sábado, 20 de abril de 2013

Das trincheiras do conflito fundiário à história da cidade: o caso do Horto Florestal do Rio de Janeiro

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Por Laura Olivieri

No dia 4 de abril de 2013, agentes da Polícia Federal e do Batalhão de choque da PM chegaram ao Horto Florestal do Rio de Janeiro, a mando de uma juíza federal da 23ª Vara Federal, Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, que sentenciou uma liminar a favor da reintegração de posse para o Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IPJBRJ) de uma casa que estaria em “área de risco” e “dentro do parque”.

Essa injustiça aconteceu a despeito de a Superintendência de Patrimônio da União (SPU) —legítima gestora das terras da União em conflito fundiário nesse caso— ter determinado na Advocacia Geral da União (AGU) a suspensão de todas as ações de reintegração de posse referentes à essa querela, justamente por entender que cabe a ela, SPU, legislar sobre a posse de terras que são propriedade da União e que as mesmas podem e devem, desde a constituição de 1988, assumir a responsabilidade social do Estado em benefício de trabalhadores residentes há mais de cinco anos no lugar.

No Horto, as famílias de moradores são posseiras históricas, visto que residem há décadas e, em alguns casos, há séculos na região. Igualmente posseiro histórico dessas terras é o Jardim Botânico, apesar do equívoco reafirmado constantemente pelo discurso hegemônico de atribuir a propriedade das terras do Estado a essa instituição. Portanto, a primeira construção que esse artigo busca desmobilizar é de que a comunidade do Horto estaria “dentro do Jardim Botânico”. Isso não é verdade e essa falácia precisa ser desconstruída, a partir do conhecimento histórico sobre a região do Horto e divulgada.

O Horto Florestal do Rio de Janeiro existe oficialmente no mapa da cidade desde 1875. Antes, contudo, a região já era ocupada por senhores e trabalhadores escravos de um Engenho de açúcar fundado em 1578 por Mem de Sá, chamado Engenho D´El Rey —e que mudou de nome e de sede em 1695, passando a se chamar Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. Já no século XVIII o Horto sediava uma Fazenda de café cuja casa Grande era pioneira no Brasil em seu estilo arquitetônico: O Solar da Imperatriz.

O Parque Jardim Botânico foi fundado por D. João VI em 1811 e trouxe a terceira onda populacional da região, composta por trabalhadores escravos daquela grande obra, a terceira oficialmente fundada no local pela Coroa.

O Horto sempre foi palco da história oficial de nossa cidade. Igualmente, foi lugar do quilombismo histórico nas matas da Freguesia da Gávea, tendo abrigado, perto de 1888, um importante reduto de quilombolas  [2]: o mocambo das Margaridas (SILVA, 2003, p. 74)  [3], rota de fuga para os Quilombos da Sacopã (na atual Fonte da Saudade) e das Camélias (no atual Alto Leblon). Os moradores guardam essa memória e são resilientes em sua resistência histórica.

No dia quatro de abril houve cinco horas de negociações pacíficas, embora as forças federais e militares estivesses presentes nas trincheiras do conflito. Encontravam-se também alguns parlamentares e seus representantes bem como quadros da SPU, da OAB e da Comissão parlamentar de Direitos Humanos, os quais intermediavam as negociações de paz entre moradores, lideranças comunitárias e agentes federais encarregados da ordem de despejo.

Graças à adesão dos intermediários e à atuação da presidente da AMAHOR e do advogado que apoia esta associação de moradores foi possível a construção de um acordo em que os moradores se mudaram temporariamente para dois imóveis da União enquanto aguardam a autorização para retornarem ao Horto, seu lugar de origem e de identidade, quando da implementação da Regularização Fundiária proposta pela SPU, a legítima gestora das terras em conflito.

A SPU contratou uma pesquisa de mapeamento e diagnóstico da UFRJ que, em dezembro de 2010 concluiu sua análise e a encaminhou para avaliação das partes envolvidas na querela. A comunidade aprovou a proposta, ainda que nela houvesse algumas orientações de remanejamento de casas em que estivessem em locais de risco (risco aqui entendido como socioambiental, ou seja, para o meio ambiente e sobretudo para o próprio morador devido a condições adversas de moradia). O IPJBRJ a recusou alegando que precisava de espaço para expandir o seu arboreto, patrimônio público natural, e para o avanço das pesquisas botânicas. Causas nobres de fato, mas não mais importantes do que a vida humana e o direito humano fundamental à moradia de famílias tradicionalmente enraizadas no território.

A proposta de Regularização Fundiária apresentada pela SPU foi conduzida com ética administrativa, competência acadêmica e conhecimento técnico suficientemente notórios e com a legitimidade política da instituição gestora das terras da União e responsabilidade social.   O estudo ainda levou em consideração um levantamento realizado pelo ITERJ, em 2005 e se baseou nos critérios do direito à moradia e das obrigações sociais do Estado e suas propriedades, ambos referenciais importantes da constituição brasileira de 1988 e marcos teóricos do processo de democratização das instituições nacionais. Portanto, afirmar que a SPU teria conduzido com improbidade administrativa o processo acima exposto é um outro construto falacioso que esse texto busca desmentir.

