sexta-feira, 14 de junho de 2013

Grampearam o Mundo (e tem gente achando normal)

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Antonio Engelke

Sabemos pouco, mas o pouco que sabemos impressiona. O jovem Edward Snowden veio a público revelar que a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA, na sigla em inglês), na qual trabalhava, vem monitorando as atividades privadas de cidadãos do mundo inteiro através da espionagem de seus e-mails, conversas por Skype e interações via Facebook. O programa, chamado Prism, não é exatamente novidade. Parte da má fama do governo Bush deve-se a iniciativas que obedeciam ao mesmo princípio: em nome da segurança nacional, da prevenção contra ataques terroristas, sacrificam-se liberdades individuais, violam-se direitos de privacidade. A administração Obama não fez mais do que lhes dar continuidade, o que surpreende apenas os que preferiam minimizar ou ignorar questões como a manutenção da prisão de Guantánamo e a ampliação do uso de drones no Afeganistão.

Fatos desta magnitude e importância geram debates cujos termos são em larga medida estabelecidos pela cobertura jornalística que recebem. Colunistas ocupam aí uma posição privilegiada, pois cumprem a função de avaliar criticamente os eventos, interpretando-os ou conferindo-lhes um sentido que a descrição supostamente neutra de seus colegas de redação é incapaz de prover. Quando a denúncia de Edward Snowden veio à tona, imediatamente ansiei pela opinião do Pedro Doria. Atual editor executivo de plataformas digitais do jornal O Globo, Doria foi um dos pioneiros da internet no Brasil. Autor de 4 livros, co-fundador do extinto site no.com.br e primeiro a fazer um blog jornalístico no Brasil (o saudoso Weblog), Doria especializou-se no cruzamento entre jornalismo, tecnologia e política: foi Knight Latin American Fellow da Universidade de Stanford, pesquisando a relação entre internet e democracia.

Não precisei esperar muito. Sua coluna desta terça-feira, 11 de junho, “Seremos todos espionados”, vai ao assunto. Afirma, em tom realista, que a espionagem digital de cidadãos não é nem exclusividade do governo norte-americano, nem prática passageira, e que tende a generalizar-se nos próximos anos. Expõe a origem de sua infraestrutura técnica: a criação, em meio à “cultura libertária” de empreendedores do Vale do Silício, de algoritmos que permitem identificar e avaliar com precisão a preferência de indivíduos online, permitindo assim a venda de publicidade direcionada. O objetivo primordial dos algoritmos não era espionar ninguém, mas como se mostraram capazes de conhecer em detalhes os desejos e os percursos das pessoas, acabaram servindo “como uma luva” aos propósitos menos nobres do estado. Encerra decretando: “Se é digital, é inseguro por natureza. Nossas vidas serão, cada vez mais, um livro aberto. Para governos. E para outros”.

Há uma verdade aí. Está correto o diagnóstico da inevitabilidade do seqüestro das tecnologias de informação para fins de vigilância por parte do estado. Mas uma coisa é fazer do diagnóstico uma espécie de sentença definitiva e irreversível, que portanto dispensaria de antemão qualquer esforço no sentido de lhe pensar a resistência. Outra, totalmente diferente, é transformá-lo no combustível desta resistência. A julgar pela certeza futura enunciada já no título do artigo – Seremos todos espionados –, Doria fica com a primeira opção. Neste sentido, é sintomático que palavras como “direito” e “democracia”, ou expressões como “liberdades civis”, estejam ausentes de seu texto e, mais ainda, que ele reserve dois parágrafos para descrever o parque tecnológico que a NSA está prestes a inaugurar. Qualificando-o de “invejável”, faz questão de detalhar sua capacidade de processamento: “Um yottabyte equivale a um milhão de exabites. A proporção é esta”. Obviamente, não quer isto dizer que Doria endosse a espionagem levada a cabo pelo Prism; tendo acompanhado diariamente seu trabalho no Weblog durante anos, sei que nem de longe é o caso. Contudo, é impossível não notar o fascínio que transborda da grandiloqüência através da qual ele descreve aquilo que deveria criticar. Tal fascínio, expresso no elogio à capacidade técnica por trás da operação de espionagem, torna-se ainda mais revelador quando levamos em conta todas as urgentes questões às quais o artigo não faz referência. Isto sugere que, neste particular, a imaginação do colunista está em larga medida com o poder, sendo-lhe condescendente, e não contra ele.

É questão de perspectiva. A escolha de olhar este episódio pelo prisma da resistência não condena o pensamento a gravitar em torno de clichês como o big brother orwelliano, tampouco nos limita a um espasmo de indignação moralizante calcado na reivindicação abstrata por liberdade. Podemos, por exemplo, situar seu significado dentro de uma linhagem de eventos históricos que tem em Dreyfuss e Watergate seus casos paradigmáticos. Podemos abrir a reflexão para o paradoxo que a situação de Snowden evidencia: a justiça (o rapaz fez “a coisa certa”) contradizendo o Direito (o rapaz cometeu um crime), assim revelando-lhe o limite. Podemos ainda inscrever o debate que inevitavelmente se seguirá dentro da luta política que vem sendo empreendida por todos aqueles que querem uma internet aberta e livre, como os ativistas ligados às iniciativas A2K (“Acesso ao Conhecimento”) e Creative Commons. Privacidade para a vida privada, transparência para a vida pública. Deveria ser óbvio. Não é.

Doria, contudo, prefere naturalizar a internet como espaço da insegurança, ao invés de vê-la como um terreno de disputa e em disputa, em que a insegurança, como em qualquer outra esfera da vida, é produzida. Reparem no fechamento (de questionamentos, de possibilidades) que o argumento opera: se a internet é “insegura por natureza”, então não há muito o que fazer a respeito. Diante de um tal ambiente, dominado por forças espetaculares que manejam seus yottabytes fora de qualquer controle e verificação, restaria ou a condescendência comodista e desinteressada, ou o exílio online auto-imposto. Coerente, Doria declara a inevitabilidade do fim da privacidade na era da informação digital – mas apenas para sugerir que não há opção senão nos conformarmos em ter a vida devassada pelo desvio de uma tecnologia feita por uma turma que só estava querendo descolar uma graninha vendendo publicidade. Trata-se, em suma, de um convite velado à resignação: menos um relato sobriamente realista da realidade do que um veículo de sua normalização.


 Fonte: Revista Pittacos

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quinta-feira, 13 de junho de 2013

A revolução será mal televisionada



Nos telejornais, uma Polícia mantenedora da ordem e da paz; nas ruas, tiros com balas de borracha, gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, detenções, porrada.


