quinta-feira, 30 de maio de 2013

A Cisma do Bosta

http://revistapittacosdotorg.files.wordpress.com/2013/05/400865_3195695708814_1509045298_n.jpg


Joãozinho do Rio

Há alguns dias atrás os cariocas foram surpreendidos por um episódio no mínimo curioso, no qual o prefeito da cidade, Eduardo Paes, agrediu com socos um cidadão conhecido pelos seus como Botika. A motivação para a agressão, segundo veiculado nos jornais e pelo próprio Botika em seu perfil numa rede social, se deu em virtude de alguns xingamentos – o mais notório “bosta” – proferidos por ele contra o prefeito, que estava jantando com amigos no mesmo restaurante japonês que o seu desafeto-relâmpago. Não se sabe se ambos pediram o mesmo prato. Sabe-se, no entanto, que divergiam sobre a forma como a cidade do Rio de Janeiro deveria ser governada e, alguns saquês mais tarde, deu-se as vias de fato.

Na grande mídia, a “cisma do bosta” ficou entre o obscurecido e o minimizado, na cor marrom que também define nossa imprensa. Já nas redes sociais o tratamento dispensado ao episódio se situou dentro do velho padrão maniqueísta que costuma caracterizar as intervenções/opiniões na internet: preto ou branco. O artista, para alguns, se tornou herói. Para outros, um moleque que não tinha o direito de fazer o que fez, da forma que fez, no lugar onde fez. No geral, o debate, se é que podemos chamá-lo assim, parece concentrado na ideia de certo ou errado. Ou de quem está menos errado.

Qualquer um já deve ter experimentado algo semelhante na infância. “Ele me bateu”. “Não, pai, ele que começou com o xingamento”. Eu passei por isso inúmeras vezes quando era garoto. Meus pais sempre colocavam os dois de castigo. Mas não estamos falando de crianças. E eu, particularmente, não quero falar nem mesmo de adultos com posturas infantis, como são ambos os “meninos mimados” e bem nascidos da zona sul carioca que protagonizaram esse patético episódio. Meu ponto é outro, que não trata do entrevero entre indivíduos privados, mas da vida pública e alguns de seus aspectos simbólicos.

Em virtude dos megaeventos que acontecerão no Rio de Janeiro em futuro próximo, a cidade tornou-se objeto de grande interesse político e empresarial. Até aí, nada a declarar – afinal, a reestruturação da cidade é uma demanda centenária e, sob os auspícios dos megaeventos, uma oportunidade salutar. Contudo, vê-se muito pouco acontecendo nos termos de um legado para a cidade e sua população. Ou melhor, até se vê, mas não da forma imaginada pelos cariocas regulares que não pertencem à família de Eike Batista ou que não são acionistas da Odebrecht. O desapontamento daqueles que, tardiamente, se deram conta da orgia especulativa que tomou conta do Rio é evidente. E esse desapontamento, no geral, quando ganha corpo sob a forma de protestos, é respondido com truculência ímpar. O Rio tem sido, à duras penas, mantido calado à força. Na base do spray de pimenta pra classe média e das armas empunhadas contra os favelados durante as remoções.

 http://revistapittacosdotorg.files.wordpress.com/2013/05/ph1369680299x9621.jpg

Apenas a título de ilustração, no início de maio acompanhei uma pesquisadora canadense que estuda os megaeventos no mundo. Visitamos uma série de lugares afetados direta ou indiretamente por esse processo. O grau de obscurantismo é inacreditável. A ponto de sermos impedidos de tirar uma simples fotografia de um canteiro de obras, situado próximo à Central do Brasil, onde estão erguendo prédios para alocar parte dos moradores que serão removidos do morro da Providência. E estávamos numa via pública. Isso não impediu que fôssemos violentamente embarreirados pelos seguranças da obra – segundo os quais tinham ordens superiores para assim procederem. A episódios como esse somam-se inúmeras denúncias de superfaturamento e corrupção, que não vêm ao caso serem comentadas. Não aqui. Independente disso, parece evidente que o processo de reestruturação da cidade é imposto de cima pra baixo, sem qualquer tipo de reflexão, diálogo ou preocupação com a coisa pública.

Nesse contexto, algumas esquizofrenias acabam por emergir. A Aldeia Maracanã foi uma delas. Quem mora no Rio e conhece aquela região sabe que o prédio não tem nada de indígena. Estava simplesmente abandonado. Caindo aos pedaços. Ninguém reclamaria de sua derrubada em uma situação normal – embora a arquitetura do prédio, de grande beleza, ainda pudesse ser resguardada com uma reforma. Mas então por que fizeram tanto estardalhaço por uma construção quase em ruínas? Seriam aquelas pessoas ingênuas? Ou maldosos oposicionistas políticos?