Voltando à primeira desconstrução a que nos propusemos, é importante que se rememorem dados. Até os anos 1950 havia uma fronteira espessa e pantanosa entre o parque e a comunidade. No final dessa década, uma tempestade arrancou o bambuzal que fazia a divisa natural.

Nessa época, após o temporal, o Jardim Botânico permitiu que os trabalhadores do parque e moradores do Horto construíssem casas mais perto do trabalho e muitos residentes da região do entorno do Solar da Imperatriz e do chamado Hortão se mudaram para a localidade adjacente, batizada de Caxinguelê. Para atender esses moradores do Horto, foi erguida a Escola Municipal Julia Kubitschek, fundada pelo presidente Juscelino Kubitschek e que era um dos marcos da fronteira. Do outro lado, no sopé da colina por onde passa o Aqueduto histórico do Horto (construído por escravos no século XVIII para o abastecimento de água na região da Lagoa Rodrigo de Freitas  [4]) havia um portão que delimitava os dois espaços, hoje conflitantes.

Mas foi somente nos anos 1990 que o Jardim Botânico se tornou Instituto de pesquisa e começou a expandir o seu arboreto, justamente em direção à comunidade. Se hoje algumas casas do Caxinguelê estão “dentro do parque” como se afirma no discurso hegemônico, elas assim estão porque foi o IPJBRJ que avançou e as incorporou dentro dos novos limites de seus portões. Portanto, é imperativo desmentir que os moradores do Horto são invasores…

Nessa mesma década, o IPJBRJ obteve a posse do Solar da Imperatriz para nele fundar a Escola Nacional de Botânica. Dali em diante foi fácil argumentar que a região situada entre o monumento e o arboreto era toda território do Instituto. Mas não é assim porque nessa linha reta que o IPJBRJ quer traçar (e vem traçando com abertura de estradas no Horto, à beira do rio) há centenas de casas, famílias e memórias que não podem ser suprimidas pela necessidade da pesquisa botânica e da expansão do que quer que seja. Não sem antes se considerar as vidas e os direitos humanos instalados ali, historicamente.

Por conhecer essa história a fundo, é meu dever, como historiadora, repassá-la adiante. A missão de transmiti-la é do Museu do Horto, projeto social de memória que eu construí com os moradores do Horto para reafirmar a sua identidade histórica no lugar desse conflito. A razão de interpretar é do leitor e a capacidade de aceitar ou não as verdades e as injustiças é da consciência de cada cidadão.

Vale a pena assistir o vídeo em que Emília Maria de Souza, liderança comunitária do Horto, fala as verdades à imprensa no dia da reintegração de posse sobre os acontecimentos da manhã do dia 4 de abril. E elogia o 23º Batalhão da PMERJ.  A seguir há uma galeria de fotos tiradas por Pedro Marins Maciel e Ana Paula Amorim. Muitas das informações aqui apresentadas foram coletadas com o trabalho de memória oral. Trechos de depoimentos dos moradores foram selecionados e apresentados no documentário   Horto Lugar de memórias (Museu do Horto, 2010).


 
[1]   Historiadora, doutora em Serviço Social, coordenadora técnica do Museu do Horto (www.museudohorto.org.br) e coordenadora de projeto do Museu da Pessoa (  www.museudapessoa.net  ).
 
[2]   Quilombolas eram escravos que resistiam ao sistema colonial escravista que se refugiavam normalmente nas matas e buscavam ressignificar costumes e crenças africanos.
 
[3]   SILVA, Eduardo.  As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura  . São Paulo: Cia das Letras, 2003.
 
[4]   A Lagoa chamava-se nessa época de Lagoa de Sacopenapã, nome indígena.
 
 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Carta para ‘O Globo’: A Venezuela e os erros que têm sido sistematicamente cometidos

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Por Victor Leonardo de Araujo

Prezada Senhora Sandra Cohen

Editora de Mundo de O Globo

Já é sabido que o jornal O Globo não nutre qualquer simpatia pelo governo do presidente venezuelano Hugo Chávez, e tem se esforçado a formar entre os seus leitores opinião contrária ao chavismo – por exemplo, entrevistando o candidato Henrique Caprilles sem oferecer ao leitor entrevista com o candidato Nicolás Maduro em igual espaço. Isto por si já é algo temerário, mas como eu não tenho a capacidade de modificar a linha editorial do jornal, resigno-me. O problema é que o jornal tem utilizado sistematicamente dados um tanto quanto estranhos na sua tarefa de formar a opinião do leitor. Sou professor de Economia da Universidade Federal Fluminense e, embora não seja “especialista” em América Latina, conheço alguns dados sobre a Venezuela e não poderia deixar de alertá-la quanto aos erros que têm sido sistematicamente cometidos.