Camila Petroni e Gustavo Menon,


Damos o pontapé inicial em nosso texto fazendo um trocadilho com o título do documentário irlandês, de 2002, dirigido por Kim Bartleyle Donnacha O'Briain, que retrata a derrubada sofrida por Hugo Chávez na Venezuela, em abril do mesmo ano. Em A revolução não será televisionada, os diretores abordam o caráter golpista dos grandes canais televisivos venezuelanos, que aliados à burguesia do país, efetivamente, protagonizaram um verdadeiro Golpe de Estado em Caracas. Nenhum título para o nosso texto caberia melhor, no momento - lembrando que corremos o risco de sermos acusados de vândalos pelo uso da palavra “pontapé”, acima.

Algumas manifestações populares foram organizadas, em São Paulo (e Brasil afora), quando estabelecido para o início de junho de 2013 o aumento das passagens de ônibus, metrô e trem, de R$ 3,00 para R$ 3,20. O governo alega que o valor não subiu acima da inflação acumulada desde o ajuste feito no início de 2011 (medido pelo IBGE, o IPCA – base da inflação oficial -, aponta o acúmulo de 15, 5%. Seguindo o índice, a passagem ficaria em torno de R$ 3,46). Ainda assim, como trazia um manifestante em seu cartaz, em um dos atos nas ruas da cidade: “R$ 3,00 é um roubo, R$ 3,20 é um estupro”. Além dos R$ 0,20 arrancados dos bolsos da população, até quando iríamos suportar as situações precárias nas quais vivemos, isso somente no âmbito do “transporte público” (sem contar os outros milhares de pontos que devem ser ultrapassados, mudados, melhorados)? Quem passa pelos lados da Avenida Paulista esbarra como uma frase, cravada a picho, em uma das entradas dos infinitos túneis paulistanos: “Todo vagão tem um pouco de navio negreiro”. Alguém duvida? Extremamente reflexiva, em vários aspectos.

 

Os atos contra o aumento das passagens organizados, principalmente, pelo Movimento Passe Livre tiveram início no dia 06 de junho. Nas ruas, 4 mil pessoas; na TV, 2 mil, no máximo (algumas publicações da mídia impressa – também com acesso virtual - acusaram 500 participantes, quase 8 vezes menos). Nas ruas, eram sujeitos lutando por condições de vida melhores, tentando superar as catracas, enfrentando o monstro capital. Na TV, eram vândalos, sem causa, sem lenço, sem documento, sem R$ 0,20 a mais para gastar em cada viagem de ônibus, metrô ou trem. Nos telejornais, uma Polícia mantenedora da ordem e da paz; nas ruas, tiros com balas de borracha, gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, detenções, porrada. Choque(s) por toda a parte.

No sétimo dia do mês, nada de descanso (não somos deuses, afinal), mas povo nas ruas, de novo, em massa, percorrendo quilômetros da cidade atrás de dignidade. Novos trajetos, novas vias paralisadas, mais de 5 mil pessoas estacionaram a pauliceia. Desconfortável para uns, necessário para outros. Na mídia televisiva (bem como na maior parte da mídia impressa), metade disso foi anunciado. E a história se repetiu (“como farsa”): PM heróica, poucos milhares de rebeldes soltos por aí e cidadãos-de-bem querendo ir e vir pelas ruas interditadas com pessoas e fogueiras. “Pelo segundo dia seguido, um protesto contra o aumento das passagens de transporte público provocou muita confusão em São Paulo”, é como o âncora de um telejornal de influente emissora abre a matéria sobre a manifestação ocorrida no dia. Continuando, o repórter enviado de helicóptero, aos céus do local onde ocorria a manifestação, pra ver tudo com o distanciamento físico e ideológico recorrentes, afirma que “A Polícia teve que soltar bombas”. Também: “A manifestação de ontem (06 de junho), assustou os moradores da cidade”; seguido de termos como “violência” (da parte dos manifestantes), “vandalismo” e uma série de desqualificações bem aproveitadas no curto espaço de tempo dos 4 minutos médios de uma matéria jornalística. Mencionavam, enfaticamente, os valores dos prejuízos dos vidros de estações de metrôs quebrados, da depredação do carro para sorteio em um Shopping, mas não citavam o rombo que R$ 0,20 centavos por viagem de transporte público causarão ao bolso do estudante, do trabalhador e do sobrevivente de um sistema quase desumano. Também ninguém mencionou, em telereportagens da mass media, a beleza do coro popular convidando as pessoas a juntarem-se, cada vez mais, contra “o aumento” - e contra a exploração, contra a opressão, contra os abusos do capitalismo.

 

Na terça-feira, dia 11 de junho, uma ótima notícia (não para os telejornais): o movimento se fortalecera, cerca de 12 mil pessoas estavam nas ruas (o número apontado pela PM foi de 5 mil) - este é o ponto no qual devemos lembrar da Turquia, que passa por um quadro inspirador de luta popular, desde o dia 31 de maio, que enfrenta o Estado a favor da liberdade (começou na defesa do parque Gezi, que seria destruído). O número de mortos durante os protestos turcos é de 4 pessoas, até o dia 12 de junho, infelizmente, mas erra quem aposta no fim do movimento, mais forte a cada dia. Vale destacar a forte participação de jovens e estudantes no seio do movimento.

Na América Latina, estudantes chilenos preparam para hoje (13 de junho) um protesto contra o governo e a favor do ensino superior público. No país de Allende e Neruda, cabe salientar que o ensino superior é totalmente privado. O movimento estudantil informou, por meio de comunicado, que ocorrerão manifestações em Santiago, a capital do Chile, e nas principais cidades do país.

 http://www.esmaelmorais.com.br/wp-content/uploads/2013/06/pm_estudantes.jpg

Voltando às terras tupiniquins, o ato do dia 11, supramencionado, foi extremamente violento e, aqui, mais uma bifurcação: nos telejornais, a violência foi maior e iniciada por parte dos manifestantes. Na vida real, de carne , osso e olhos ardentes, o povo sofreu na mão de repressão. E a TV reforçando que oito policiais saíram feridos. Pra não sermos injustos, é importante colocarmos que houve telejornalistas e apresentadores de jornais que, apesar de criticarem o “vandalismo”, apontaram o quanto o sistema de transportes públicos da cidade é precário. Uma cena desse dia de protesto foi bastante marcante: manifestantes, parados na faixa de pedestres, são atropelados por um motorista de carro (que fugiu). O fato foi mostrado, em alguns telejornais, com as imagens desfocadas (em outros, mantiveram-se claras). A pulga atrás da orelha perdura...

A mídia, como sabemos através de experiências cotidianas e inúmeros estudos elucidativos, possui influência imensurável na formação da consciência dos seres sociais, debate o qual não aprofundaremos. Mas, brevemente, queremos (re)lembrar o quanto as mudanças reais seriam mais fáceis de ocorrer se a mídia com maior acesso às pessoas fosse popular, transparente, democrática e livre.