Para mim, Joãozinho do Rio, flâneur por opção e pitaqueiro por esporte, tanto a Aldeia Maracanã quanto as reações sobre a “cisma do bosta” espelham uma necessidade da cidade falar. Uma vocação nossa. As pessoas não lutaram por um prédio, mas por um símbolo. As pessoas não defenderam uma agressão verbal contra o Dudu, sujeito privado, mas um grito público contra sua administração particular. Gritaram contra o silêncio que vem sendo imposto goela abaixo dos cariocas e que, mês a mês, tem sido de cada vez mais difícil digestão.

 http://revistapittacosdotorg.files.wordpress.com/2013/05/paes.jpg

É por isso que, no caso específico da discussão no restaurante chique do Jardim Botânico, as reações, em sua maioria favoráveis ao Botika, espelham apenas superficialmente uma opinião sobre o episódio em si. A “cisma do bosta” tem um quê de vingança, de revolta – não sobre sujeitos privados, mas públicos, encarnados nas duas figuras que digladiaram num domingo tedioso. A transformação do xingamento de um cidadão nos socos do prefeito não diz respeito apenas a Botika e Paes. O episódio espelha dramaticamente o modelo de Rio de Janeiro em que atualmente vivemos. O modelo do silêncio. O modelo da força. O modelo da grana. O modelo em que um “princípio de desentendimento físico” – segundo as palavras de Eduardo Paes – é principiado pelo próprio poder público toda vez que uma voz dissonante se faz ligeiramente ouvir. A “cisma do bosta” foi um desses eventos espetaculares em que o micro traduz o macro. A infantilidade etílica do protesto, num momento de baixa autocensura e, ao mesmo tempo, da possibilidade de se fazer ouvir diretamente por uma autoridade que se recusa a ouvir algo mais que o tilintar das moedas no cofrinho, retrata, de forma triste, lamentável e caricata, um problema muito sério.

Se Botika agiu como um menino mimado, chamando o prefeito de bosta, ele está duplamente errado. Eduardo Paes não é um bosta. Provavelmente é um verme. Uma Taenia solium que parasita um Rio de Janeiro cansado da carne do porco orwelliano gordo e burguês.  E esse verme, que se alimenta do vigor da nossa cidade, insiste em nos tornar politicamente anêmicos. É por isso que manifestações tristes e pálidas como as de Botika ganham cor, mas não a cor marrom da mídia, tampouco o preto-ou-branco da internet. A cor é vermelha – vermelho-sangue – da indignação pública, mas também da violência com que a indignação pública é tratada por essa bosta de prefeito que saiu do nosso próprio rabo – não esqueçam – nas últimas eleições.



quarta-feira, 29 de maio de 2013

Megaeventos e "uma limpeza urbana injustificada''

http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2013/05/600x380xDossie1_site.jpg.pagespeed.ic.NDGXpwPL00.jpg


Em entrevista, a cientista política Sônia Fleury diz que os processos das remoções no Rio de Janeiro têm tido um impacto muito grande nas relações sociais.



A reestruturação urbana do Rio de Janeiro irá remover “cerca de 30 mil pessoas, dando prioridade para investimentos empresariais e negócios”, disse Sônia Fleury à IHU On-Line. Para ela, “trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente muito violento”.

Ao comentar os dados do documento Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro, publicado recentemente, Sônia assinala que haver uma “concentração das obras do PAC em certas áreas da cidade, que não são exatamente nas quais as pessoas estão morando. De certa forma, há um deslocamento dessa população pobre para essas áreas mais longínquas das cidades, o que representa perda em termos de transporte, horas e gastos para essa população chegar aos locais de trabalho”.

Para a realização dessa reestruturação, assegura na entrevista realizada por telefone, foi criado um “projeto de segurança pública e de investimento nas favelas, especialmente nessas que têm uma interface maior com a zona onde irá haver os eventos da Copa: as UPPs”. A cientista política acompanha a ocupação militar nas favelas e enfatiza que ela não está “acompanhada de um avanço nos serviços e nos direitos de cidadania”.
E esclarece: “A suposta integração da população à cidade, na medida em que ela é marginalizada e favelada, está acontecendo através do comércio, ou seja, entra o BOPE e, em seguida, entram os serviços formalizados”.

Sônia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutora em Ciência Política pela mesma universidade. Atualmente coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública, da Fundação Getúlio Vargas – FGV.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as novidades apontadas no documento "Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro"? 

Sônia Fleury - A importância do documento é agregar várias informações que a cidade não está tendo conhecimento, porque elas não têm sido discutidas na mídia, a prefeitura não presta contas, e porque não há um processo transparente e participativo. Então, a grande importância desse relatório é mostrar como estão sendo feitas essas remoções e como esse tipo de processo de reurbanização tem violado os direitos dos moradores e direitos em geral, tais como os de participação, de informação e de propriedade.

 

Os dados do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas revelam que o número de atingidos chega próximo de 30 mil pessoas. Como está acontecendo o processo de remoção? Em que regiões há mais remoção e para onde as pessoas foram removidas?

Estão para ser removidas cerca de 30 mil pessoas, sempre dando prioridade para investimentos empresariais, negócios, com prejuízo para os próprios atletas, que estão tendo de deixar o país porque foi fechada a Oficina do Delamari. Então, não se trata de uma lógica que beneficia o esporte, a cidadania; é muito na esteira dos grandes empreendimentos imobiliários.