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Como parte do esforço de mostrar que o governo Chávez deixou a economia “em frangalhos”, o jornalista José Casado, em matéria publicada em 15/04/2013 (“Economia em frangalhos no caminho do vencedor”) informa que o déficit público em 2012 foi de 15% do PIB. Infelizmente, as fontes desta informação não aparecem na reportagem (apenas uma genérica referência a “dados oficiais e entidades privadas”!!!), uma falha primária que nem meus alunos não cometem mais em seus trabalhos. Segundo estimativas apresentadas para o ano de 2012 no “Balanço Preliminar das Economias da América Latina e Caribe”, da conceituada Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), o déficit foi de 3,8% do PIB, ligeiramente menor do que no ano anterior, mas muito inferior ao apresentado pelo jornal. Caso o jornalista queira construir a série histórica para os resultados fiscais para a Venezuela (e qualquer outro país do continente), pode consultar também as várias edições do “Estudio Económico” também da Cepal. Para poupar o seu trabalho: a Venezuela registrou superávit primário de 2002 a 2008: 2002: 1% do PIB; 2003: 0,3; 2004: 1,8; 2005: 4,6; 2006: 2,1; 2007: 4,5; 2008: 0,1; e déficit nos anos seguintes: 2009: -3,7% do PIB; 2010: -2,1; 2011: -1,8; 2012: -1,3. O déficit é decrescente, mas bem distante dos 15% do PIB publicados na matéria. Afirmar que o déficit público na Venezuela corresponde a 15% do PIB tem sido um erro recorrente, e também aparece na matéria intitulada “Onipresente Chávez”, publicada na véspera, também no caderno “Mundo” do jornal O Globo em 13/04/2013. A este propósito, tenho uma péssima informação a lhe dar: diante de um quadro fiscal tão saudével, o presidente Nicolás Maduro não precisará realizar ajuste fiscal recessivo, e terá condições de seguir com as políticas de seu antecessor.

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A matéria do dia 15/04/2013 possui ainda outros erros graves. O primeiro é afirmar que existe hiperinflação na Venezuela, e crescente. Não há como negar que a inflação é um problema grave na Venezuela, mas O Globo não tem dispensado o tratamento adequado para informar os seus leitores. A inflação na Venezuela tem desacelerado: foi de 20% em 2012, contra 32% em 2008 (novamente utilizo os dados da Cepal). Tudo indica que o jornalista não possui conhecimento em Economia, pois a Venezuela não se enquadra em qualquer definição existente para hiperinflação – a mais comumente utilizada é de 50% ao mês; outras, mais qualitativas, definem hiperinflação a partir da perda da função de meio de troca da moeda doméstica, situações bem distantes do que ocorre na Venezuela.

Outro equívoco é afirmar que “não há divisas suficientes para pagar pelas importações”. A Venezuela acumula superávits comerciais e em transações correntes (recomendo que procure os dados – os encontrará facilmente na página da Cepal). Esta condição é algo estrutural, e a Venezuela é a única economia latino-americana que pode dar-se ao luxo de não precisar atrair fluxos de capitais na conta financeira para financiar suas importações de bens e serviços. Isto decorre exatamente das exportações de petróleo.

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O problema, Senhora Sandra Cohen, é que os erros cometidos ao expor a situação econômica venezuelana não se limitam à edição do dia 15/04, mas tem sido sistemáticos e corriqueiros. Como parte do esforço de mostrar que o governo Chávez deixou uma “herança pesada”, a jornalista Janaína Figueiredo divulgou no dia 14/04 (“Chavismo joga seu futuro”) que em 1998 a indústria respondia por 63% da economia venezuelana, e caiu para 35% em 2012. Infelizmente, a reportagem comete o erro primário que o seu colega José Casado cometeu: não cita suas fontes. Em primeiro lugar, a informação dada pelo jornal é que a Venezuela era a economia mais industrializada do globo terrestre no ano de 1998. Veja bem: uma economia em que a indústria representa 63% do PIB é super-hiper-mega-industrializada, algo que sequer nos países desenvolvidos foi observado naquele ano, nem em qualquer outro. E a magnitude da queda seria digna de algo realmente patológico. Como trata-se de um caso de desindustrialização bastante severo, procurei satisfazer a minha curiosidade, fazendo algo bastante corriqueiro e básico em minha profissão (e, ao que tudo indica, o jornalista não fez): consultei os dados. Na página do Banco Central da Venezuela encontrei a desagregação do PIB por setor econômico e lá os dados eram diferentes: a indústria respondia por 17,3% do PIB em 1998, e passa a representar 14% em 2012. Uma queda importante, sem dúvida, mas algo muito distante da queda relatada por sua jornalista. Caso a senhora, por qualquer juízo de valor que faça dos dados oficiais venezuelanos, quiser procurar em outras fontes, sugiro novamente a Cepal, (Comissão Econômica para América Latina e Caribe). As proporções mudam um pouco (21% em 1998 contra 18% em 2007 – os dados por lá estão desatualizados), mas sem adquirir a mesma conotação trágica que a reportagem exibe. Em suma: os dados publicados na matéria estão totalmente errados.