“Um cenário de pós-guerra” se configurou na cidade, colocou uma repórter, sem precisar concluir de que lado está a imprensa hegemônica nessa conjuntura de conflitos. A propósito, estamos saturados de números cortados, de manifestantes ocultados. Estamos fartos de informações errôneas chegarem a nós. Até quando as representações televisivas serão tortas? A televisão não será revolucionada? O que nos conforta é saber que as experiências concretas estão sendo vivenciadas por um número cada vez maior de pessoas, ultimamente, na célebre e velha luta de classes.

 Manifestante é detido durante protesto contra aumento da passagem no Rio de Janeiro (Crédito: Marcelo Fonseca / Brazil Photo Press / Agência O Globo)

Com o otimismo da vontade gramsciano, destacamos algumas vitórias populares, ocorridas mesmo sem o apoio da mídia televisiva: algumas cidades como Porto Alegre, Taboão da Serra, Goiânia, Aracajú e Teresina não terão o valor das passagens aumentado. Congelar o valor em São Paulo e Rio de Janeiro são os próximos passos. Outra vitória que podemos considerar são os vídeos feitos por manifestantes ou cinegrafistas diversos, disponibilizados na internet, que mostram vários, senão todos os lados dos protestos.


Camila Petroni, historiadora, assistente editorial e mestranda em História Social pela PUC-SP.

Gustavo Menon, mestre em ciências sociais pela PUC-SP e docente na Faculdade de Ciências de Guarulhos (FACIG).


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Turquia: o ciclo crescente de descontentamento

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Foto: Reflections on a Revolution


Por Muftah (editorial), em 1/6/2013 | Tradução: Coletivo VilaVudu

Os protestos na Turquia entram hoje no 5º dia, com manifestantes tomando as ruas de várias cidades pelo país. Os protestos, que inicialmente visavam a impedir a destruição do Parque Gezi em Istanbul, transformaram-se, por causa da agressão policial, e incluem já manifestações mais amplas, de oposição ao governo da Turquia.

Mashallah News oferece bom balanço do desenvolvimento dos protestos, até agora:

“Em Istanbul, apenas 1,5% da área urbana é ocupada por espaços verdes; na Parque Geziestão nove acres desse total. Na 2ª-feira, chegaram equipes da empresa construtora, e começaram a derrubar árvores, para construir um shopping center. Na 2ª-feira havia ali cerca de 50 pessoas; na 5ª-feira à noite já eram 10 mil, apesar de a Polícia ter usado sprays de pimenta e gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes. Na 6ª-feira, a agressão policial aumentou: a Polícia usou canhões de água e força excessiva, na tentativa de evacuar a praça e impedir que prosseguissem os discursos, cantos, palavras-de-ordem e a montagem de acampamentos.”

Em discurso muito aguardado, hoje, 1/6, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan respondeu ao crescente movimento de protesto. Reproduzindo as mesmas estratégias várias vezes tentadas e sempre fracassadas, de outros ditadores regionais (muitos dos quais já despachados do poder), o primeiro-ministro minimizou o significado das manifestações, rejeitou as demandas dos manifestantes e atribuiu a “agitação” a “outras forças”. EA World View assim resumiu o discurso de Erdogan:

“O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan (…) falando hoje sobre a agressão policial a manifestantes, usou tom desafiador – e disse, dos que se manifestam contra o redesenvolvimento da Praça Gezi, que “há jogadas, aqui (…) Ninguém tem o direito de protestar contra a lei e a democracia.”

Erdogan disse que a Polícia cometeu erros no uso de sprays de pimenta e gás lacrimogêneo contra os manifestantes, e que o Ministério do Interior investigará tudo isso. Mas que a Praça Taksim – onde os manifestantes permaneceram acampados por quatro dias, antes de serem atacados pela Polícia, na 6ª-feira –  não pode ser usada como ‘paraíso seguro’ para manifestações. E insistiu que “organizações ilegais” estariam provocando “cidadãos ingênuos”.

O primeiro-ministro, invocando história e ideologia, disse que manterá os planos para converter o espaço verde do Parque Gezi em um supermercado, que será construído como réplica das tendas militares da era otomana.

Erdogan disse que os que se opõe a “projetos de transformação urbana” querem que “nosso povo viva em favelas”.

Falando em termos mais amplos, Erdogan insistiu que seu governo reflete a vontade do povo e a oposição deve manifestar-se pelas urnas, nas eleições, não nas ruas. Mas mostrou-se cheio de confiança de que vencerá qualquer desafio: “Não tentem competir conosco. Se reunirem 200 mil pessoas, posso pôr um milhão, nas ruas.”

Como era de esperar, o discurso de Erdogan não fez esfriar os protestos, que prosseguem, com grande número de manifestantes nas ruas.

Embora essas manifestações talvez pareçam irrupções isoladas de descontentamento, outros recentes atos de públicos de protestos sugerem outra coisa.

Em dezembro de 2012, houve manifestações contra a demolição de Ince Pastanesi, uma confeitaria histórica em Istanbul. Depois de quase 70 anos de atividade, a loja, como o Parque Gezi, foi programada para ser demolida, também para ser substituída por um shopping center. Apesar das repetidas manifestações públicas no local, que pediam que a prefeitura poupasse a loja, nada conseguiu impedir que o prédio fosse demolido.

Dia 7 de abril de 2013, manifestantes reuniram-se para protestar contra a demolição do histórico Teatro Emek, em Istambul, também demolido para dar lugar a um shopping center. Na ocasião, como agora, a Polícia respondeu com violência:

“A Polícia usou canhões d’água e gás lacrimogêneo, dia 7 de abril, para dispersar milhares de manifestantes, entre os quis o diretor grego-francês de cinema, Costa-Gavras, e vários atores, que haviam viajado a Istambul para defender o icônico Cinema Emek e protestar contra a demolição daquele prédio histórico.

A Polícia já havia bloqueado o acesso à rua lateral onde se localiza o cinema, obrigando os manifestantes a permanecer na avenida İstiklal, no coração do bairro onde se concentram vários cinemas e teatros em Istanbul. Depois de um alerta, de que a manifestação não tinha autorização para se realizar, a Polícia passou a bombardear a multidão com jatos d’água e, segundo testemunhas, com granadas de gás lacrimogêneo.

O crítico de cinema Berke Göl e três outros manifestantes foram detidos, como noticiou o jornal Radikal. Um dos mais conhecidos e respeitados diretores do cinema turco, Erden Kıral, teria desmaiado durante o ataque da Polícia.

Um grupo de 200 manifestantes permanece acampado à frente do prédio da Polícia de Beyoğlu, exigindo a imediata soltura dos que permanecem detidos, segundo o jornal Radikal.

A Fundação Istanbul para Artes e Cultura (İKSV) lançou declaração em que condena o uso de “força excessiva” pela Polícia. “Condenamos a agressão a amantes do cinema que nada fizeram além de tentar protejer a memória cultural de Istanbul”, dizia a declaração.”

