quinta-feira, 23 de maio de 2013

Uma utopia ao alcance das mãos



Inventar uma outra vida, com outras relações sociais, pode parecer fora de propósito em um período de crise como o atual. No entanto, fazer esse exercício nunca foi tão necessário. Na Europa, na América Latina e na Ásia, a ideia do direito a uma renda mínima incondicional avança.



Por Mona Chollet do Le Monde Diplomatique

Trabalhamos e, graças ao trabalho, recebemos dinheiro. Essa lógica está tão arraigada na mente das pessoas que sugerir uma inversão da ordem das coisas inevitavelmente levanta dúvidas sobre a saúde mental de quem o fez. A perspectiva de instaurar uma renda incondicional, ou seja, prover cada um com uma quantia mensal suficiente para lhe permitir viver, independentemente de sua atividade assalariada, aparece como uma aberração. Ainda estamos convencidos de ter de arrancar de uma natureza árida e ingrata os meios de nossa subsistência individual; mas a realidade é bem diferente.

Bolsas de estudo, licença-maternidade, pensões, bolsa família, indenizações por demissão: muitos benefícios que têm em comum o fato de dissociar renda e trabalho. Por mais insuficientes que sejam e por mais atacados que possam se revelar todos esses dispositivos, eles mostram que, se a renda mínima incondicional é uma utopia, trata-se de uma utopia que “já existe”. Na França, em 2005, a renda da população dependia 30% da redistribuição: “Apesar de todos os discursos ideológicos e da liquidação do Estado social, vilipendiado pelos neoliberais, a parcela da transferência de renda aumentou inexoravelmente sob os presidentes Mitterrand, Chirac e Sarkozy”.1 E não seria muito difícil mover novamente o cursor para garantir que todos estejam ao abrigo da necessidade(veja artigo na pág. 32).

Tendo em mente que a primeira consequência de uma renda básica é eliminar o desemprego como um problema – tanto como questão social quanto como fonte de ansiedade do indivíduo –, seria possível economizar, de início, as somas envolvidas na busca do objetivo oficial do pleno emprego. Nada mais justificaria os presentes dados às empresas para incentivá-las a contratar. Além disso, por ser a renda garantida universal e incondicional – ela é concedida a todos, pobres e ricos, estes últimos a recebendo como reembolso por meio do imposto –, as economias seriam realizadas eliminando todo o trabalho administrativo relacionado ao acompanhamento de beneficiários da assistência social, questionável por seu caráter humilhante, intrusivo e moralizador.2

Mas antes de prosseguir, e já que começamos, é importante definir bem do que exatamente estamos falando. Uma medida defendida nos anos 1960 por economistas tão diferentes como James Tobin – também por trás da proposta de taxação das transações financeiras – e o liberal Milton Friedman tem de fato motivos para inspirar perplexidade. Essa grande lacuna permanece até hoje: na França, a renda garantida defendida por Christine Boutin (Partido Cristão-Democrata) não é a mesma que a apoiada por Yves Cochet (Verdes) ou pelo Movimento Utopia, transversal aos Verdes e ao Partido de Esquerda.

Com um montante muito inexpressivo para que se possa dispensar o emprego, a renda básica propagada pelos liberais funciona como um subsídio para as empresas e se inscreve em uma lógica de desmantelamento da proteção social: é a perspectiva do imposto negativo de Friedman. Em suas versões de esquerda, ao contrário, ela deve ser suficiente para viver – mesmo que a definição de “suficiente”, suspeitamos, dê margem a perguntas espinhosas. E não a concebemos sem uma defesa conjunta dos serviços públicos e dos seguros sociais (pensões, auxílio-desemprego ou doença), bem como alguns benefícios sociais. Há também acordo sobre algumas outras características: ela deveria ser paga mensalmente a cada indivíduo, do nascimento até a morte (os menores recebendo uma quantia mais reduzida que a dos adultos), e não a cada lar; nenhuma condição ou contrapartida seria exigida; e seria acumulável com os rendimentos do trabalho.

Assim, cada um poderia escolher o que deseja fazer da vida: continuar a trabalhar, ou seguir desfrutando seu tempo contentando-se com um nível de consumo modesto, ou, ainda, alternar entre os dois. Os períodos fora do emprego não seriam mais suspeitos, uma vez que o trabalho remunerado deixaria de ser a única forma reconhecida de atividade. Aqueles que escolhessem viver da renda garantida poderiam se dedicar inteiramente às tarefas pelas quais são apaixonados e/ou que lhes pareçam socialmente úteis, sozinhos ou com outros, pois o projeto se baseia fortemente nas possibilidades de livre associação que abriria.