Há todo um circuito que vai nessa linha do BRT, do transporte rápido para a zona oeste, na Barra da Tijuca, e que tem envolvido várias comunidades. Há contralaudos: as pessoas têm tentado resistir apresentando outros laudos técnicos que a prefeitura não necessariamente aceita. É um processo muito autoritário.

O que chama a atenção é a falta de discussão com a população. Trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente, muito violento. Os técnicos marcam com as iniciais da Secretaria Municipal de Habitação as casas que terão de ser removidas. Os órgãos públicos assim como alguns vereadores e o Ministério Público têm tentado defender as populações de situações mais arbitrárias, mas não têm sido muito efetivos.

A senhora mencionou recentemente haver um desrespeito ao Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro por conta dos interesses imobiliários. Pode nos explicar em que sentido este Plano Diretor é alterado? Como são planejadas as reestruturações urbanas e como as remoções impactam no planejamento urbano das cidades?

A Constituição havia previsto os direitos à moradia, nos itens dos Capítulo 182 e 183. Mais tarde, o Estatuto da Cidade, de 2001, reforçou esses itens, tomando o Plano Diretor como sendo o principal instrumento de um planejamento participativo da cidade, o que não está acontecendo. Ou seja, as decisões estão sendo tomadas sem nenhuma participação da sociedade, como estava previsto na composição de Planos Diretores. A ideia era de que a sociedade fosse ouvida, que fossem discutidas alternativas.

Há várias manifestações de institutos de arquitetos e de engenharia discutindo quais são as soluções não necessariamente para as remoções, mas, por exemplo, se se decide fazer um píer em “Y”, vários urbanistas, arquitetos e institutos mostraram que isso será muito prejudicial para a cidade, porque os transatlânticos que vão aportar aí nesse local vão aportar a vista da baía. Eles apresentaram uma proposta alternativa, mas ela não foi levada em consideração. Não há um processo a ser seguido e não estou falando só das remoções, mas de todas as decisões da cidade.

 

Nesse processo de reestruturação da cidade, há a possibilidade de se criar novas favelas?

O dossiê mostra que há uma concentração das obras do PAC em certas áreas da cidade que não são exatamente nas quais as pessoas estão morando. De certa forma, há um deslocamento dessa população pobre para essas áreas mais longínquas das cidades, o que representa perda em termos de transporte, horas e gastos para essa população chegar aos locais de trabalho.

Em alguns lugares estão sendo feitas obras do PAC dentro das próprias comunidades, mas na zona oeste há um deslocamento de populações para áreas mais longínquas. Está ocorrendo uma limpeza urbana, às vezes de forma totalmente injustificada. Por exemplo, no Morro da Providência, onde tem o projeto do Porto Maravilha, algumas famílias foram removidas para um teleférico, mas outras foram removidas para áreas que têm casas sólidas, áreas que não possuem nenhum risco.

Como acontece a distribuição dos recursos? Existe algum critério? Em que regiões do Rio de Janeiro se concentram os maiores investimentos da Copa do Mundo?

Tanto na zona oeste como na área do porto. Nesta última, há investimentos de alto vulto que melhoram a cidade em vários aspectos, tal como a área central, que era deteriorada. Não há a menor dúvida de que é a recuperação de uma área importante. Agora, que tipo de recuperação está se discutindo? Ali é uma área que tem história. Vai se preservar essa história? Por exemplo, ali há a Pedra do Sal, onde surgiu o samba. Vamos cortar essa história como foi feito com a urbanização na reparação do porto na cidade de Buenos Aires, que não tem nenhuma conexão com o resto da cidade e se criou um bairro de milionários?

A nossa ideia era de que, se se pudesse ter uma reurbanização, então que se preservasse essa característica. Não parece que isso vai acontecer. A área de terras públicas, como mostra o dossiê, será ocupada com grandes apartamentos, enquanto poderia ter sido usada para reassentar populações de favelas que vivem em áreas de risco. Mas, ao contrário, é uma área pública que está sendo cedida para investimentos empresariais. Grande parte daquelas terras do centro, das áreas onde irão ser construídos investimentos imobiliários, são áreas que o governo federal repassou para a prefeitura e agora serão vendidas.

Além dos problemas de habitação, quais são os principais impactos sociais das obras da Copa para as cidades que sediarão os jogos?

Para a realização disso, criou-se um projeto de segurança pública e de investimento nas favelas, especialmente nessas que têm uma interface maior com a zona onde irá haver os eventos da Copa: as UPPs. Estou acompanhando esse processo em algumas favelas e o que se vê é que há um projeto de tomada do território pela Polícia Militar, mas isso não vem acompanhado de um avanço nos serviços e nos direitos de cidadania.

Então, a suposta integração da população à cidade, na medida em que ela é marginalizada e favelada, está acontecendo através do comércio, ou seja, entra o BOPE e, em seguida, entram os serviços formalizados.
A população não está sendo preservada, ela não pagava quase nada por esse serviço, porque usavam “gatos” e, de repente, tem acesso a esses serviços sem ter os direitos correspondentes. O saneamento é precário, as escolas e os serviços de saúde são precários e não há um projeto social correspondente ao mesmo investimento que está tendo no projeto de segurança.