Embora essas ações pareçam rejeitar alguma “modernização” ou expor alguma vontade de reviver “velhos tempos”, parece haver aí um conjunto de motivações mais profundas. Como escreveu um blogueiro turco:

“Como se lê nos relatos de Elif Ince, do jornal Radikal, que escreve sobre os eventos no Parque, o movimento #OccupyGezi é um levante urbano contra a elite conservadora turca e suas políticas neoliberais.

Um dos manifestantes explica a Ince que a demolição da confeitaria Inci Pastanesi nunca foi assunto de bolos e docinhos; que os manifestantes que protestaram contra o fechamento do cinema Emek Theater não estavam preocupados apenas com preservar prédios históricos. E que a solidariedade no Parque Gezi Parki não é questão apenas de defender árvores.

Os manifestantes estão acampados no parque porque a cidade é do povo e deve ser governada pelo povo, não pelas decisões e caprichos de um líder político e seus discípulos no governo.’”

Mais uma vez, esse desejo de ser ouvido sobre o próprio ambiente em que se vive é também apenas parte da história. Esforços para modificar hábitos e práticas sociais e culturais também estão despertando resposta desafiadora de muitos turcos. Poucos dias antes do início das manifestações no Parque Gezi, dia 25 de maio, casais turcos manifestaram-se contra os esforços para proibir manifestações públicas de afeto nos trem do metrô. O jornal Huffington Post comentou:

“Dúzias de casais participaram de um ‘beijaço’ numa estação do metrô em Ancara, capital da Turquia, para protestar depois que autoridades do metrô advertiram um casal que se beijava em público.”
A mídia turca noticiou que, no início da semana, autoridades do metrô da cidade divulgaram documento em que pedem que os passageiros “ajam de acordo com regras morais”, depois que câmeras de vigilância interna filmaram um casal que se beijava.”

A questão levou um deputado da oposição a questionar o partido governante, que é partido islamista, e que, como temem os secularistas, trabalha para expandir a influência do Islã na vida dos turcos, única explicação para que autoridades do metrô tenham sido liberadas para difundir regras sobre “comportamentos morais” (…).

E há também a questão da recente proibição, na Turquia, de bebidas alcoólicas. Dia 24 de maio, o Parlamento turco aprovou lei que cria várias restrições à venda, divulgação e consumo de bebidas alcoólicas. Um jornalista turco descreveu as novas proibições como forma de pressão contra os cidadãos, as quais, essencialmente, restringem a liberdade de as pessoas agirem livremente em espaços públicos:

“Na Turquia, enfrentamos um processo de engenharia social ideologicamente motivado, extremamente conservador e socialmente opressivo, que é parte da agenda islamista para o governo do AKP. Esse projeto não tem qualquer legitimidade democrática, porque é violação clara de direitos e das liberdades dos turcos.

Outra prova de que o movimento geral é esse é o que disse o primeiro-ministro Erdogan na convenção de seu partido no Parlamento, dia 28 de maio, ao reagir contra os que diziam que as proibições de bebidas alcoólicas estão relacionadas à agenda dos islamistas. Erdogan disse que “não faz diferença de que religião se trate: a religião estipula não o que é errado, mas o que é certo. Se se trata de estipulação certa, os senhores se oporão a uma lei certa, por ter sido inspirada por pensamento religioso? Será que, para os senhores, uma lei escrita por meia dúzia de bêbados poderia ser válida? Como se admitirá que nossas convicções sejam apresentadas como algo a ser rejeitado?”

Erdogan portanto, declarou abertamente que a proibição de bebidas alcoólicas é, sim, exigência religiosa, e que deseja reformatar a vida em espaços públicos, nos termos do que a religião determina. E avançou: declarou “anti-religião” qualquer um que se oponha à proibição de bebidas alcoólicas alegando direitos e liberdades individuais.

O alívio que alguns sentiram ao ouvir Erdogan dizer, no mesmo discurso, que “os arranjos que se fazem agora não implicam qualquer interferência no modo de vida de pessoa alguma” durou pouco. Na sequência, Erdogan acrescentou que “se você quer beber, leve sua bebida alcoólica e beba-a em casa. Beba o que quiser beber. Nada temos contra isso.”

Com essas palavras, o primeiro-ministro turco disse a segmento considerável da população: não continuem a fazer o que sempre fizeram nos espaços públicos. Basta isso, como grave exemplo de pressão, que ultrapasa em muito o conteúdo e o contexto das leis já aprovadas sobre bebidas alcoólicas.”

Não se trata, pois, só de “destruição de árvores”, de os turcos perderem “bolos e docinhos” ou de desejarem preservar prédios históricos, mas da sensção, que se vai generalizando, de que a vida pública na Turquia está sendo limitada e modelada para atender às exigências de um tipo de perspectiva ideológica. Isso, afinal, parece estar motivando os protestos no Parque Gezi e outras manifestações públicas de desafio ao governo de Erdogan, que já surgem por todo o país. Essas mostras públicas de descontentamento, que se veem no vídeo (em http://vimeo.com/67441445), da noite de ontem, 31 de maio, não dão sinais de estar arrefecendo.

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Fonte: Uninômade

terça-feira, 11 de junho de 2013

“Austeridade”: história de uma fraude teórica

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Como dois economistas conservadores muito influentes omitiram dados e manipularam planilhas, para “demonstrar” que os Estados devem cortar gastos sociais.

Por Alvaro Bianchi

Há anos não se via economistas heterodoxos rindo tão desbragadamente. O motivo é a descoberta de uma falha em uma planilha Excel. Tudo começou quando Thomas Herndon um estudante de pós graduação da University of Massachusetts-Amherst, resolveu apresentar um trabalho de final de semestre criticando o estudo de dois influentes economistas de Harvard, Carmen M. Reinhart and Kenneth S. Rogoff, publicado em 2010 na prestigiada e centenária The American Economic Review. A pesquisa de Reinhart e Rogoff estabelecia uma correlação negativa entre aumento do débito público e o crescimento econômico e conspirava contra o aumento dos investimentos estatais. O jovem Herndon, de 28 anos, não estava satisfeito com os resultados da pesquisa e resolveu trabalhar com os dados dos economistas de Harvard, replicando o estudo. Seus professores consideraram sua proposta típica da arrogância juvenil mas não apresentaram obstáculos, pensando que ao menos ele poderia treinar suas habilidades na tabulação e apresentação de dados econômicos.

Com a carta branca de seus mestres, Hendron arregaçou as mangas e começou o trabalho com os dados que os próprios Reinhart e Rogoff lhe forneceram. Não precisou de muito trabalho para detectar erros na planilha de cálculos. Seus olhos não acreditaram no que viram, chamou então sua companheira e lhe perguntou: “Eu estou vendo errado?”. “Acho que não, Thomas”, foi a resposta que ouviu. O estudante mostrou seus resultados para Robert Pollin, seu professor, o qual imaginou que, como costuma acontecer, o estudante estava errado: “Então exigimos mais dele, e exigimos mais e exigimos mais, e depois de cerca de um mês exigindo eu disse ‘Dane-se, ele está certo!’” (KRADY, 2013.)

