um aspecto significativo uma vez que atinge o ritmo ritual das torcidas; a eliminação das gerais e arquibancadas em favor de cadeiras individuais subvertem a densidade igualitária e a experiência temporária de atenuação das diferenças privadas, tão centrais à catarse de massa; a exigência da contagem do tempo em 90 minutos corridos que aliena, como ouvi num bar “os que não são matemáticos” de “saber quanto tempo tem de jogo”, e etc. Para não multiplicar exemplos, admitamos que essas modificações do rito têm ainda um agravante, o de serem ditados por uma lei imposta por uma entidade estrangeira que visa a controlar diversos traços essenciais da vivência do rito.

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Previsivelmente, o boicote à Copa do Mundo e a sabotagem do ambiente lúdico durante a Copa das Confederações, com protestos nas imediações do Mané Garrincha, Mineirão, Castelão e Maracanã em dias de jogos, tornaram-se objetivos comuns dos manifestantes. Nessas ocasiões, não surpreende que o choque violento com a polícia ocorra, precisamente, quando as demonstrações tencionam atravessar o cordão de isolamento da FIFA em torno dos estádios. Contudo, essa campanha pelo boicote aos eventos de futebol vai mais longe e inclui desde exortações em redes sociais a não se assistir às transmissões dos jogos, aos gritos de “Não vai ter Copa!” que ressoavam antes e depois da ação da polícia na Presidente Vargas. Dentre seus muitos exemplos correndo as redes sociais, pode-se destacar o vídeo “No, I’m not going to the World Cup”, feito por uma brasileira no exterior para dissuadir turistas de virem à Copa do Mundo, que já conta com mais de 3.500.000 visualizações no YouTube e Deus sabe quantas via Facebook, e tem sido objeto de diversos artigos e reportagens na mídia brasileira.

Aqui emerge um interessante tour de force entre a paixão pelo futebol e a mobilização política — no tema do sacrifício do futebol em favor de benefícios materiais e da melhoria das condições de vida em geral — que parece reconduzir-nos à oposição inicial de que nos distanciamos. Mas aqui, também, essa relação mutuamente excludente entre a presença do futebol e da consciência política é apenas aparentemente dicotômica. Por exemplo: o grito “Vem pra rua, vem pra rua”, é entonado pelos manifestantes de todos os estados como na trilha sonora do comercial da FIAT para a Copa, cantada primorosamente por Falcão, vocalista da banda O Rappa, em que o povo toma as ruas para comemorar “a pátria de chuteiras”. Outras partes dessa letra, como “o Brasil [vai tá] gigante” e “A rua é a maior arquibancada do Brasil”, figuram em inúmeros cartazes levados pelos manifestantes, que frequentemente retomam, em uníssono, o coro final do comercial, “Vem pra rua! Vem pra rua!”. É um caso exemplar de como um artefato pertencente originalmente a um contexto específico (a paixão pelo futebol e o objetivo do consumo como motrizes de falsa consciência e alienação política) é apropriado e deslocado para outro (a conscientização política e sua mobilização), entrecruzando-se. Outras interseções, cuja redundância só acrescenta à sua relevância, são as camisas da seleção brasileira e os cantos típicos das torcidas de futebol, ubíquos em todos os protestos, onde o “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” substitui o “Eu sou rubro-negro/vascaíno/são paulino…” das arquibancadas. Em outras palavras, no fundo dessa disposição ao sacrifício do futebol vislumbra-se, exatamente, a liturgia, a indumentária e uma legitimidade emocional oriundos do próprio futebol. O “sacrifício heróico” de uma paixão por um ideal político-pragmático, portanto, não é completo, e o imbricamento de falsa consciência e mobilização não se dá num nível tão abstrato, posto que foi às ruas.

 Protesto - Festa de encerramento no Maracanã (Foto: Dhavid Normando/Futura Press)

Tudo que vimos até agora evoca uma comparação muito viva com a hipótese central de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que inverte a lógica marxista da determinação da “superestrutura” pela “infraestrutura”, descrevendo como uma forma ideológica familiar (a religião Calvinista) absorveu e estimulou uma forma infraestrutural (o capitalismo): nas manifestações recentes, uma outra forma ideológica, o futebol e sua linguagem, absorveu e estimulou, simultaneamente, mobilizações por reformas infraestruturais.