O erro cometido é gravíssimo, mas não é o único. A reportagem ainda sugere que a Venezuela é fortemente dependente do petróleo, respondendo por 45% do PIB. Novamente, a jornalista não cita suas fontes. Na que eu consultei (o Banco Central da Venezuela), o setor petróleo respondia por 19% do PIB em 1998, contra pouco mais de 10% em 2012. Como a Senhora pode perceber, a economia venezuelana se diversificou.  Não foi rumo à indústria, pois, como eu mesmo lhe mostrei no parágrafo acima, a participação desta última no PIB caiu. Mas, insisto, a dependência do petróleo DIMINUIU, e não aumentou como o jornal tem sistematicamente afirmado.

A edição de 13/04/2012, traz outros erros graves. Eu já falei anteriormente sobre os dados sobre déficit público apresentados pela matéria assinada pelo jornalista José Casado (“Onipresente Chávez”). A mesma matéria afirma que a participação do Estado venezuelano representa 44,3% do PIB. O conceito de “participação do Estado na economia” é algo bastante vago, e por isso era importante o jornalista utilizar alguma definição e citar a fonte – mas isto é algo, ao que tudo indica, O Globo não faz. Algumas aproximações para “participação do Estado na economia” podem ser utilizadas, e as mais usuais apresentam números distantes daqueles exibidos pelo jornalista: os gastos do governo equivaliam a 17,4% do PIB em 2010 (contra 13,5% em 1997) e a carga tributária em 2011 era de 23% (contra 21% em 2000), nada absurdamente fora dos padrões latino-americanos.

Enfim, no afã de mostrar uma economia em frangalhos, O Globo exibe números simplesmente não correspondem à realidade da economia venezuelana. Veja bem: eu nem estou falando de interpretação dos dados, mas sim de dados que equivocados!

Seria importante oferecer ao leitor de O Globo uma correção dessas informações – mas não na forma de errata ao pé de página, mas em uma reportagem que apresente ao leitor a economia venezuelana como ela é, e não o caos que O Globo gostaria que fosse.

E, por favor, nos próximos infográficos, exibam suas fontes.


Atenciosamente,



Victor Leonardo de Araujo



[N.E.] Está carta  está circulando hoje (18/04/2013) por diversos perfis no Facebook e Twitter e outros locais na internet , foi publicada inclusive nos seguinte sites:






quinta-feira, 18 de abril de 2013

Como Luiz Fux compromete o Judiciário brasileiro

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Relações perigosíssimas de ministro do STF com escritórios de advocacia, e sua leviandade constante, põem decisões do tribunal sob grave suspeita.

Por Luis Nassif, em seu blog

Com seus modos destrambelhados, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa tornou-se especialista em desmoralizar grandes bandeiras que levanta.

Esqueçam-se os modos para se analisar um dos temas que levantou: a promiscuidade entre Ministros do STF e grandes escritórios de advocacia.

O caso Sérgio Bermudes é exemplar. Seu escritório patrocina grandes ações contra o poder público e, ao mesmo tempo, emprega a filha de Luiz Fux, a esposa de Gilmar Mendes e o filho do desembargador Adilson Macabu, que trancou a Satiagraha. Agora, está oferecendo um mega regabofe para o mundo jurídico comemorar os 60 anos de idade de seu amigão, o próprio Fux.

Vamos a Fux e seu ultimo feito: a derrubada da PEC 62/2009 que instituiu regime especial para pagamentos de precatórios emitidos até aquela data.

Sabe-se que parte expressiva dos precatórios está em mãos de escritórios de advocacia, que adquiriram com enormes descontos de clientes que necessitavam de caixa e não tinham esperança de receber o pagamento  em vida.

Com o voto decisivo da Fux, o STF votou pela procedência parcial das  Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4357 e 4425 contra a PEC, ajuizadas, respectivamente, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela CNI (Confederação Nacional da Indústria).

A Emenda havia significado um enorme avanço para o tema.

Sabia-se ser impossível o pagamento imediato do passivo acumulado. Concordou-se então com o parcelamento por 15 anos e com garantias inéditas para os credores. Houve a vinculação de parte da Receita de cada ente para pagamento da dívida; e o instrumental jurídico contra futuros calotes: a possibilidade de sequestro da receita.

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça), interpretando a Constituição, entendeu que a PEC definia um comprometimento da receita com precatórios que assegurava que, ao final de 15 anos, todos os precatórios seriam liquidados.

Mais que isso: com a previsibilidade instituída pela PEC, alguns governantes – como o prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o governador Geraldo Alckmin – já tinham acenado com a possibilidade de aumentar o percentual de receita vinculada para pagamento.

O Supremo liquidou com tudo.

O padrão Fux de atuação

Fux comportou-se com a mesma leviandade com que atendeu a seu padrinho político, governador Sérgio Cabral, na questão dos royalties.

Na ocasião, para impedir que o Congresso derrubasse o veto da presidência da República à Lei, sem passar pela análise de mérito, Fux decidiu que o Congresso deveria analisar todos os vetos pela ordem cronológica. Paralisou os trabalhos legislativos. Questionado, alegou não ter tomado conhecimento, antecipadamente, das consequências de seu ato. Ora, não se trata de um juizado de pequenas causas, mas da mais alta corte do país.