A ofensiva ortodoxa

Reinhart e Rogoff são dois expoentes da linha dura ortodoxa, a primeira foi citada 16.647 em artigos acadêmicos desde 2008 e o segundo recebeu 22.910 citações no mesmo período. Ambos já foram assessores do Fundo Monetário Internacional e de organismos governamentais. São respeitados economistas, no topo da carreira, e encontram-se há anos em uma cruzada contra os altos índices de endividamento público nos Estados Unidos e na Europa.

O trabalho de Reinhart e Rogoff impressiona à primeira vista. Reunindo dados de 44 países referentes a um período de cerca de 200 anos a pesquisa incorporou mais de 3.700 observações anuais. Informações econômicas de países de diferentes regimes políticos, graus de desenvolvimento, participação no comércio internacional, instituições, taxas de câmbio e formação histórica foram colocadas lado a lado de modo a permitir um amplo estudo comparativo sobre as relações entre débito público, inflação e crescimento econômico.

Os estudos publicados por esses professores (2010a e 2010b) trabalharam com essa base de dados, tabulando informações sobre um número menor de países: 20 economias avançadas para o período de 1946-2009 e 20 economias emergentes para o período 1970-2009 (cf. 2010b). Os países foram, então, classificados, ano a ano, em uma das quatro categorias de endividamento público previamente estabelecidas por esses autores: menos de 30% do GNP, entre 30% e 60%, entre 60% e 90% e mais de 90%. Os principais resultados da pesquisa podem ser assim resumidos:

1) “enquanto o nexo entre crescimento e débito parece relativamente fraco em níveis ‘normais’ de débito, a mediana da taxa de crescimento para países com débito superior a 90% do PIB é 1% menor do que nos demais.” (2010, p. 573).

2) “a relação entre débito público e crescimento é claramente similar entre mercados emergentes e economias avançadas.” (Idem.)

3) “Não encontramos relação sistemática entre níveis elevados de débito e inflação para o grupo das economias avançadas (entretanto alguns países individuais são exceção, como os Estados Unidos). Em contraste, em mercados emergentes, níveis elevados de débito público coincidem com inflação eleveda.” (Idem.)

Deve-se destacar, entretanto, que Reinhart e Rogoff não se detiveram na análise da direção da relação entre débito e PIB, assumindo que o débito é a variável independente, ou seja, o PIB desaceleraria ou decresceria porque o débito aumenta e não o contrário. Desse modo, simplesmente ignoraram a possibilidade, nesse estudo, de que o débito aumentasse como consequência da desaceleração ou do crescimento negativo do GNP. Os dados nos quais essas conclusões se encontram baseadas podem ser vistos de modo esquemático nas Tabelas 1 e 2 (REINHART; ROGOFF, 2010b, p. 25):

Tabela 1 – Crescimento do PIB e nível de débito
(média da variação anual dos países selecionados)
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Tabela 2 – Inflação e nível de débito
(média da variação anual dos países selecionados)
130503-tabela2

Percebe-se que, de acordo com esses dados a relação entre dívida pública e crescimento econômico não se altera substancialmente nos países enquanto a primeira estiver entre 30% e 90% do PIB. Mas o crescimento econômico cai abruptamente, e nos países avançados se torna -0,1%, quando o deficit público ultrapassa o nível de 90% do GDP. As conclusões apresentadas pelos economistas de Harvard desaconselhariam fortemente o aumento do endividamento como parte de uma política de combate à crise. Assim que ultrapassasse a marca de 90% do GDP a dívida se tornaria uma barreira ao crescimento e não um estímulo.

Por essa razão, segundo Reinhart e Rogoff os governos teriam agido de um modo que impedira o combate eficaz a crise. O débito público cresceu significativamente desde 2007 na amostra dos países utilizadas na pesquisa. Cinco países que vivenciaram “crises financeiras sistêmicas” após 2007 – Finlândia, Irlanda, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos — aumentaram entre 2007 e 2009 os níveis médios de endividamento em 75%, um índice que se aproxima assustadoramente daquele que teve lugar na crise do pós-guerra, quando o débito cresceu um total de 86% nos três anos subsequentes (ver REINHART; ROGOFF, 2009).

Ao contrário do recomendado pelo senso comum, a pesquisa de Reinhart e Rogoff aponta para a conclusão de que o estímulo ao investimento público e o consequente endividamento como parte de políticas anticíclicas conspirariam contra os propósitos desejados. O artigo dos professores de Harvard foi amplamente utilizados pelos defensores da austeridade econômica e seus argumentos influenciaram, nos Estados Unidos, o comitê eleitoral do republicano Mitt Romney nas últimas eleições presidenciais. O debate continuou depois do pleito. No início de 2013, o deputado republicano Paul Ryan, presidente do the House Budget Committee e candidato a vice-presidente dos Estados Unidos na última eleição, apoiou-se fortemente no estudo de Rogoff e Reinhart para advogar cortes nos investimentos sociais. Segundo o deputado:

“Mesmo que a dívida elevada não cause uma crise, a nação poderá atravessar um longo e penoso período de declínio econômico. Um estudo muito conhecido, concluído pelos economistas Ken Rogoff e Carmen Reinhart confirma esta conclusão do senso comum. O estudo encontrou evidências empíricas conclusivas de que a dívida bruta (ou seja, toda a dívida que o governo tem, inclusive a dívida em fundos de investimento do governo) superior a 90% da economia tem um efeito negativo significativo sobre o crescimento econômico. Esta é uma má notícia para os Estados Unidos, onde a dívida bruta superou 100% do PIB no ano passado. (…) Essencialmente, o estudo confirmou que as dívidas maciças, do tipo que nossa nação está no caminho de acumular, estão associadas com ‘estagflação’ – uma mistura tóxica de estagnação econômica e o aumento da inflação.” (RYAN, 2013, p. 78)

O artigo de Rogoff e Reinhart tornou-se, também, referência incontornável para os economistas do Fundo Monetário Internacional (p. ex. KUMAR; WOO, 2010) e da Comissão Econômica Europeia (p. ex. BAUM; CHECHERITA-WESTPHAL; ROTHER, 2012), os quais tem defendido firmemente o corte de investimentos sociais para conter a crise econômica. Enfim, tratava-se de mais um caso de sucesso acadêmico da ortodoxia econômica e seus autores colocavam-se na fila para um futuro Prêmio Nobel de Economia. Isso até Herndon começar sua pesquisa…

O contra-ataque heterodoxo

A primeira coisa que Herndon percebeu é que os dados não eram tão consistentes quanto os professores de Harvard faziam acreditar. Havia importantes lacunas nos dados de alguns países, o que comprometia alguns dos resultados obtidos. Os dados referentes aos Estados Unidos remontavam a 1946, mas para alguns países estavam disponíveis apenas a partir de 1957 e para a Itália somente depois de 1980. Havia, também, alguns saltos e inconsistências nos dados apresentados. Não havia dados da relação débito público/GNP para a França durante o período de 1973 a 1978. E alguns dados simplesmente não eram críveis, como o crescimento do GNP de Portugal entre 1999 e 2000 – assombrosos 25% (HERNDON; ASH; POLLIN, 2013, p. 5-6).