Podemos enfim responder à pergunta acima, por que o diálogo entre policiais e manifestantes cariocas na noite de 20 de junho deu-se nos termos “Vamos ao Maracanã!” e “Ao Maracanã, não!” — como o mesmo diálogo explosivo entre policiais e manifestantes mineiros em 27 de junho deu-se nos termos “Vamos ao Mineirão!” e “Ao Mineirão, não!”. Porque ambos os estádios, recentemente reformados, simbolizam a colonização de um rito nacional, e enquanto sítios repositórios desse rito, são res publica, por excelência.



segunda-feira, 1 de julho de 2013

Depois da Rede Globo e do moralismo

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Iniciativas dos movimentos sociais conseguiram superar tentativa de capturar manifestações. Mas para ir adiante, será preciso esforço interpretativo intenso.

Por Alex Moraes

A grande jogada da mídia corporativa brasileira foi ter conseguido nacionalizar a seu bel prazer os protestos que vinham ocorrendo em diferentes cidades do país há meses. Nacionalizar no sentido de apresentá-los como algo que, supostamente, expressava um conjunto difuso e generalizado de insatisfações. A infiltração da Rede Globo na convocação dos protestos abriu as portas das ruas para a mesma classe média moralista que, há pouco mais de meia década, apoiada pela retaguarda oligárquica, tentara promover uma onda golpista contra o governo de Lula.

O relativo êxito inicial da estratégia da rede Globo e de todos os grandes jornais do país nos obriga a pensar na enorme contradição representada pela atual estrutura midiática e nos seus efeitos nefastos quando se trata de reivindicar o aprofundamento da democracia e da participação popular. Referida contradição pode expressar-se nos seguintes termos: do ponto de vista administrativo, o Brasil possui um arraigado federalismo caracterizado por enormes singularidades políticas locais; do ponto de vista social e cultural, o grau de articulação dos movimentos populares, suas redes de alianças e suas demandas — assim como os impactos específicos do capitalismo desenvolvimentista — mudam de forma substantiva em cada região ou localidade. No entanto, continuamos expostos a um sistema de informação hiper-concentrado sob todos os aspectos (geográfico, econômico, político). Não podemos sobrevalorizar o papel das mídias alternativas e das redes sociais nesse contexto. Sua capacidade de desbloqueio da informação e de produção de outros pontos de vista é ainda bastante limitada — mesmo que crescente — e não joga um papel decisivo sobre a informação de massas.

Interpelados pela escalada conservadora, os movimentos sociais mais representativos articularam uma contra-ofensiva. Convocados por João Pedro Stédile (do MST), reuniram-se em São Paulo na semana passada para estabelecer princípios gerais de articulação. Saíram do encontro comprometidos com pautar as manifestações de rua e estabilizar um conjunto de demandas sintonizadas com os processos de luta historicamente gestados no campo popular: reforma agrária, reforma urbana, reforma política, ampliação radical dos investimentos em educação pública, etc. Na primeira grande manifestação desta semana, ocorrida segunda-feira, em Porto Alegre, os efeitos da presença progressista se fizeram notar: “Que paguem os ricos” dizia a enorme faixa à frente da marcha. Detrás dela era possível divisar dezenas de bandeiras de partidos políticos da esquerda, de sindicatos, e grupos libertários. Não estiveram ausentes as críticas abstratas à corrupção e algum ufanismo, mas sua capacidade de expressão reduziu-se bastante em comparação com situações anteriores.

Os grandes meios de comunicação omitem, mas o conflito entre esquerdas e direitas está posto nas ruas. Ele é um dos elementos dinamizadores do debate político em torno aos protestos atuais. Não seria demasiado otimismo afirmar que a cooptação midiática fracassou em seus objetivos estratégicos iniciais. A disputa de ideias está aberta e o debate ideologizou-se à revelia do hino nacional e das bandeiras verde e amarelas. Esta emergente batalha de ideias complexifica bastante o cenário atual. Por um lado, é necessário disputar nas ruas a hegemonia sobre as marchas, pois ali se encontra a única esfera pública massiva ao alcance da ação política transformadora. Por outro lado, é preciso levar adiante um esforço interpretativo que nos permita recolocar os termos do diálogo e das reivindicações. Para cumprir com o segundo objetivo, devemos começar desmontando alguns “a priori” paralisantes, instilados pelos discursos midiáticos na análise do processo político vigente. Os dois tópicos seguintes são uma contribuição neste sentido.

1) Os protestos não se espalharam do centro para o resto do país.