Agora, repete a irresponsabilidade.

De um lado, reinstituiu uma das maiores jogadas dos precatórios – a correção da dívida por índices extremamente elevados, a propósito de dar isonomia com as correções que o Estado cobra dos seus devedores.

Por outro, paralisou o pagamento geral. Os diversos entes federados deixaram de pagar por impossibilidade de quitar à vista e pelo fim da ameaça de sequestro das receitas. Voltou-se à estaca zero.

Alertado pela OAB, Fux voltou atrás e decidiu suspender a medida para precatórios que vêm sendo pagos, mantendo-a para os novos. Um nonsense completo: a PEC questionada legislava apenas sobre os antigos.

O próprio Marco Aurélio de Mello, que tem um histórico de reação contra abusos do Estado, votou a favor da manutenção da PEC, com um voto que poderia modular eventuais abusos sem comprometer os avanços que ela consolidava. Ocorriam abusos com os leilões, que colocavam na frente os precatórios de quem oferecesse o maior desconto.

Agora, volta-se à estaca zero em relação aos precatórios.

Um STF que não estuda seus casos

Da mesma maneira que no caso da Lei da Imprensa, o STF vota sem analisar consequências. Nos dois casos, Marco Aurélio de Mello alertou para os desdobramentos, para o vácuo jurídico que seria criado.

Mas o lobby foi maior que o bom senso.

Seja qual for sua motivação, é evidente que, à luz do seu histórico nos episódios de indicação para Ministro, do seu contato estreito com grandes escritórios, Fux tornou-se um personagem sob suspeição.

O melhor favor que poderia receber seria o PT entrar com uma ação contra ele, a propósito do mensalão. Seria fornecer a blindagem de que ele necessita.

Fux não é problema do PT: é problema do sistema jurídico brasileiro.


terça-feira, 16 de abril de 2013

A cidade e o futuro do mundo, segundo Aaron Swartz

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Crônica do “The New Yorker” sobre vida do grande ativista pela liberdade na internet é magnífica. Mas provavelmente erra sobre verdadeira causa de seu suicídio

Por Rafael Zanatta, em E-mancipação

Há menos de um mês, a revista estadunidense The New Yorker publicou uma matéria sobre Aaron Swartz intitulada Requem for a Dream. Trata-se de uma belíssima crônica escrita por Larissa MacFarquhar, resultante de um robusto trabalho investigativo sobre a genialidade do cyberativista tragicamente morto em janeiro de 2013 e as percepções das pessoas próximas a Aaron com relação ao modo como ele enfrentou o polêmico processo criminal (iniciado em razão do download de milhares de artigos acadêmicos pela plataforma JSTOR, através de um computador ligado na rede do Massachusetts Institute of Technology) que motivou sua morte.

A crônica, entretanto, erra ao focar no “lado sombrio” de Swartz e nas relações de causalidade que podem explicar seu suicídio. Ao meu ver, o caso de Aaron Swartz não deve ser objeto de reflexão para possíveis explicações causais (quais fatores psicológicos e biológicos levaram ao suicídio?). Buscar uma explicação é colocar-se em uma posição de conforto (construir sentido). Na minha leitura, o suicídio de Swartz – ocorrido há quase três meses – deve levar ao desconforto reflexivo e um debate sério sobre cidadania e engajamento político. Os projetos nos quais Aaron se envolveu e as causas pelas quais ele lutou (compartilhamento de informação, modelos alternativos de copyright e aproveitamento do potencial conectivo da internet para ativismo cívico) forçam um trabalho constante de questionamento sobre as limitações do status quo e o potencial de empoderamento ligado a inovações.


O que diz o texto do The New Yorker?

Requiem for a Dream é um impressionante trabalho jornalístico com características de literatura. O texto mistura relatos de pessoas próximas a Swartz, antes e depois de seu suicídio, com dados e informações pouco discutidas sobre a formação educacional transgressora de Aaron, sua condição de saúde, sua fragilidade emocional e o impacto do processo criminal em sua vida.

MacFarquhar constrói uma narrativa de modo a tentar convencer o leitor de que há ligações entre a colite ulcerosa de Aaron (doença que pode levar a comportamentos impulsivos) e seu espírito livre, nunca preso a padrões comportamentais comuns. Para a jornalista, o fato de Swartz nunca ter se acostumado com as regras e imposições do sistema educacional estadunidense – Aaron abandonou não somente a escola, mas também a Universidade de Stanford, por considerar tais instituições dotadas de rotinas estúpidas e pessoas limitadas a formas de pensar pré-estabelecidas – pode ter gerado duas consequências: ao mesmo tempo que garantiu liberdade e autonomia intelectual a Aaron, diminuiu sua paciência e capacidade de lidar com procedimentos burocratizados. A análise corrobora a interpretação do professor Lawrence Lessig, um dos idealizadores do Creative Commons. Na opinião de Lessig, “[Aaron] estava livre de todas as experiências disciplinadoras da vida. Seus pais o tiraram da escola cedo, o que foi ótimo pois isso permitiu que ele se tornasse alguém que não era o produto da puberdade em uma escola pública. Mas isso foi ruim no sentido de que deu a ele a confiança sobre seus próprios julgamentos, o que é perigoso“.