Apresar dos dados não serem plenamente confiáveis, Herndon aceitou-os como eram apresentados e não procurou corrigi-los. Mas os problemas continuavam. O jovem estudante também percebeu que alguns países simplesmente desapareciam das contas em alguns anos. Era o caso da Austrália (1946-1950), Nova Zelândia (1946-1949) e Canadá (1946-1950). A exclusão da Nova Zelândia afetava particularmente os resultados, uma vez que nesses anos ela combinou um deficit público superior a 90% com altas taxas de crescimento econômico, o que contrariava o argumento de Reinhart e Rogoff.

Hendron continuou, então, sua pesquisa, mas sua surpresa só se tornou maior. Ele descobriu que um erro primário de código na planilha utilizada pelos economistas simplesmente excluía os cinco primeiros países em ordem alfabética do cálculo. Ficaram assim de fora das contas Austrália, Áustria, Bélgica, Canada e Dinamarca. Essa exclusão fazia com que o GNP dos países com débito público superior a 90% fosse 0,3 pontos percentuais a mais do que nas contas deReinhart e Rogoff (idem, p. 7).

Por último, Hendron revelou um esdrúxulo procedimento metodológico que atribuía o mesmo peso nos cálculos de Reinhart e Rogoff a coisas muito diferentes. Em suas contas os economistas de Harvard tomavam o GNP de cada país-ano e o alocavam em uma das quatro categorias. A seguir tomavam todas as aparições de um país em uma categoria e faziam uma média aritmética simples do crescimento do GNP desse país nessa categoria. Assim, por exemplo, a Inglaterra aparecia 19 vezes na categoria de débito superior a 90%. Os autores, então tomaram os 19 valores do GNP, estabeleceram a média e obtiveram o resultado de 2,4%. O problema está em que o número de aparições de cada país em uma categoria variava muito. Os Estados Unidos apareciam somente quatro vezes na categoria de débito superior a 90% e nesses anos a média de crescimento foi -2,4%. Ou seja, o número de anos nos quais um país entrava em uma categoria não era um fator de ponderação.

O impressionante é que Reinhart e Rogoff não justificaram sua decisão de estabelecer a média por país e não por país-ano, como seria mais adequado. Mas as distorções provocadas por esse procedimento eram enormes. Por exemplo, a já citada Inglaterra teve, como visto dívidas grandes, superiores a 90% do GNP durante um longo período de tempo, mas conseguiu um crescimento médio de 2,4. A Grécia teve um elevado deficit, superior a 90%, durante o mesmo número de anos – 19 – e também obteve neles um crescimento médio positivo – 2,9%. Por outro lado, a Nova Zelândia teve em apenas um único ano um deficit superior a 90% e nele amargou uma queda de -7,6% do GNP. Como os anos não foram ponderados, nas contas de Reinhart e Rogoff um ano da Nova Zelândia teve um impacto maior nos resultados obtidos que a soma de 19 anos da Inglaterra com os 19 anos da Grécia!
Identificados os erros, Hendron pôde refazer os cálculos. Estabeleceu, primeiro uma metodologia que ponderasse o número de anos que cada país comparecia em uma dada categoria, corrigiu o erro de código da planilha e as exclusões de países e anos, bem como alguns erros de digitação de dados que conseguiu detectar. Em nenhum momento Hendron substituiu dados ou acrescentou outros que não estivessem previamente na base de dados de Reinhart e Rogoff. Tratou-se, assim, de uma replicação rigorosa da pesquisa corrigindo os sérios problemas metodológicos que ela apresentava. Os resultados obtidos podem ser apreciados na Tabela 3.

Tabela 3 – Crescimento do PIB e nível de débito (1946-2009)
(variação anual dos países selecionados)
130503-tabela3

Como visto, em vez de uma queda de -0,1% no GNP, os países com um endividamento superior a 90% do GNP tiveram um crescimento médio de 2,2%. Trata-se de um crescimento menor do que os países menos endividados, mas, ainda assim, uma elevação do produto. Os dados não poderiam, da forma apresentada por Herndon ser utilizados pelos defensores da austeridade econômica como até o momento foram aqueles expostos por Reinhart e Rogoff.

Quanta precarização?

Embora em 2012 os Estados Unidos tenham dado alguns sinais de recuperação econômica, a crise econômica está muito longe de ser superada. A resposta que tem sido dada combina aumento do deficit público, utilizado para salvar bancos e grande corporações, com cortes em investimentos sociais. O governo Barack Obama, o mesmo que destinou U$ 400 bilhões na operação de resgate do Fannie Mae e do Freddie Mac e destinou outros U$ 968 bilhões para salvar as grandes corproações por meio do American Recovery and Reinvestment Act of 2009, propôs cortes substanciais nos principais programas de assistência aos trabalhadores o Social Security e o Medicare.

A precarização do trabalho aumentou consideravelmente nos últimos anos, sem que as inciativas governamentais, voltadas a proteger as corporações em vez dos trabalhadores, tenham minimizado os efeitos perversos da crise sobre a vida dos mais pobres. Generalizaram-se os casos de lay-off, como na New York State Thruway Authority onde 234 trabalhadores perderam seus empregos em março. Em 2012, segundo o Bureau of Labour Satistics, houve 6.051 casos de layoffs que resultaram na separação de 1.152.258 pessoas de seus postos de trabalho, um número superior ao do ano anterior. Também se tornaram cada vez mais frequentes os casos dewage theft – o subpagamento ou não-pagamento de salários devido – principalmente no setor de restaurantes e na construção civil.

A pergunta que não quer calar é aquela feita por Dean Baker, do Center for Economic and Policy Reasearch: “Quanto desemprego foi causado pelo erro de aritmética de Reinhart e Rogoff?”