Em 2004, dois pesquisadores da Universidade Católica de Louvain tentaram adivinhar os efeitos produzidos pela renda básica, enfocando os vencedores do jogo televisivo Win for life, que oferece uma renda mensal para seus ganhadores. Entre as notáveis diferenças entre as duas situações, que obrigam a relativizar suas conclusões, Baptiste Mylondo destaca uma que eles negligenciaram: “Enquanto o beneficiário da renda incondicional está cercado por outros beneficiários, o vencedor do sorteio está totalmente isolado. Ora, o valor do tempo livre aumenta com o número de pessoas com quem é possível compartilhá-lo”.3 Portanto, para um grande número de pessoas a renda garantida mudaria consideravelmente ao mesmo tempo a relação com o trabalho, a relação com o tempo, a relação com o consumo e a relação com os outros – aí incluídos, por contágio, aqueles que optassem pelo emprego assalariado. No entanto, é verdade que ela imporia a criação de novos modos de socialização, sem o que poderia também favorecer o recolhimento, especialmente entre as mulheres, que correriam o risco de ser confinadas ao lar.

Na França, a reivindicação de uma renda garantida se cristalizou durante a revolta estudantil contra o projeto de contrato de inserção profissional (CIP) do governo de Édouard Balladur, em 1994, com a criação, em Paris, do Coletivo de Agitação por uma Renda Garantida Ideal (Cargo), logo integrado ao movimento Agir em Conjunto contra o Desemprego (AC!). Ela ressurgiu durante o movimento de desempregados, na virada de 1997 para 1998. Na mesma época, o filósofo ambientalista André Gorz se uniu à ideia,4que encontrou eco no movimento antiglobalização que estava sendo formado.5 Alain Caillé, fundador do movimento antiutilitarista nas ciências sociais (Mauss), também foi partidário da proposta.

Finalmente, em resposta aos ataques de que seu regime de indenização foi objeto a partir de 2003, certos militantes defenderam não somente a manutenção do dispositivo, mas sua extensão ao conjunto da população, de modo a normalizar a alternância de períodos de folga e de períodos trabalhados, sabendo que estes últimos se alimentam dos primeiros e não poderiam existir sem eles. Sua proximidade com essa luta levaria Christophe Girard, prefeito socialista do quarto distrito de Paris, a pleitear na véspera do congresso de seu partido, em outubro de 2012, o estabelecimento gradual de uma renda universal.6

Antes, e mesmo que não tenha restado muita coisa da medida finalmente votada, a ideia de que a sociedade deve a seus membros os meios de sua subsistência tinha assombrado os debates parlamentares em torno da criação da renda mínima de inserção (RMI) pelo governo de Michel Rocard, em 1988. À esquerda, alguns, a começar pelo relator do texto, Jean-Michel Belorgey, contestavam o condicionamento da RMI a “esforços de inclusão”. E eles se perguntaram: podemos falar de um “direito” a uma renda cuja obtenção é suspensa a partir de uma passagem por uma comissão e para a qual uma contrapartida é exigida?7 Esse é também o significado do slogan sem floreios das manifestações de desempregados, “Dinheiro para viver!”: em uma sociedade que não é ameaçada por nenhuma penúria, todos deveriam ter direito a uma vida digna, sem para isso ter de se esforçar.

A renda básica visa de início fornecer a todos o mínimo vital, seja no Norte ou no Sul, onde também tem seus defensores. Acredita-se em geral que teria como efeito estimular a atividade econômica nos países em desenvolvimento e reduzi-la ligeiramente em outros lugares – razão pela qual ela interessa aos ecologistas. Nas sociedades ocidentais, ela ofereceria a oportunidade de escapar do desemprego, da precariedade, das más condições de habitação e pobreza, ou, para alguns assalariados, do sofrimento físico e mental experimentado durante o trabalho. Mas ela não colocaria por terra o capitalismo, e, ainda que alguns a associem a um projeto de renda máxima,8 não eliminaria as desigualdades. E é isso que muitos não deixam de censurar nela. Assim, o comunista libertário Claude Guillon, por considerar o programa muito tímido, satirizou em um livro aquilo que chama de “garantismo”. Ele admite, no entanto, que se fala melhor de política com a barriga cheia...9