Esses processos das remoções têm tido um impacto muito grande nas relações sociais. Por exemplo, ao tratar cada problema de realocação de famílias ou de qualquer outro tipo como um problema individual de cada morador, esses órgãos, de certa forma, estão desmontando o que foi o capital social dessas comunidades, ou seja, a capacidade delas em se organizar e resistir ao clientelismo, às remoções anteriores, ao tráfico. Não sei se irão resistir a esse processo que está acontecendo agora, porque ele está minando o principal capital dessas comunidades, ou seja, a organização comunitária. De certa forma, o governo está desmontando isso.



terça-feira, 28 de maio de 2013

Por que a Suécia está em chamas

130526-Suécia

Sete anos de governos de direita desfizeram sonho de país justo e aberto. Desigualdade e violência policial crescentes atiçaram revolta dos imigrantes

Por Tom Peck, no The Independent | Tradução: Vila Vudu

A partir do instante em que Henrik Sedin controlou o puck, ainda bem atrás no próprio meio-campo, começou uma noite terrível em Estocolmo. Faltava pouco para as 22h, domingo passado, quando o time de superstars milionários conseguiu enfiar o puck no fundo da rede vazia do adversário: 5-1. Pela primeira vez em sete anos, e em casa, frente à própria torcida, a equipe sueca era campeã mundial de hóquei sobre o gelo.

O Ericsson Dome, na parte sul da cidade, foi ao delírio. Nos pubs irlandeses, nos elegantes quarteirões de Södermalm, rolaram rios de pints de cerveja Guinness.

Mas em Husby, subúrbio no norte da cidade, distante do centro, região superpopulosa onde vivem imigrantes, começava uma conflagração, em tudo diferente do que se via entre os suecos brancos ricos. Um shopping centre foi vandalizado e uma garagem incendiada, o que causou a evacuação dos moradores de um bloco de apartamentos. Quando a polícia chegou, foi recebida a pedradas por mascarados; dois policiais foram feridos. Num vídeo que chocou o país, um terceiro policial caído aparece sendo espancado e chutado; os agressores chutaram também a pistola que se vê no coldre do policial.

Quando o dia clareou, havia mais de cem carros incendiados; e quando os jogadores campeões erguiam a taça, em confraternização com o rei Carl XVI Gustaf no Kungsträdgården, à vista de 20 mil fãs, a Suécia já entrara na primeira manhã dos piores tumultos urbanos de toda a moderna história do país, que continuam.

Centenas de carros e dúzias de prédios foram incendiados, e há mais de 100 presos. Imagens dos policiais feridos e prédios em chamas, na rica, pacífica e igualitária Suécia, surpreenderam o mundo. Mas, para outros muitos, não foi surpresa. Há anos os sindicatos, trabalhadores dos serviços sociais, cientistas políticos, rappers, em confronto com número crescente de extremistas de direita, já contam o Conto das Duas Estocolmos – duas sociedades que coexistem numa mesma cidade dividida e não integrada. Mas nunca se vira oposição e contraste tão declarados quanto naquela primeira noite de fogo nas periferias, que sitiaram a festa do hóquei-sobre-o-gelo do centro.

Para quem estave em Londres há dois anos, os tumultos em Estocolmo são assustadoramente familiares. Há duas semanas, começaram a circular notícias da morte de um imigrante português, 68 anos, atacado pela polícia dentro do apartamento onde morava em Husby, depois levado ao hospital, onde morreu. Ele teria sequestrado uma mulher, refém no apartamento, e teria recebidos os policiais com um cutelo de açougueiro na mão.

Mas Megafonen, grupo que milita por mudanças sociais nos subúrbios de Estocolmo publicou fotos de um saco do tipo que a Polícia usa para remoção de cadáveres sendo retirado do mesmo apartamento, num carro que parte em seguida. Não uma ambulância: um carro. Mais tarde se soube que a dita “refém” era, de fato, o cadáver da mulher do imigrante português, de 30 anos. Segundo seu cunhado, o homem tinha na mão uma faca de cozinha, não um cutelo de açougueiro; e que tentava defender-se contra uma gangue de mascarados que dias antes perseguira ele e sua mulher. Quando a Polícia bateu à porta do apartamento, a mulher contara ao cunhado, o marido supôs que fossem os mascarados da gangue que os seguia; gritou para assustá-los, talvez um pouco assustadoramente demais; e foi morto a tiros pela polícia.

Ativistas de esquerda, alvo preferencial, hoje, da Polícia sueca, que os acusa de insuflar os tumultos de rua, dizem que quando essa versão dos eventos chegou aos subúrbios, ajudou a incendiar quatro anos de ressentimento contra a brutalidade policial – queixa já antiga e muito repetida nos subúrbios, onde já praticamente não se veem suecos brancos – e contra o desemprego alto e crescente, a sempre crescente desigualdade, a falta de oportunidades para todos.