Alvaro Bianchi é cientista político e co-editor do Blog Convergência

Referências bibliográficas

BAUM, Anja, CHECHERITA-WESTPHAL, Cristina D.; ROTHER, Philipp. Debt and Growth: New Evidence for the Euro Area. ECB Working Paper, n. 1450, Jun. 28, 2012. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2094998

BAKER, Dean. How Much Unemployment Was Caused by Reinhart and Rogoff’s Arithmetic Mistake? Beat the Press, Apr. 16, 2013. Disponível em: http://www.cepr.net/index.php/blogs/beat-the-press/how-much-unemployment-was-caused-by-reinhart-and-rogoffs-arithmetic-mistake

HERNDON, Thomas; ASH, Michael; POLLIN, Robert Does High Public Debt Consistently Stie Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff. Working Paper Series/Political Economy Research Institute/University of Massachussets-Amherst, n. 322, Apr. 2013.

KRUDY, Edward. How a student took on eminent economists on debt issue — and won. Reuters, New York, Apr 18, 2013. Disponível em: http://in.reuters.com/article/2013/04/18/global-economy-debt-herndon-idINDEE93H01120130418

KUMAR, Manmohan; WOO, Jaejoon. Public Debt and Growth. IMF Working Papers, n. 10/174, p. 1-47, Jul. 2010. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1653188

REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S.. The Aftermath of Financial Crises. The American Economic Review, v. 99, n. 2, p. 466-472, May 2009.

REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S.. Growth in a Time of Debt. The American Economic Review , v. 100, n. 2, p. 573-578, May 2010a.

REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S.. Growth in a Time of Debt. Working Paper National Bureau of Economic Research, n. 15639, 2010b.

RYAN, Paul. (2013). The Path to Prosperity: A Blueprint for American Renewal. Fiscal Year 2013 Budget Resolution. Washington D.C. House Budget Committee: 2013.



segunda-feira, 10 de junho de 2013

Caso Manning: sinal da decadência americana?

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Protestos em Fort Meade, onde Bradley Manning permanece detido

Se condenarem soldado que denunciou horrores da guerra, EUA atingirão liberdade de imprensa e confirmarão declínio de sua democracia.

Glenn Greenwald, entrevistado por Amy Goodman, do Democracy Now | Tradução: Cauê Seignemartin Ameni

Começou semana passada (3/6) no Fort Meade, sede da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, um dos mais importantes julgamentos na recente história daquele país. Após 1.100 dias detido em cativeiro militar, acusado de entregar mais de 700 mil documentos para o site Wikileaks, o soldado Bradley Manning, hoje com 25 anos, responderá em corte marcial 22 acusações, entre as quais “cooperação com o inimigo (Al-Qaeda)”, o que pode levá-lo a prisão perpetua. Em audiências preliminares, em março deste ano, Manning reconheceu ser responsável por um dos maiores vazamentos militares dos últimos tempos. Frisou, porém, que seu intuito era de mostrar ao publico norte-americano “o preço da guerra”, esperando que pudesse com isso “desencadear um debate público sobre a política externa” dos EUA. Manning declarou-se culpado por dez acusações, que poderiam resultar numa pena máxima de vinte anos de prisão. Entretanto, em vez de ponderar os fundamentos da defesa, os promotores militares parecem dispostos a condenar o ex-soldado a uma modalidade especialmente fúnebre de prisão perpétua — na qual proíbem-se inclusive futuras ações de revisão da pena.

No último sábado (1º/6), cerca de 2 mil pessoas reuniram-se perto do forte, para protestar contra o processo, que deverá estender-se pelos próximos três meses. Muitas adotaram o slogan “Eu sou Bradley Manning”. David E. Coombs, advogado do réu, agradeceu ao apoio, principalmente dos poucos jornalistas que vêm cobrindo os passos do processo. Parte deles já se deu conta do que está em jogo. Ed Pilkington, do The Guardian, destacou que a eventual condenação de Manning colocará em risco a atuação profissional dos jornalistas. Estaria criado “um precedente sinistro, que vai enfraquecer a liberdade de expressão e transformar a internet em uma zona de perigo.” Laurence Tribe, professor de Harvard, considerado pelo jornal a mais importante autoridade de direito constitucional nos EUA, e ex-professor do presidente Barack Obama, disse ao Guardian: ”Acusar qualquer indivíduo do gravíssimo crime de “ajudar o inimigo”, com base em nada além do fato de que postou informações na web e assim ‘deliberadamente deu informações de inteligência” para quem pode ter acesso a elas, de fato parece abrir novos caminhos perigosos.”

A mesma ameaça à liberdade de expressão foi debatida, de forma ainda mai profunda, por Gleen Greenwald, advogado constitucionalista e jornalista do The Guardian que vem cobrindo há muito tempo o caso de Manning. A seguir, a entrevista que ele concedeu a Amy Goodman, no canal de WebTV norte-americano Democracy Now. (Cauê Seignemartin Ameni)

Eu queria analisar algumas das frases de Bradley Manning durante as audiências preliminares. Ao testemunhar diante de um tribunal militar, o soldado descreveu sua motivação para vazar os documentos: “Eu acreditava que se o público em geral, especialmente os norte-americanos, tivessem acesso a informação, poderia desencadear um debate sobre o papel dos militares e da política externa”. E acrescentou: “acredito que esses vazamentos não atingiriam os Estados Unidos, seriam apenas embaraçosos”. Ele disse ter levado as informações ao Wikileaks só depois de elas terem sido rejeitada pelo Washinton Post e o New York Times. É muito interessante.

Glenn Greenwald: Bem, como Manning está ameaçado por pena de prisão perpétua, há quem ponha em dúvida sua sinceridade. Mas o que me chama atenção é que  nas gravações telefônicas, feitas pela Justiça e publicadas há um ano, o soldado falava a alguém de sua total confiança e dizia a mesma coisa: desiludiu-se com a guerra do Iraque quando descobriu que o exército dos EUA não detinha terroristas, mas simples oponentes do governo de Maliki; e foi ignorado quando informou este fato a seu superior. Ele deparou-se com documentos que revelavam engano, conduta criminosa  e violência, e não poderia mais, em são consciência, participar deles ou escondê-los. O que praticou foram atos de extrema consciência e  heroísmo, sabendo que estaria sacrificando sua própria liberdade. E o que me parece muito convincente é o fato de seu depoimento tão claro e firme, diante dos juízes, corresponder ao que ele pensava ser uma conversa privada, na que explicou suas atitudes.

Qual o significado da pena que os promotores militares estão pedindo para Bradley Manning — prisão perpétua sem possibilidade de apelar [life without parole]– e o que ele disse no tribunal, durante as audiências preliminares?

Glenn Greenwald: Há diversas questões relevantes. A primeira, e mais óbvia, é que se trata de retaliação dos promotores. O governo nunca identificou qualquer dano substancial causado pelo vazamento de informações de que Mannig admitiu ser responsável. Certamente, ninguém morreu com a aparição dos documentos, embora o governo alardeasse, inicialmente, que o Wikileaks e o delator estavam com as mãos sujas de sangue. Muitas investigações desconstruíram essas alegações. Assim, a ideia de passar décadas na prisão, sem direito sequer a apelar da pena, é algo estarrecedor.