Esta é a interpretação típica dos grandes jornais e vem sendo comprada por alguns jornalistas de esquerda, como Eric Nepomuceno, que faz a cobertura da situação no Brasil para o jornal argentino Página 12. Para as grandes redes de televisão com sede em Rio e São Paulo não resta a menor dúvida de que as coisas se deram mais ou menos assim: poucos milhares saem às ruas num dia e sofrem forte repressão policial; jornalistas são agredidos; as marchas se massificam e o resto do Brasil copia. Qual o risco de adotarmos tal ponto de vista? Podemos cair na armadilha das “demandas difusas”, do gigante recém-desperto e confuso que precisa ser “aconselhado”. Perdemos, então, nossa capacidade de auto-enunciação, de falar por nós mesmos. Basta ter um pouco de boa vontade para constatar que, pelo menos desde o ano passado, vicejam lutas sociais em todas as grandes cidades brasileiras. Tais lutas denunciaram muitas das mazelas que, hoje, são escancaradas nas manifestações multitudinárias. A crítica dos impactos violentos das obras da Copa sobre a vida das classes populares tem sido difundida de forma constante e progressiva pelos Comitês Populares da Copa; a “higienização” das cidades e a privatização dos espaços públicos também foi o eixo de outros tantos protestos, como a derrubada, em vários pontos do Brasil, do mascote da Copa do Mundo. Em Porto Alegre, por exemplo, a “queda do Tatu Bola” em 2012 desatou uma repressão policial indiscriminada com direito a quebra de câmeras fotográficas e agressão física de vários jornalistas. A respeito do preço dos transportes, o Movimento Passe Livre e outros blocos de luta estavam nas ruas desde muito antes das recentes manifestações em São Paulo. Estes coletivos, formados por estudantes secundaristas e universitários, já haviam conseguido reverter o aumento da passagem em diferentes cidades, algumas delas capitais. Naturalmente os processos sociais têm seus ápices de expressão e isto depende de vários fatores conjunturais. A violência policial em São Paulo, muito visibilizada midiaticamente, sem dúvidas facilitou a difusão nacional das demandas por melhorias no transporte coletivo. Não é possível dizer, contudo, que a posterior “interiorização” dos protestos consistiu em mera cópia do movimento paulista. Seria mais pertinente pensá-la como a proliferação de demonstrações públicas de solidariedade que souberam aproveitar-se do momento favorável para veicular propostas políticas locais. Claro, as classes médias “globalizadas” também deram as caras; mas sem conseguir opacar o caráter visceral e o potencial transformador que os protestos deixavam antever.

2) Não existe um “movimento nacional”. Trata-se da emergência conjunta de exigências específicas, localizadas e por vezes conflitantes.

Não estamos defrontados com uma espécie de “corrente nacional”, algo do tipo “todo o Brasil deu a mão”. Esta é a visão daqueles que não vivem cotidianamente as mazelas e clivagens excludentes engendradas pelos contextos urbanos brasileiros; é o ponto de vista de determinado setor da classe média completamente desprovido de um discurso crítico, arraigado em contradições sociais concretas. Para essa classe média, é muito fácil negligenciar as demandas locais e falar da “nação descontente”, como se se tratasse de um coletivo abstrato, unificado em torno de algumas exigências supostamente gerais, mas que na verdade só descrevem o limite de consciência e imaginatividade característico dos grupos dominantes. Quando contingentes significativos da população aproveitam o atual momento de visibilidade pública das ruas para denunciar a violência policial, exercer participação social, sinalizar os limites do sistema representativo atual e exigir, ao fim e ao cabo, dignidade, não estamos falando de coesão, mas sim de contradição. Estes são sintomas de diferenças irreconciliáveis no marco da presente ordem econômica e política. Desmontar a falácia de “um só povo” (a “cadeia nacional”) e resgatar a profundidade das consignas enraizadas na experiência vivida de pessoas concretas demanda que regressemos ao nível local, às nossas próprias cidades e bairros em busca daquilo que foi suprimido pelo discurso midiático em seu afã por nacionalizar — e cooptar — o descontentamento popular.

A democracia brasileira está sendo reaberta a cotoveladas no meio de uma chuva de bombas de gás. Só seremos povo, só poderemos falar em “todos nós” quando — para retomar a consigna zapatista – o acesso à cidadania for generalizado, quando tenhamos incorporado na vida pública aquelas experiências de sociedade, aqueles sofrimentos e angústias cuja relevância política encontra-se postergada. A primeira grande vitória discursiva dos setores populares nestes protestos foi ter deixado bem claro que as “vozes das ruas” precisam ser escutadas antes das vozes do poder econômico estabelecido. Agora trata-se de enunciar necessidades e urgências em termos transformadores, definir quais são essas vozes e quem é o “povo”, evitar a domesticação do discurso, negar as soluções fáceis que só reiteram o poder das instituições de sempre, sem jamais colocá-las em xeque a partir de outras formas de imaginar o futuro.