Mas, dessa vez, os tumultos espalharam-se pela cidade, também para os subúrbios a oeste e ao sul de Estocolmo e para outras cidades – Malmö, Gothenburg, Örebro – onde escolas, restaurantes e delegacias de Polícia foram incendiadas. É difícil determinar as motivações originais. Mas, o que quer que fosse, na origem, o movimento já está hoje invadido por gangues de rua, pequenos delinquentes, ou grupos de mascarados que, simplesmente, tomaram conta dos bairros mais pobres. Parece que há algo de podre no estado sueco.

A escala dos tumultos não se compara ao que se viu em Paris em 2005 ou em Londres há dois anos, onde aconteceram em áreas distantes do centro das capitais. Na Suécia não houve mortos e houve baixo número de feridos. O pequeno subúrbio de Husby é local agradável de viver, construído para suecos ricos – que já não vivem ali. Nem de longe se parece com o conjunto habitacional Broadwater Farm, de Tottenham, marco zero dos tumultos em Londres.

Hoje, 80% dos que vivem em Husby, Estocolmo, são imigrantes, a maior parte dos quais ali chegaram como refugiados, escapados dos mais diferentes cantos do mundo em guerra – Iraque, Irã, Afeganistão, Somália, Curdistão e, mais recentemente, da Síria – atraídos pela propagada hospitalidade com que os suecos recebem refugiados. Mas o desemprego entre os jovens é alto, pelo menos para os padrões suecos: 6%.

“Estão dizendo que é por causa daquele homem que foi morto” – disse Sadiya, 13 anos, somaliana, que faz um curso de arte e artesanato no centro de Husby.  “Acho que querem chamar a atenção da Polícia. O pessoal que está fazendo essas coisas é pouco mais velho que eu. Por que se preocupariam com o desemprego? São crianças.”

Na parte externa do centro onde são dados os cursos, durante o dia, mesmo no auge dos tumultos, a vida prosseguiu praticamente normal. As floristas continuaram a vender suas flores, fileiras de pequenos vasos plantados, alinhados na parte externa da loja. Os prédios de apartamentos, todos de média altura, têm jardins externos, bem cuidados. Mas todos os vidros da estação do metrô estão quebrados. As paredes que protegiam um telefone público foram destruídas. Restou o telefone, preso a um poste, no centro do que parece ser uma piscina de vidros quebrados. Na rua, um ônibus articulado foi explodido e incendiado. Há fragmentos de metal e vidro por todos os lados. Os carros incendiados já foram diligentemente removidos pelas autoridades, mas a coisa aqui parece grande demais. Uma colega de Sadiya, Sagal, diz que ninguém ali consegue dormir já há três noites.

Todas as crianças que assistem às aulas, cerca de 25, nasceram na Suécia, mas só uma é filha de pais suecos. Todas as demais são filhas de pais africanos do leste ou do meio-leste da África.

“É difícil para nós” – diz Ann-Sofie Ericson, diretora da Escola de Artes da Cidade de Estocolmo que supervisiona a área. – “19% de nossas crianças abandonam a escola a cada ano. Vivo a 15 minutos de carro daqui. Meus vizinhos são iraquianos. Quando as pessoas chegam, vêm para bairros como Husby. Alguns arranjarão emprego, educação, depois se mudam. Alguns não conseguem sair.”

Quase não há pobreza absoluta, mas não é a pobreza absoluta que alimenta os tumultos e levantes urbanos. A sociedade sueca, afamada por ser igualitária, com oferta excepcional de bem-estar para todos, foi construída por 40 anos de governo da democracia social , dos anos 1930s aos anos 1970s. Mas umcrash econômico no início dos anos 90s, e o governo de centro-direita que está no poder desde 2006 impuseram inúmeras restrições ao estado de bem-estar, apesar das condições econômicas relativamente benignas.

Estudo recente da OECD revelou que a Suécia tem o mais rápido crescimento da desigualdade dos 34 países do grupo – e surpreendeu muita gente. Por isso, foi muitíssimo citado ao longo da semana que passou.

Como vários lembraram, os tumultos urbanos em Londres brotaram ao final de 30 anos de economia neoliberal de linha Thatcherita e da “Terceira Via” – com furiosa desregulamentação das finanças justificada pela ideia de que pouco importava aumentar a desigualdade social, se as condições dos mais ricos continuassem a melhorar.

O que se vê na Suécia é que a desigualdade crescente está gerando indignação e fúria também crescentes.

Em Husby, quando cai a noite – que em maio dura pouco mais de quatro horas –, grupos de jovens reúnem-se no centro, todos usando calças e camisetas largas. “Acho que tenho até sorte, por estar na Europa” – diz Baraar Mohamed, filho de somalianos, 15 anos, cujos pais garantem que não jogou pedras nem incendiou coisa alguma. – “Comparado ao pessoal na Somália, talvez seja sorte. Mas não fiz nada, nem ando com eles, e vivo aqui, e tenho de conviver com a brutalidade da Polícia, e não tenho a mesma sorte que outros suecos da minha idade. Eu sou sueco. Sou sueco.”

Ken Ring, rapper sueco de origem queniana, que cresceu e ainda vive no subúrbio de Valingby, onde grupos de jovens apedrejaram vagões do metrô e incendiaram carros na 5ª-feira à noite, concorda.