Confiar nos indivíduos

Em vez de derrubar uma ordem injusta para substituí-la por uma ordem justa, a renda básica daria “um impulso cultural”. Ela traria ao mesmo tempo reconhecimento e incentivo para as atividades fora do mercado, de maneira a começar uma transição que ninguém pode prever aonde levaria. É precisamente o abandono dessa lógica que seduziu o ativista suíço Oliver Seeger, coautor da versão francesa do filme A renda básica.Antigo membro da Longo Maï, cooperativa agrícola comunitária estabelecida após 1968 nos Alpes da Haute-Provence, ele rejeita, em retrospectiva, “esse pressuposto implícito de que éramos uma vanguarda revolucionária, uma pequena elite que estava se preparando para o dia D”. A renda garantida, ao contrário, permite “deixar as pessoas livres. Não pensar por elas, não lhes passar uma ideologia já mastigada que seriam condenadas a seguir”. Essa mudança de paradigma seria tudo menos fácil: “Eu espero que as pessoas tenham dor de cabeça, de coração, de estômago, que todo o seu metabolismo seja desarranjado, se elas tiverem de pensar sobre o que realmente sentem vontade de fazer! Como poderia ser de outra forma, quando, durante anos, fomos trabalhar sem fazer perguntas? Mas eu realmente gostaria de ter a chance de ver o que isso poderia proporcionar”.10

Outra importante crítica dirigida à renda garantida tem a ver com seu questionamento da norma de emprego assalariado. Historicamente, o movimento dos trabalhadores se organizou entre os assalariados. Ali ele forjou todas as suas ferramentas de resistência à exploração e obteve todas as suas conquistas, dos feriados e fins de semana remunerados à proteção social, a ponto de às vezes esquecer que o “desaparecimento do emprego assalariado” era uma das metas estabelecidas pela Confederação Geral do Trabalho (CGT) na Carta de Amiens, em 1906... Para o mundo sindical e as correntes políticas que lhe são próximas, dissociar trabalho e renda soa, portanto, como um passo perigoso ou herético. Economista membro da Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (Attac), Jean-Marie Harribey escreve que o trabalho constitui, “quer gostemos ou não”, um “vetor essencial de integração social”, porque confere ao indivíduo “sua qualidade de homem completo, produtor e cidadão”.11

Em contrapartida, promotores da ideia da renda garantida formulam uma crítica do trabalho assalariado. A maioria dos empregos, argumentam, não traz aos que os desempenham a autoestima nem o sentimento de servir ao interesse público – isso quando não lhes proporcionam um sentimento totalmente oposto. E, mesmo que fosse esse o caso, os ganhos de produtividade ligados ao progresso técnico de qualquer maneira não permitiriam garantir trabalho para todos. Favorável a um salário vitalício incondicional financiado pela extensão do sistema de cotização, Bernard Friot compartilha essa análise: “É melhor não fazer nada do que ser um trabalhador que produz sementes estéreis para a Monsanto”.12

Já a corrente inspirada na autonomia operária italiana sustenta sua crítica do salário no conceito de general intellect, emprestado de Karl Marx. NosGrundrisse, Marx previa que chegaria um momento em que o conhecimento acumulado ao longo da história pelo conjunto da sociedade seria o cerne da criação de valor. Com o advento da economia do intangível, chegamos a isso, afirmam seus leitores. E, portanto, o capitalismo só pode se tornar cada vez mais parasita. O essencial da produção de riqueza se desenharia, portanto, fora do emprego. Entre as figuras da cigarra despreocupada e da formiga trabalhadora, [Yann] Moulier-Boutang interpõe uma terceira, a da abelha: seu trabalho de polinização não cria valor direto, mas nenhuma produção poderia existir sem ele. Da mesma forma, cada pessoa, com as mais simples atividades diárias, participa indiretamente da economia.