Mas, para ser ainda mais específico, a teoria que o governo desenvolveu, é ameaçadora. Reconhece-se que Manning nunca se comunicou com, “o inimigo”,  a Al-Qaeda; e que não há evidência alguma de que ele quisesse beneficiar esta rede (se quisesse, poderia ter vendido as informações que tinha por muito dinheiro). Todas as evidências indicam que Manning agiu exatamente pela razões que confessou: a intenção de desencadear uma reforma e chamar a atenção pública para estes abusos. O governo está desenvolvendo a teoria segundo a qual basta o vazamento ter caído nas mãos da Al-Qaeda, e o fato de  a organização ter interesse nele, para caracterizar colaboração com o inimigo. O que converte, em essencial, toda denúncia de irregularidade em uma forma de traição. Há evidências de que Osama Bin-Laden estava muito interessado, por exemplo, nos livros do Bob Woodward — que têm mais informações sigilosas que os vazamentos do Manning. Isso significa que não apenas os vazamentos de Woodward, sobre a alta cúpula do governo, mas o próprio Woodward poderiam ser acusados de colaborar com o inimigo. É uma teoria ameaçadora para o jornalismo investigativo.

A juíza do caso, Denise Lind, fez uma interessante pergunta aos promotores. “Vocês teriam ido atrás de Manning se ele tivesse entregado essas mesmas informações ao New York Times?

Certo, e ele disseram que “certamente!”

Eles disseram “Sim, senhora”.

Exato. E há também indicações de que essa teoria poderia ser usada contra jornalistas. Claro que eles não estão submetidos às leis da justiça militar. Porém, mesmo assim, há rumores de que o governo Obama teria seguido indicações de seu antecessor George Bush e decidido que, se houver jornalistas envolvidos no vazamentos de informações sigilosas, ou mesmo encorajando estes vazamentos, eles também poderão ser processo pela Lei de Espionagem, por colocar supostamente em perigo a segurança dos Estados Unidos. Por isso, não se trata de uma ameaça a Bradley Manning, mas a toda a ação do jornalismo investigativo. Se você falar com os jornalistas investigativos — mesmo os do establishment, como Jim Risen, do New York Times, vencedor do Prêmio Pulitzer e o repórter  investigativo mais premiado dos EUA — verificará que há um efeito de esfriamento que atinge todo o processo de coleta de informação sigilosa.

Você poderia falar sobre a cobertura da mídia para este processo?

O fascinante é que muitas pessoas competentes vêm cobrindo passo a passo este julgamento, e quase nenhuma delas trabalha para um meio de comunicação importante. Há jornalistas independentes, como Kevin Gosztola, que escreve para o blog Firedoglake. Também há Alexa O’Brien, uma jornalista independente que escreve na internet e cobre suas próprias despesas operando de forma autônoma e é a melhor fonte na cobertura do processo.

The Guardian, o jornal para o qual escrevo, tem feito um bom trabalho, enviando repórteres a maior parte do tempo para cobrir o processo. Por um bom tempo, o New York Times ignorou o julgamento. O jornal que enfrentou o ex-presidente Nixon no escândalo dos Pentagon Papers, e que se beneficiou dos vazamentos de Daniel Ellsberg e também dos de Bradley Manning, simplesmente ignorou o caso. Sentiram-se envergonhados, quando finalmente enviaram alguém para somar-se aos jornalistas independentes que questionavam “Por que o New York Times não esta aqui?”. Em certo momento, o próprio editor público do NYT assumiu estar envergonhado pelo fato de o jornal não ter feito nada para cobrir o julgamento.

Eu costumo obter minhas informações de jornalistas independentes que também colaboram com o The Guardian, como Kevin Gosztola e Alexa O’Brien. Mas em geral, no noticiário do estabilishment quase não se fala nada. Acho que o nome Bradley Manning foi mencionado na MSNBC uma vez nos últimos dois anos, e talvez apareça eventualmente em um programa matinal de fim de semana.

E sobre as transcrições de decisões que está acontecendo no tribunal?

A ironia desta iniciativa, do que levou Bradley Manning a fazer o que fez, é que praticamente todos os atos do governo norte-americanos estão imersos em segredo. Tudo o que tem relevância! Por isso, as denúncias e vazamentos acabam sendo a única forma de descobrir o que nosso governo esta fazendo. O próprio caso de Manning, aliás, revela como é verdadeira essa analise. Há mais segredos nesse processo do que houve  mesmo sobre a base militar de Guantánamo, no governo Bush. Os autos são constantemente mantidos em segredo. Alexa O’Brien teve que transcrever o depoimento de Manning utilizando instrumentos rudimentares. Estamos diante de uma afronta à Justiça, que no fundo expõe os motivos que levaram Manning a agir.

Você acha que as decisões da Suprema Corte sobre a vigilância estão relacionada a isso?

Certamente. Em 2008, o Congresso, na época sob maioria do Partido Democrata, aprovou uma lei aumentando enormemente o poder de vigilância e permitindo que o governo norte-americano vigie e escute as conversas dos cidadãos, sem a necessidade de mandado judicial. Imediatamente, a União pelas Liberdades Civis nos EUA (American Civil Liberties Union ACLU), entrou com ação judicial pela inconstitucionalidade da lei. A mera existência deste poder de escutar é completamente prejudicial, alegam jornalistas e ativistas dos direitos humanos. Cinco anos depois, a Suprema Corte disse que, como o programa de espionagem continua sobre sigilo, ninguém pode provar que está sendo vigiado e, portanto, ninguém tem legitimidade para abrir processo. A Suprema Corte afirma, no fundo, que não permitirá o questionamento à lei, ainda que esta viole a Constituição.

Isso tem acontecido com frequência. O governo conseguiu, até o momento, blindar a lei e sua própria conduta, isolando-as do que se supõe serem as garantias de responsabilidade e transparência – no processo judicial e na cobertura da mídia, assegurada pela Lei de Liberdade de Informação [Freedom of Information Act, FOIA]. Por isso levantou-se uma verdadeira muralha impermeável de sigilo, que usa a instituição destinada a evitar esse tipo de problema. É isso que torna denúncias como as de Manning ainda mais necessárias.E é por isso que o governo esta tão empenhado em travar essa guerra, porque os vazamentos são a única luz que ilumina o que está fazendo. Os  interessados em estigmatizar os denunciantes como ilegais teriam muito mais argumentos se houvesse  instituições legítimas agindo para assegurar a transparência que as leis supostamente garantem. Porém todas elas foram bloqueadas falharam, o que torna as denúncias mais indispensáveis e a guerra contra os vazamentos mais odiosa.

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*Glenn Greenwald, advogado constitucional, é também colunista e blogueiro do The Guardian. Autor de With Liberty and Justice for Some: How the Law Is Used to Destroy Equality and Protect the Powerful