“Nunca estive em lugar algum, do mundo, onde as pessoas saibam o que é a realidade de viver na Suécia” – diz ele. “Quando veem fotos dos nossos subúrbios, dizem ‘não, não é Estocolmo. Deve ser Londres, Marselha.’ Estocolmo é hoje uma loucura…”

Hoje com 34 anos, Ring foi nome bastante conhecido nos anos 90s, quando foi preso depois de gravar umrap em que falava de invadir o Castelo Real e estuprar a princesa Madeleine, 3ª na linha de sucessão ao trono, e que se casaria em duas semanas. Por causa do casamento, havia mobilização policial extra. Mas, depois, se reabilitou. “Onde moro vejo crianças de 14, 15 anos usando heroína. Tenho um filho de 12. Há dois anos, outra criança apontou uma arma para a cabeça do meu filho e disse ‘olhe só, você, assim, fica mais fraco que eu’. É a Suécia hoje. E não era para ser assim.”

Não era. O herói do dia, surgido dos tumultos de rua, é um bombeiro, Mattias Lassen, atingido por pedradas quando tentava apagar o fogo em casas próximas de Husby, e que, depois, publicou uma carta aberta aos que o apedrejaram, pelo Facebook.

“Podem me chamar, se seu pai bater o carro e precisar de ajuda. Posso ajudar sua irmã, se a cozinha dela pegar fogo. E nado na água gelada, para salvar seu irmão pequeno, se ele cair do bote” – escreveu ele. – Também posso ajudar sua avó, se ela tiver um infarto. E posso até ajudar VOCÊ, se acontecer de você pisar em gelo fino no lago, num ensolarado dia de março.”

A maré de insatisfação cresce dos dois lados. Nas eleições gerais de 2010, o Partido Sueco Democrático – que faz campanha contra os imigrantes, regularmente descrito como partido de extrema direita, ultrapassou pela primeira vez a cláusula de barreira dos 4% de votos. Elegeu 20 deputados, para o Parlamento, de 349 cadeiras.

Na 6ª-feira à noite, com número extra de policiais nas ruas de Estocolmo, onde as coisas estavam comparativamente mais calmas, graves tumultos irromperam em Örebro, a quase 200 quilômetros a leste da capital; e em Tumba, no sul do país. Pela primeira vez, grupos de ‘vigilantes’ de extrema direita tomaram as ruas, depois de postarem fotos de membros do grupo, com rostos mascarados. Em Tumba, a Polícia prendeu 18 deles. A Polícia também está à caça de “uma pequena claque de agitadores profissionais de esquerda”, acusados de estarem viajando de cidade em cidade, usando carros particulares, disseminando táticas que conhecem bem, como destruir calçadas para soltar as pedras, e provocando agitação por onde passam.

A grande maioria dos presos durante os primeiros dias de tumultos de rua já foram libertados. O primeiro a comparecer ante o juiz foi um arrependido e trêmulo jovem de 18 anos. “Nunca deveria ter-me juntado a eles” – disse ele. – “Queria ser bombeiro. Agora, acho que nunca conseguirei.”

Ontem, em Åkersberga, 60 quilômetros ao norte do centro de Estocolmo, ainda havia incêndios de carros à luz do dia, com a Polícia perseguindo grupos suspeitos, em helicópteros. Ken Ring, embora condene firmemente a violência geral, ainda tem esperanças. “Essas coisas ajudam a chamar a atenção. Os jornais falam, as televisões mostram. O governo não poderá deixar de ver o que está acontecendo.”

Depois que acabarem os incêndios provocados, com os ativistas de esquerda, os extremistas da direita fascista e os imigrados irados já julgados em tribunais justos, talvez, então, sim, o mundo perceba o que muitos suecos já perceberam: desde os anos neoliberais, as coisas na Suécia já não são o que parecem.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Benjamin e o capitalismo

Em seu artigo, Agamben explica que, segundo Benjamin, “o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber, uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. Ao refletir sobre a desmaterialização da moeda, Agamben afirma que “o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo”.

InGodWeTrust

Por Giorgio Agamben | Tradução e intro. Selvino J. Assmann

Publicado originalmente no site do Instituto Humanitas da Unisinos, em 13/5/13.

Original da revista italiana Lo Straniero, de 29/4/13.