O argumento tem a vantagem de combater as alegações, agitadas pelos demagogos, de “assistidos” inúteis e preguiçosos vivendo do trabalho dos outros. Mas fazer disso a justificativa da renda garantida é uma armadilha que André Gorz percebeu muito bem: “Permanecemos assim no plano do valor do trabalho e da produtividade”. Ora, “a renda de existência só faz sentido se não exige nem remunera nada”: ela deve, pelo contrário, permitir a criação “de riquezas não negociáveis”.13

Não há necessidade, de qualquer maneira, de passar pelo general intellectpara fundamentar na teoria a instauração de uma renda garantida. Em La justice agraire[A justiça agrária], de 1796, um dos primeiros promotores da ideia, o revolucionário anglo-americano Thomas Paine, viu nisso uma justa indenização para a apropriação da terra por parte de alguns, ainda que supostamente pertencente a todos...


Ilustração: Orlando

1 Yann Moulier-Boutang, L’abeille et l’économiste [A abelha e o economista], Carnets Nord, Paris, 2010.

2 O polo de emprego com certeza continuaria a existir, uma vez que sempre haveria um mercado de trabalho, mas mudaria radicalmente de missão.


3 Baptiste Mylondo, Un revenu pour tous. Précis d’utopie réaliste [Uma renda para todos. Manual de utopia realista], Utopia, Paris, 2010.


4 André Gorz, Misères du présent, richesse du possible [Misérias do presente, riqueza do possível], Galilée, Paris, 1997.


5 Ler Jean-Paul Maréchal, “Revenu minimum ou ‘deuxième chèque’?” [Renda mínima ou “segundo cheque”?], e Ignacio Ramonet, “L’aurore” [A aurora], Le Monde Diplomatique, respectivamente mar. 1993 e jan. 2000. E também Yoland Bresson, “Instaurer un revenu d’existence contre l’exclusion” [Criar uma renda de existência contra a exclusão], Le Monde Diplomatique, fev. 1994. Criador em 1989 da Associação para a Criação de uma Renda de Existência (Aire, na sigla em francês) e cofundador da Rede Mundial da Renda Básica (Bien, na sigla em inglês), Bresson é criticado por pregar um pequeno montante, o que o classifica entre os promotores de uma renda garantida “de direita”.


6 Christophe Girard, “Ma contribution pour le congrès du PS, pour un revenu social garanti” [Minha contribuição para o congresso do PS, por uma renda social garantida], 4 set. 2012. Disponível em: .


7 Laurent Geffroy, Garantir le revenu. Histoire et actualité d’une utopie concrète [Garantir a renda. História e atualidade de uma utopia concreta], La Découverte, Paris, 2002.


8 Ler Sam Pizzigati, “Plafonner les revenus, une idée américaine” [Elevar ao máximo as rendas, uma ideia norte-americana], Le Monde Diplomatique, fev. 2012.


9 Claude Guillon, Économie de la misère [Economia da miséria], La Digitale, Quimperlé, 1999.


10 “Revenu garanti, ‘la première vision positive du XXIe siècle’” [Renda garantida, a “primeira visão positiva do século XXI”], dez. 2010. Disponível em: .


11 Citado por Baptiste Mylondo, op.cit.


12 Bernard Friot, L’enjeu du salaire [A questão salarial], La Dispute, Paris, 2012. Deve notar-se, no entanto, que as estatísticas de emprego tinham tendência a negligenciar o trabalho de mulheres − por exemplo, o das camponesas. Ler Margaret Maruani e Monique Meron, “Contes et mécomptes de l’emploi des femmes” [Contos e enganos do emprego das mulheres], Le Monde Diplomatique, dez. 2012.


13 André Gorz, L’immatériel [O intangível], Galilée, Paris, 2003.




Fonte: Diário da Liberdade

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Karl Marx por Eleanor Marx

Personalidade do movimento operário inglês e internacional, filha mais nova de Marx, companheira do socialista inglês Eduard Aveling. Participou da Federação Democrática liderada por Henry Hyndman no início dos anos 1880. Junto com Eduard Aveling e William Morris participou da formação da Liga Socialista, tendo publicado, no Commonwal - jornal mensal da entidade - vários artigos e comentários sobre a questão feminina e outras questões. Foi uma ativa militante sindical, e em 1889 participou, como delegada, da fundação da Segunda Internacional. Após a morte de Engels dedicou-se à tarefa de organizar os manuscritos de Marx. Suicidou-se em 31 de março de 1898 com a idade de 43 anos.