MacFarquhar inicia o texto com um recurso narrativo interessante. A jornalista constrói uma espécie de mosaico, com frases de pessoas próximas a Swartz – como Ben Wikler, Taren Kauffman (namorada) e Quinn Norton (ex-namorada de Aaron) – centradas no mesmo tema: o alto risco de suicídio de Aaron. Os depoimentos são colocados propositalmente no início do texto para construir uma tese: as pessoas mais próximas de Aaron temiam o suicídio. Essa tese é desenvolvida a partir de uma narrativa que envolve um clima de tensão em torno da morte de Swartz. Não há uma explicação linear ou cronológica sobre os fatos. Depoimentos após o suicídio são intercalados com trechos de textos escritos por Aaron em seu blog entre os anos de 2004 e 2012. Através deste recurso, a autora tenta demonstrar que há indícios de um comportamento potencialmente suicida nas percepções de Aaron sobre a vida. Larissa MacFarquhar usa colagens de posts para reforçar a ideia de que Swartz enxergava sua vida como uma imposição (“I’m not such a nuisance to the world, and the kick I get out of living can, I suppose, justify the impositions I make on it. But when life isn’t so fun, well, then I start to wonder. What’s the point of going on if it’s just trouble for us both? My friends will miss me, I am told… But even so, I feel reticent. Even among my closest friends, I still feel like something of an imposition, and the slightest shock, the slightest hint that I’m correct, sends me scurrying back into my hole“). A ideia defendida é de que o suicídio, considerado trágico e inesperado, era uma preocupação recente dos mais próximos.

A crônica é rica em depoimentos de amigos, parentes e colegas de trabalho sobre o modo como Aaron se comportava. Há detalhes interessantes sobre como que Swartz enxergava as relações de poder. Na juventude, ele sentia um tremendo desconforto em estar em uma posição de comando, mesmo nos casos em que tais relações  eram previsíveis e mediadas por instituições formais ou informais. Aaron, por exemplo, não gostava de restaurantes em razão do desconforto de ser atendido por um garçom. Ele considerava humilhante estar na posição de receber ordens, preparar e servir outrem. Em bibliotecas, Aaron raramente pedia ajuda para a bibliotecária. Por incrível que pareça, ele sentia um enorme desconforto em interromper a atividade da funcionária, mesmo sabendo que ela estava ali justamente para atendê-lo (e sendo paga para isso). De certo modo, através destes exemplos, MacFarquhar tentar apresentar uma outra tese na crônica: Aaron Swartz sentia-se repelido por relações de dependência e pela relação comando-obediência.

Aparentemente, a matéria do The New Yorker tenta relacionar essa tese com o suicídio. O texto é muito rico ao relatar como ocorreu a prisão de Swartz em 2011, em razão do processo criminal iniciado pela promotoria de Massachusetts. O processo forçou uma primeira relação de dependência de Swartz com profissionais da área jurídica, em especial advogados. Após o pagamento da fiança, Swartz tornou-se dependente destes profissionais, que recomendaram sigilo total para enfrentar o caso. De acordo com a estratégia de defesa, tornar o caso público poderia piorar a situação. Para Aaron, era inconcebível que suas ações fossem consideradas ilegais. Ele tinha uma concepção muito clara de que download não era roubo. Ainda, Aaron não conseguia encontrar um motivo razoável para a existência do processo penal e do pedido de condenação de 35 anos de prisão. Como é sabido, o Massachusetts Institute of Technology retirou a ação civil movida contra Swartz pelo download dos artigos acadêmicos e Aaron assinou um termo de compromisso em que prometia não disponibilizar tais arquivos publicamente. Os promotores queriam que Aaron se declarasse culpado. Entretanto, ele se recusou a fazer tal declaração (plea guilty).

A crônica tenta mostrar que o processo destruiu Aaron psicologicamente. Nesse aspecto, concordo com MacFarquhar. Após a repercussão que foi dada no Brasil ao texto que escrevi sobre Aaron, passei a ler cuidadosamente alguns posts de seu bloge a resenha de alguns livros. Swartz lia muito, mais de cem livros por ano. Curiosamente, em meados de 2011 – após o início do processo criminal -, Swartz leu o livro The Trial (O Processo), do escritor tcheco Franz KafkaHá ali uma relato particular que deixa claro como Swartz sentia-se angustiado pela pavorosa e surreal burocracia do sistema judiciário. O trecho a seguir, em especial, é brilhante e revela o desespero kafkiano diante do sistema: “O Processo, por Franz Kafka. Uma obra profunda e magnífica. Eu nunca tinha lido muito Kafka e havia sido levado a crer que era uma obra paranoica e hiperbólica, uma ficção distópica no estilo de George Orwell. No entanto, eu a li e a achei precisamente exata – cada detalhe singular perfeitamente espelhado na minha própria experiência. Isso não é ficção, mas sim documentário. (…) Uma vívida ilustração de que burocracias, uma vez iniciadas, continuam a fazer qualquer coisa sem sentido que foram programadas a fazer, independentemente se as pessoas dentro dela particularmente querem fazer ou mesmo se é uma boa ideia“.