Há sinais dos tempos (Mt.16,2-4) que, mesmo evidentes, os homens, que perscrutam os sinais nos céus, não conseguem captar. Eles cristalizam-se em eventos que anunciam e definem a época que vem, eventos que podem passar despercebidos e não alterar em nada ou quase nada a realidade a que se juntam e que, no entanto, precisamente por isso valem como sinais, como indicadores históricos, semeia ton kairon. Um destes eventos ocorreu em 15 de agosto de 1971, quando o governo norte-americano, sob a presidência de Richard Nixon, declarou que a convertibilidade do dólar em ouro estava suspensa. Embora tal declaração marcasse de fato o fim de um sistema que havia vinculado por longo tempo o valor da moeda a uma base em ouro, a notícia, comunicada no coração das férias estivas, suscitou menos discussões do que legitimamente se poderia ter esperado. Mesmo assim, a partir daquele momento, a inscrição, que ainda se lê em muitas cédulas (por exemplo, sobre a libra esterlina e sobre a rúpia, mas não sobre o euro), “prometo pagar ao portador a soma de…”, assinada pelo presidente do Banco Central, havia perdido definitivamente o seu sentido. Esta frase significava agora que, em troca daquela cédula, o banco central ofereceria a quem o pedisse (admitindo que alguém fosse tão tolo para o pedir) não uma certa quantidade de ouro (por um dólar, trinta e cinco avos de uma onça), mas sim uma cédula exatamente igual. O dinheiro esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente autorreferencial. Deixa-nos ainda mais estupefatos a facilidade com que foi aceito o gesto do soberano norte-americano, que equivalia a anular o patrimônio em ouro dos possuidores de dinheiro. E se, conforme foi sugerido, o exercício da soberania monetária por parte de um Estado consiste na sua capacidade de induzir os atores do mercado a empregarem os seus débitos como moeda, agora também o débito tinha perdido toda referência real, tornando-se puramente de papel.

Desmaterialização da moeda

O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos antes, quando as exigências do mercado levaram a vincular à moeda metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras de câmbio, cédulas, juros, goldschmith’s notes, etc. Todas estas moedas de papel, na realidade, são títulos de crédito e, por isso, são chamadas de moedas fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria valer – pelo seu conteúdo de metal precioso (aliás, como se sabe, inseguro: o caso limite é o das moedas de prata cunhadas por Frederico II, que logo depois de ser usada deixava aparecer o vermelho do cobre). Contudo, Schumpeter (que vivia, sim, numa época em que a moeda de papel já havia superado a moeda metálica) pôde afirmar, e com razão, que, em última análise, todo o dinheiro é apenas crédito. Depois de 15 de agosto de 1971, deveríamos acrescentar que o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo.

Benjamin e o capitalismo como religião

O capitalismo como religião é o título de um dos mais penetrantes fragmentos póstumos de Benjamin. Já foi observado mais vezes que o socialismo era algo como uma religião (entre outros autores, para Schmitt, “o socialismo pretende dar vida a uma nova religião que, para os homens dos séculos XIX e XX, teve o mesmo significado que o cristianismo para os homens de dois mil anos atrás”). Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber, uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por três características:

1.- É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que jamais tenha existido. Nela tudo só tem significado se for referido ao cumprimento de um culto, e não a um dogma ou a uma ideia.

2.- Este culto é permanente, é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”. Não é possível, aqui, distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa-trabalho, no qual o trabalho coincide com a celebração do culto.

3.- O culto capitalista não está destinado a trazer redenção ou a expiação de uma culpa, mas destinado à própria culpa. “O capitalismo é talvez o único caso de culpa não expiante, mas culpabilizante. Uma monstruosa consciência culpada que não conhece redenção transforma-se em culto, não para expiar nisso a sua culpa, mas para a tornar universal… e para, no final, capturar o próprio Deus na culpa… Deus não morreu, mas foi incorporado no destino do homem”.

Precisamente porque tende com todas as suas forças não à redenção, mas à culpa, não à esperança, mas ao desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a sua destruição. E o seu domínio é, em nosso tempo, tão total que até os três grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram, segundo Benjamin, com ele, são solidários, de algum modo, com a religião do desespero. “Esta passagem do planeta homem pela casa do desespero na absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este homem é o Sobre-homem, ou seja, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista”. Mas também a teoria freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o que foi removido, a representação pecaminosa… é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os juros”. E, em Marx, o capitalismo, com os juros simples e compostos, que são função da culpa… transforma-se imediatamente em socialismo”.

Em que crê o capitalismo?

Tentemos tomar a sério e a desenvolver a hipótese de Benjamin. Se o capitalismo é uma religião, como podemos defini-lo em termos de fé? Em que crê o capitalismo? E o que implica, com respeito à fé, a decisão de Nixon? David Flüsser, grande estudioso de ciência das religiões – existe também uma disciplina com este estranho nome – estava trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam como “fé”. Naquele dia achava-se por acaso numa praça de Atenas e a uma certa altura, erguendo os olhos, viu escrito em caracteres cubitais diante de si Trapeza tes pisteos. Estupefato pela coincidência, olhou melhor e após alguns segundos se deu conta de se encontrar simplesmente na frente de um banco: trapeza tes pisteos significa em grego “banco de crédito”. Eis o sentido da palavra pistis – fé – é simplesmente o crédito de que gozamos junto a Deus e de que a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que cremos nela. Por isso Paulo pode afirmar, em famosa definição, que a “fé é substância de coisas esperadas” (1): ela é aquilo que dá crédito e realidade àquilo que ainda não existe, mas em que cremos e temos confiança, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Creditum é o particípio passado do verbo latino credere: e aquilo em que cremos, em que colocamos a nossa fé, quando estabelecemos uma relação fiduciária com alguém tomando-o sob a nossa proteção ou emprestando-lhe dinheiro, confiando-nos à sua proteção ou tomando de empréstimo dele algum dinheiro. Na pistis paulina volta a viver a antiquíssima instituição indo-europeia que Benveniste reconstruiu, a “fidelidade pessoal”: “Aquele que detém a fides posta nele por um homem mantém tal homem em seu poder… Na sua forma primitiva, esta relação implica uma reciprocidade: por a própria fides em alguém proporcionava, em troca, a sua garantia e a sua ajuda”.