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Não se passou muito tempo, talvez muito pouco, para escrever a biografia de um grande homem quase que imediatamente após sua morte, e a tarefa é duplamente difícil quando recai sobre uma pessoa que o conhecia e o amava. Para mim, neste momento, só é possível apresentar um breve resumo da vida do meu pai. Vou me limitar a uma simples demonstração de fatos, e não vou sequer tentar fazer uma exposição de suas grandes teorias e descobertas; teorias que são a base do Socialismo Moderno — descobertas que estão revolucionando toda a ciência da Economia Política. Espero, contudo, poder fazer futuramente uma análise para a Progress da grande obra do meu pai, “O Capital”, e das verdades nela contidas.

Karl Marx nasceu em Trier, em maio de 1818, de pais judeus. Seu pai — um homem de grande talento — era advogado, muito influenciado pelas ideias francesas do século XVIII sobre religião, ciência e arte; sua mãe era descendente de judeus húngaros que no século XVII se estabeleceram na Holanda. Entre seus amigos de infância mais antigos estavam Jenny — que mais tarde tornou-se sua esposa — e Edgar von Westphalen. Com o pai deles, o Barão von Westphalen — meio escocês — Marx aprendeu a gostar da “Escola Romântica” e, enquanto seu pai lia Voltaire e Racine, Westphalen lia Homero e Shakespeare, que se tornaram seus escritores preferidos.

Muito amado e, ao mesmo tempo, temido por seus colegas de escola — amado por suas travessuras e temido por sua aptidão para escrever versos sarcásticos e difamar seus inimigos — Karl Marx teve uma rotina escolar normal, e depois seguiu para as Universidades de Bonn e Berlim, onde, para agradar seu pai, cursou Direito por algum tempo, e para satisfazer a si mesmo foi estudar História e Filosofia. Em 1842, Marx estava prestes a habilitar-se como “Livre Docente” em Bonn, mas o movimento político que surgia na Alemanha desde a morte de Frederick William III em 1840 levou-o para outra carreira. Os líderes da burguesia liberal renana — Kamphausen e Hansemann — haviam fundado a Gazeta Renana em Colônia, com a colaboração de Marx, cuja crítica brilhante e ousada do parlamento provinciano causou tanta comoção que, embora tivesse apenas vinte e quatro anos de idade, lhe foi oferecido o cargo de redator-chefe do jornal. Ele aceitou, e com isso começou sua longa luta contra todas as tiranias e, particularmente, contra a tirania prussiana. Obviamente o jornal estava sob a supervisão de um censor — mas o pobre censor se via impotente. A Gazeta invariavelmente publicava todos os artigos importantes, e o censor nada podia fazer. Então um segundo censor, um “especial”, foi enviado de Berlim, mas mesmo esta dupla censura não teve êxito e, finalmente, em 1843 o governo simplesmente proibiu todo o jornal. No mesmo ano, em 1843, Marx casou-se com sua velha amiga de infância, com quem havia sido noivo por sete anos, Jenny von Westphalen, e com sua jovem esposa mudou-se para Paris. Lá, junto com Arnold Ruge, publicou os Anais Franco-Alemães, iniciando sua longa série de artigos socialistas. Sua primeira contribuição foi uma crítica sobre a “filosofia do direito” de Hegel; a segunda, um ensaio sobre a “Questão Judaica”. Quando os Anais deixaram de existir, Marx contribuiu para o periódico Vorwärtz, do qual ele era tido como editor. De fato, o cargo de editor deste jornal, que também contou com a colaboração de Heine, Everbeck, Engels etc., era um tanto irregular, e um editor realmente responsável nunca existiu. A próxima publicação de Marx foi “A Sagrada Família” escrita com Engels, uma crítica sarcástica dirigida contra Bruno Bauer e sua escola de idealistas hegelianos.