Para a matéria do The New Yorker, a morte do “gênio” Aaron Swartz é melhor compreendida diante de alguns fatores específicos, como a doença intestinal de Aaron e a propensão a comportamentos impulsivos, seu desconforto com relações de poder, sua alta privacidade para determinados temas, sua reclusão diante do processo penal, a dependência diante dos advogados e o pavor de ser considerado criminoso (felon) diante de suas ambições de reforma da política estadunidense para construção de um mundo melhor. A matéria tenta não somente informar, mas também apresentar uma espécie de tese a partir de métodos empíricos qualitativos. A partir da percepção das pessoas mais próximas de Aaron Swartz (suas interpretações e narrativas), MacFarquhar tenta defender a ideia de que o suicídio foi uma saída impulsiva diante da incapacidade de Swartz de lidar com os problemas existentes. Trata-se de um patchwork narrativo com pretensão explicativa.

Indo além da explicação: o legado de Swartz

Apesar dos aspectos elogiáveis do texto do The New Yorker, acredito que o caso de Swartz é muito mais do que uma simples história de suicídio, marcada pelas angústias psicológicas de uma pessoa supostamente fragilizada. Está claro, diante dos relatos disponíveis, que Swartz era uma pessoa diferente e frágil. Mas sua meteórica trajetória de vida – dos 26 anos de vida, 13 foram dedicados a questões ligadas à sociedade e à internet – mostra algo muito maior para o futuro da humanidade. Swartz queria mudar o mundo. Ele não queria desperdiçar sua vida com questões consideradas por ele desimportantes. Ele queria enfrentar as grandes questões de seu tempo (como compartilhar informação, criar arranjos de propriedade diferentes da lógica de um período passado, melhorar o bem-estar das pessoas, combater a corrupção da política e tornar a internet um instrumento de participação cívica). Ele se definia como um sociólogo aplicado - e acho que essa definição é bastante cabível: Swartz não queria simplesmente compreender como a sociedade se organiza e produz vida, queria também solucionar problemas sociais.

Seria o projeto swartziano um idealismo típico de um jovem? Pouco importa saber se essa ideia é ou não típica da juventude. Levar a sério Swartz não é discutir se ele era um idealista. Levar a sério Swartz é dar continuidade ao projeto de utilizar o conhecimento técnico para avançar o bem comum. É reconhecer que acidadania envolve uma obrigação moral de lutar contra a corrupção do sistema político.

Recentemente, o professor Lawrence Lessig deu uma grande contribuição ao legado de Aaron Swartz. No dia 19 de fevereiro, Lessig foi contemplado com a Roy Furman Chair na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Nos Estados Unidos, ao invés de se tornaram “professores titulares”, os docentes são homenageados com a cadeira - chair - de um antecessor. Trata-se do maior posto acadêmico dentro de uma instituição. Ao receber o prêmio da reitora Martha Minow, Lawrence Lessig realizou uma palestra intitulada Aaron’s Laws. A aula foi organizada às pressas e de forma turbulenta após o suicídio de Aaron Swartz, com quem Lessig conviveu por mais de dez anos. É admirável notar que Lessig aproveitou um momento de altíssimo prestígio pessoal (em uma das mais renomadas instituições de ensino do mundo) para explicar por que um rapaz de vinte e poucos anos era seu “mentor intelectual”.

A palestra de Lawrence Lessig estrutura-se em uma tese central e contra-intuitiva:os juristas deveriam celebrar hackers como Aaron Swartz. Para Lessig, utilizar o conhecimento técnico para avançar o bem comum deveria ser a preocupação por excelência dos juristas, bem como a preocupação de qualquer cidadão. Swartz – ironicamente processado por pessoas que fazem parte do staff responsável pela aplicação de sanções a quem descumpre normas impostas pelo Estado – deveria ser um ícone do que devemos fazer (e como devemos fazer).
Lessig faz uma excelente análise das áreas de atuação de Swartz em seus treze anos de ativismo. Ele a divide em três momentos (antes dos assuntos copyright/assuntos copyright/depois dos assuntos copyright). Lessig e Swartz trabalharam juntos no “segundo momento” da vida prática de Aaron (assuntos copyright) e desenvolveram o modelo Creative Commons. No entanto, Lessig ressalta que os atos mais significativos de Aaron ocorreram no “terceiro momento”, interrompido por seu suicídio. Swartz identificou que as questões de direitos autorais não eram tão importantes quando comparados com as questões do sistema político estadunidense, em especial a corrupção por interesses econômicos. Swartz utilizou de toda sua capacidade de solução de problemas e desenvolvimento de códigos para pensar em como os cidadãos poderiam ter uma participação política maior. Aaron mostrou a força do grassroot movement, do engajamento cívico de base. Foram suas ações iniciais contra o Stop Online Piracy Act (SOPA) que resultaram nos gigantescos protestos de janeiro de 2012. Tanto Aaron quanto Lessig focaram em grandes questões políticas (como hackear o sistema? como participar do processo legislativo? como garantir que o direito atenda ao bem comum?).