Capitalismo: religião fundada sobre a fé

Se isso for verdadeiro, então a hipótese de Benjamin de que há uma estreita relação entre capitalismo e religião acaba recebendo uma nova confirmação: o capitalismo é uma religião inteiramente fundada sobre a fé, é uma religião cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé). E se, segundo Benjamin, o capitalismo é uma religião na qual o culto se emancipou de todo objeto e a culpa se emancipou de todo pecado, e, portanto, de toda possível redenção. Então, do ponto de vista da fé, o capitalismo não tem nenhum objeto: crê no puro fato de crer, no puro crédito (believes on the pure belief), ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé – o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o dinheiro.

Isso significa que o banco, que nada mais é do que uma máquina para fabricar e gerir crédito (Braudel, p. 368), tomou o lugar da Igreja e, ao governar o crédito, manipula e gere a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda conserva em si mesmo.

Crédito: ser imaterial

O que significou, para esta religião, a decisão de suspender a convertibilidade em ouro? Certamente constituiu uma espécie de elucidação do próprio conteúdo comparável à destruição mosaica do bezerro de ouro ou à fixação de um dogma conciliar – em todo caso, trata-se de uma passagem decisiva para a purificação e a cristalização da própria fé. Esta – na forma do dinheiro e do crédito – emancipa-se agora frente a toda referência externa, cancela o seu nexo idolátrico com o ouro e se afirma na sua absolutidade. O crédito é um ser puramente imaterial, a mais perfeita paródia da pistis, que nada mais é do que “substância das coisas esperadas”. A fé – assim dizia a célebre definição da Carta aos Hebreus – é substância – ousia, termo técnico por excelência da ontologia grega – das coisas esperadas. O que Paulo quer dizer é que aquele que tem fé, que pôs a sua pistis em Cristo, toma a palavra de Cristo como se fosse a coisa, o ser, a substância. Mas é precisamente este “como se” que a paródia da religião capitalista cancela. O dinheiro, a nova pistis, é, agora imediatamente e sem resíduos, substância. O caráter destrutivo da religião capitalista, de que falava Benjamin, aparece aqui na sua plena evidência. A “coisa esperada” não existe mais, e foi aniquilada e deve sê-lo, pois o dinheiro é a essência última da coisa, a sua ousia no sentido técnico. E dessa maneira elimina-se o último obstáculo para a criação de um mercado da moeda, para a transformação integral do dinheiro em mercadoria.

A sociedade condenada a viver de crédito

Uma sociedade cuja religião é o crédito, que crê apenas no crédito, está condenada a viver de crédito. Robert Kurtz ilustrou a transformação do capitalismo do século XIX, ainda fundamentado na solvência e na desconfiança com relação ao crédito, no capitalismo financeiro contemporâneo. “Para o capital privado do século XIX, com os seus proprietários pessoais e com os relativos clãs familiares, valiam ainda os princípios da respeitabilidade e da solvência, à luz dos quais o recurso cada vez maior ao crédito aparecia quase como algo obsceno, como o início do fim. A literatura popular da época está cheia de histórias em que grandes estirpes caem em ruína por causa da sua dependência do crédito: em algumas passagens dos Buddenbrook, Thomas Mann fez disso até mesmo um tema que mereceu um Prêmio Nobel. O capital produtivo de juros era naturalmente, desde o início, indispensável para o sistema que se estava formando, mas ainda não tinha importância decisiva na reprodução capitalista no seu conjunto. Os negócios do capital “fictício” eram considerados típicos de um ambiente de trapaceiros e de pessoas desonestas, à margem do capitalismo propriamente dito… Além disso, Henry Ford rejeitou por muito tempo o recurso ao crédito bancário, obstinando-se em querer financiar os seus investimentos unicamente com o próprio capital” (R. Kurz, La fine della politica e l’apoteosi del denaro, Roma, 1997, p. 76-77; Die Himmelfahrt des Geldes, em “Krisis”, 16, 17, 1995).

A hipoteca antecipada do trabalho

No decurso do século XIX, esta concepção patriarcal dissolveu-se completamente, e o capital das empresas hoje recorre em medida crescente ao capital monetário, tomado de empréstimo junto ao sistema bancário. Isso significa que as empresas, para poderem continuar a produzir, devem por assim dizer hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores do trabalho e da produção futura. O capital produtor de mercadorias alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto. Mas não são apenas as empresas que vivem, neste sentido, sola fide, a crédito (ou a débito). Também os indivíduos e as famílias, que recorrem a isso de modo crescente, estão da mesma forma religiosamente envolvidos neste contínuo e generalizado ato de fé sobre o futuro. E o Banco é o sumo sacerdote que ministra aos fiéis o único sacramento da religião capitalista: o crédito-débito.

Notas:
1.- Cf. Carta aos Hebreus 11,1 (Nota da IHU On-Line).


Fonte: Uninomade