Apesar de, naquela época, dedicar a maior parte de seu tempo para o estudo de Economia Política e Revolução Francesa, Karl Marx continuou a travar uma guerra raivosa contra o governo da Prússia e, por essa razão, este governo exigiu de M. Guizot — conforme relato da agência de Alexander von Humboldt em Paris — a expulsão de Marx da França. E a essa exigência Guizot atendeu com firmeza, e Marx teve de deixar Paris, mudando-se para Bruxelas, e lá, em 1846, publicou em francês o “Discurso sobre o livre comércio”. Proudhon havia publicado “Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria” e escreveu a Marx, dizendo que aguardava sua “férula crítica”. Ele não teve de esperar muito tempo, pois, em 1847, Marx publicou “Miséria da Filosofia, resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon” e a “férula” foi aplicada com uma austeridade que Proudhon provavelmente não esperava. Neste mesmo ano, Marx fundou uma Associação dos Operários Alemães em Bruxelas e, o mais importante, participou, junto com seus amigos políticos, da “Liga dos Comunistas”. Toda a organização da Liga foi modificada por ele; de uma conspiração secreta passou a ser uma organização para a propaganda dos princípios comunistas, e só era secreta porque as circunstâncias existentes na época faziam do sigilo uma necessidade. Onde houvesse uma associação de operários alemães, a Liga também existia, e este foi o primeiro movimento socialista de caráter internacional, que tinha como membros ingleses, belgas, húngaros, poloneses, escandinavos. Esta foi a primeira organização do Partido Social Democrata. Em 1847 foi realizado um Congresso da Liga em Londres, onde Marx e Engels assistiram como delegados; e eles foram convocados para escrever o célebre “Manifesto do Partido Comunista” — publicado pela primeira vez imediatamente antes da Revolução de 1848, e posteriormente traduzido em quase todas as línguas europeias.

O manifesto começa com uma análise das condições existentes da sociedade. E passa a mostrar como pouco a pouco a velha divisão de classes feudal desapareceu, e como a sociedade moderna foi dividida em apenas duas classes — a dos capitalistas, ou classe burguesa, e a dos proletários; dos expropriadores e dos expropriados; da classe burguesa em posse da riqueza e do poder sem nada produzir e da classe trabalhadora que produz riqueza, mas não possui nada. A burguesia, após usar o proletariado para lutar em suas batalhas políticas contra o feudalismo, usou o poder então adquirido para escravizar o proletariado.

Para a acusação de que o Comunismo visa “abolir a propriedade”, o Manifesto respondeu que os Comunistas visam apenas abolir o sistema burguês de propriedade, porque para nove décimos da Comunidade a propriedade já está abolida; para a acusação de que os Comunistas visam “abolir o casamento e a família”, o Manifesto respondeu perguntando que tipo de “família” e “casamento” eram possíveis para os operários, já que para eles o verdadeiro significado dessas palavras nunca existiu. Quanto a “abolir a pátria e a nacionalidade”, essas estão abolidas para o proletariado e, graças ao desenvolvimento da indústria, para a burguesia também. A burguesia tem feito grandes revoluções na história; ela revolucionou todo o sistema de produção. Sob suas mãos, foram desenvolvidos a máquina a vapor, o tear mecânico, o martelo-pilão a vapor, as ferrovias e navios a vapor de nossos dias. Mas a sua produção mais revolucionária foi a produção do proletariado, de uma classe cujas próprias condições de existência obrigam-na a destruir toda a sociedade real. O Manifesto termina com as palavras:

“Os comunistas recusam-se a esconder seus propósitos e suas opiniões. Declaram abertamente que os seus objetivos só poderão ser alcançados através da derrubada violenta de todas as condições sociais existentes. Deixem que as classes dominantes estremeçam diante de uma revolução comunista. Nela, os proletários nada têm a perder a não ser suas próprias correntes. Eles têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”

Entretanto, Marx continuou no jornal Brusseler Zeitung seu ataque contra o governo da Prússia e, novamente, o governo prussiano exigiu sua expulsão — mas, em vão, a Revolução de Fevereiro organizou um movimento entre os operários belgas, quando Marx, sem recusa alguma, foi expulso pelo governo da Bélgica. Entretanto, o governo provisório da França, através de Flocon, convidou-o a retornar a Paris, e este convite foi aceito. Em Paris ele permaneceu durante algum tempo, até depois da Revolução de Março, em 1847 quando retornou para Colônia, e lá fundou a Nova Gazeta Renana — o único jornal que representava a classe trabalhadora e tinha ousadia para defender os rebeldes de Junho de Paris. Em vão, vários jornais revolucionários e liberais denunciaram a Gazeta por sua audácia em atacar tudo aquilo que é sagrado e que desafia toda a autoridade — e que se encontra em uma fortaleza prussiana! Em vão, as autoridades, em virtude do Estado de Sítio, suspenderam o jornal por seis semanas. Este apareceu novamente sob os olhos da polícia. Sua reputação e circulação crescia à medida que os ataques lhe eram feitos. Após o Golpe de Estado de Novembro da Prússia, a Gazeta, nas manchetes de cada número, convocava as pessoas a recusarem os impostos e encontrarem a força pela força. Por isso, e por conta de certos artigos, o jornal foi duas vezes processado — e absolvido. Finalmente, após a revolta de maio (1849) em Dresden, Províncias Renanas e Alemanha do Sul, a Gazeta foi violentamente proibida. O último número - impresso em vermelho - foi publicado em 19 de maio de 1849.

Marx retornou a Paris, mas algumas semanas após a manifestação de 13 de junho de 1849, o governo francês deu a ele a opção de se retirar para a Grã-Bretanha ou deixar a França. Ele preferiu a última alternativa, e foi para Londres — onde viveu por trinta anos. Foi feita uma tentativa de publicar a Nova Gazeta Renana na forma de uma análise, publicada em Hamburgo, mas esta não foi bem sucedida. Imediatamente após o golpe de estado de Napoleão, Marx escreveu seu “18 Brumário de Luis Bonaparte” e, em 1853, “Revelações sobre o Processo dos Comunistas de Colônia” — onde revelou as tramas infames do governo e da polícia da Prússia.

Após a condenação dos membros da Liga Comunista em Colônia, Marx afastou-se da vida política ativa durante algum tempo, dedicando-se aos seus estudos económicos no Museu Britânico, contribuindo com editoriais e correspondências à Tribuna de Nova Iorque, e escrevendo panfletos e prospectos atacando o regime de Palmerston, amplamente divulgados por David Urquhart.

Os primeiros frutos de seus longos e dedicados estudos sobre a Economia Política surgiram em 1859 na “Crítica à Economia Política” — uma obra que apresenta a primeira exposição de sua Teoria de Valor.

Durante a Guerra Italiana, Marx, no jornal alemão “O Povo”, publicado em Londres, denunciou o Bonapartismo, que se escondia sob a aparência da aprovação liberal para as nacionalidades oprimidas, e a política prussiana que, sob o disfarce de neutralidade, pretendia pescar em águas agitadas. Naquela ocasião, foi preciso atacar Carl Vogt que, a serviço do “assassino da meia-noite”, estava incentivando a neutralidade alemã. Deliberadamente caluniado por Carl Vogt, Marx respondeu a ele e a outros cavalheiros de sua laia em “Herr Vogt”, em 1860, acusando Vogt de estar a serviço de Napoleão. Só dez anos mais tarde, em 1870, comprovou-se que esta acusação era verdadeira. A Defesa Nacional do governo francês publicou uma lista de mercenários bonapartistas e abaixo da letra V apareceu: Vogt, recebeu, em agosto de 1859, 10.000: francos”. Em 1867, Marx publicou em Hamburgo sua principal obra: “O Capital”, uma reflexão que retomarei no próximo número da Progress.

Entretanto, o movimento operário havia avançado tanto que Karl Marx poderia pensar em executar um plano há muito tempo almejado — a fundação de uma Associação Internacional dos Trabalhadores em todos os países mais avançados da Europa e América. Em abril de 1864, foi realizado um encontro público para expressar solidariedade com a Polônia. Esse encontro trouxe operários de várias nacionalidades e, então, decidiu-se fundar a Internacional. E, em 28 de setembro de 1864, foi realizado um encontro, presidido pelo Professor Beesley no St. James’ Hall. Foi eleito um conselho geral provisório, e Marx redigiu o Discurso Inaugural e as Medidas Provisórias. Neste discurso, após um terrível quadro de miséria das classes trabalhadoras, mesmo nos anos da chamada prosperidade comercial, ele evoca os operários de todos os países para se associarem, e, quase vinte anos antes no Manifesto Comunista, ele concluiu com as palavras: 

“Proletários de todos os países, uni-vos!” As “Medidas” afirmam as razões para a fundação da Internacional:

“Considerando,
Que a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras; que a luta pela emancipação das classes trabalhadoras significa não uma luta por privilégios e monopólio de classe, mas por direitos e deveres iguais, e a abolição de todo regime de classe;
Que a submissão econômica do operário ao monopolizador dos meios de trabalho, ou seja, as fontes de vida, está na base da servidão em todas as suas formas de miséria social, degradação mental e dependência política;
Que a emancipação econômica das classes trabalhadoras é, portanto, o grande objetivo para o qual todo movimento político deve estar subordinado como um meio;
Que todos os esforços que visam o grande final fracassaram até agora por falta de solidariedade entre as várias divisões de trabalho em cada país e pela ausência de laço de união fraternal entre as classes trabalhadoras de diferentes países;
Que a emancipação do trabalho não é um problema local nem nacional, mas um problema social que engloba todos os países onde existe a sociedade moderna, e que depende da sua solução sobre a concorrência, prática e teórica, dos países mais avançados;
Que a renovação das classes trabalhadoras nos países mais industrializados da Europa, ao despertar uma nova esperança, adverte solenemente contra uma recaída nos antigos erros e clama pela associação imediata dos movimentos ainda desunidos.
Por essas razões
Foi fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores.”

Para dimensionar a importância de Marx na Internacional seria preciso escrever uma história da própria Associação — pois, além de ser secretário correspondente da Alemanha e Rússia, ele foi o espírito de liderança de todos os conselhos gerais. Os Discursos, com raríssimas exceções — desde o Inaugural ao último — sobre a Guerra Civil na França”, todos foram escritos por ele. Neste último discurso, Marx explicou o real significado da Comuna — “essa esfinge que tanto atormenta o espírito burguês”. E com palavras tão fortes quanto belas, ele qualificou o governo corrupto de “deserção nacional que abandonou a França nas mãos da Prússia”, denunciou o governo de homens como o falsário Jules Favre, o agiota Perry e o três vezes infame Thiers, esse gnomo monstruoso. Após contrastar os horrores perpetrados pelos Versailistas e a devoção heróica dos operários parisienses, que morreram pela preservação da república da qual M. Perry agora é o Primeiro-Ministro, Marx conclui:

“A Paris dos operários com sua Comuna será para sempre celebrada como o arauto glorioso de uma nova sociedade. Seus mártires são consagrados no grande coração da classe trabalhadora. A história de seus exterminadores já está pregada naquele pelourinho eterno do qual nem todas as orações de seus padres vão resgatá-los”.

A queda da Comuna colocou a Internacional em uma posição impossível. Era preciso mudar o Conselho Geral de Londres para Nova Iorque, e essa decisão, por sugestão de Marx, foi tomada pelo Congresso de Haia em 1873. Desde então, o movimento tomou outra forma; a relação contínua entre os proletários de todos os países — um dos milhares frutos da Associação Internacional — mostrou que já não há mais necessidade de uma organização formal. Mas de qualquer forma, o trabalho continua e deve continuar enquanto existir as atuais condições da sociedade.

Até 1873, Marx havia se dedicado quase que totalmente ao seu trabalho, embora este tivesse sido postergado por alguns anos por problemas de saúde. O segundo volume d’O Capital, sua principal obra, será editado pelo seu mais velho, mais verdadeiro e mais querido amigo, Frederick Engels. Há outros volumes d’O Capital que também poderão ser publicados.

Limitei-me nos detalhes estritamente históricos e biográficos do HOMEM. De sua personalidade marcante, sua imensa erudição, seu espírito, humor, gentileza e compaixão não dá para falar. Para somar todos

“os elementos
tão misturados nele que a Natureza poderia se levantar,
E dizer a todo o mundo, Este era um Homem!”

Eleanor Marx. (Maio de 1883)


terça-feira, 21 de maio de 2013

O mito do capitalismo “natural”


Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta-competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão derrubando tal crença.

Por Rafael Azzi | Imagem: Marinus van ReymerswaeleO banqueiro e sua esposa

O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que somos  essencialmente individualistas e agressivos.

Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos sobre a natureza humana.

O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”.

Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A narrativa histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.

O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue, sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas. Além disso, ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de outras pessoas e outras gerações.

Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por um conjunto de teorias científicas. O darwinismo social é uma interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana. Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade humana. Dessa forma, características como individualismo, agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução. Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o modelo natural a ser adotado.

Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista. Já se observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um dos animais mais sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato: vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de coletividade e de comunidade.

Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia. Os neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo algo. Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação ou duplicação interna dos atos de outros.

Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao observar alguém sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também. Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.

A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo em que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo grupo. Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado diferente, distante e, eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza humana.

Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o questionamento. Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um menino de rua”. Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular constantemente o egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.

Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento, mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.