Analisar a vida de Aaron Swartz implica em dar atenção especial a essas questões. Na correta interpretação de Lessig, Swartz não estava preocupado em corrigir “leis estúpidas” de propriedade intelectual, mas sim em corrigir a forma como são feitas leis estúpidas. Daí sua preocupação com o conhecimento e a informação. O insightteórico swartziano é claro: as pessoas precisam não somente entender como as coisas funcionam, mas precisam de ferramentas de participação e controle da democracia. Em síntese, Swartz tinha em mente uma noção idealizada de cidadania, pautada na ampla formação intelectual e na participação política. De diferentes modos, Swartz tentou concretizar esse ideal. Infelizmente, optou pelo suicídio como saída diante da opressão do sistema judiciário em um caso particular.

Não importa discutir se o suicídio foi um erro, tampouco compreendê-lo. O legado de Swartz é muito maior do que a decisão de 11 de janeiro. Ele é uma inspiração para a ação colaborativa transformadora. Ele sintetiza o que resta de esperança e idealismo em cada um de nós e impulsiona a ação prática voltada ao bem comum. Se o desafio contemporâneo é o combate à corrupção e o aprofundamento da democracia diante das tecnologias disponíveis, talvez não haja exemplo maior do que Aaron Swartz. Ele foi um exemplo de cidadão.


domingo, 14 de abril de 2013

O novo velho Mano Brown – 2ª parte da entrevista

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“Como um país como o Brasil pôde tolerar os números de mortes em São Paulo, em 2012? Ninguém vê?”


Leia a segunda parte da entrevista com o rapper Mano Brown, capa da edição 120 da revista Fórum

Por Glauco Faria, Igor Carvalho e Renato Rovai. Fotos de Guilherme Perez

Fórum – Você nunca pensou em se envolver com política?
 
Brown – Dá preguiça. Vou ser preso por agressão… Primeira reunião é agressão, é foda, tem de ter sangue frio.

Fórum – No Rio de Janeiro, o MC Leonardo saiu candidato. Você não acha que o movimento deveria lançar mais candidatos?

Brown – Não houve sucessos nas últimas eleições, é a ideia que falei da disputa do cantor de rap, do padre e do policial, foi isso que aconteceu. Houve candidatos com votação inexpressiva. O MC Leonardo pegou o Rio de Janeiro de cabeça pra baixo, tá todo mundo embriagado com a UPP. Ele fez o movimento contrário, eu falei pra ele: “Você vai bater de frente com a UPP? O povo tá do lado. Sua bandeira é essa, então é difícil ganhar”. Deixou de ter excesso, UPP é a contenção dos excessos. Vai ter cocaína em todo lugar, maconha em todo lugar, na farmácia, na padaria você compra, vai ter o funcionário que vende a maconhinha… O problema é o excesso, polícia dando tiro, facção trocando tiro, garoto novo com arma.

Fórum – Como você chegou no Marighella? Você pegaria em armas por algum desses motivos que falou aqui com a gente?

Brown – Pegaria. Não sou mais do que ninguém, mas pegaria. Não vejo por que não pegar, mesmo que eu fosse um mau soldado. Faria de tudo pra ser um bom soldado.

Fórum – E o Marighella, como você chegou a ele?
 
Brown – Eu tinha ouvido falar do Marighella há alguns anos, alguém disse que a gente era parecido até fisicamente, e é mesmo né, mano? Através da esposa de um rapper, amigo nosso, me falaram que ia sair um filme e o pessoal queria falar comigo, porque tinha tudo a ver, Marighella e Racionais. Aí entrei em contato com o pessoal do filme e peguei a missão de fazer a música.

Fórum – Você se surpreendeu com a história dele? 

Brown – Me identifiquei demais com ele, pra caralho, como pessoa. Gostava de futebol, samba, poesia, mulheres e não tinha medo de morrer, por isso ele é um líder até hoje.

Fórum – E religião, você tem proximidade com alguma delas?

Brown – Minha mãe é seicho-no-iê, comecei a ir para a igreja por influência de amigos, estudei em colégio de ensino adventista, então tenho essa proximidade. Mas nasci dentro do candomblé e convivi com as duas culturas, uma conflitando com a outra. Imagina se eu sou confuso?

O adventista não agride tanto o candomblé ou qualquer outra religião, mas o neopentecostal é mais forte nisso, até porque os integrantes são tudo ex-filhos de santo, a maioria.

Fórum – As igrejas evangélicas estão cada vez mais presentes nas periferias de São Paulo…

Brown – Já foram mais.

Fórum – Qual a sua opinião sobre algumas lideranças religiosas, alguns pastores que estão enriquecendo? 

Brown – O povo tá injuriado com esse duplo sentido deles, essa dúvida sobre a honestidade que deixam no ar. E outra, tá meio neutralizado esse avanço, o povo fica de olho nessa dúvida que eles deixam.
Fórum – E o que mudou?

Brown – O que mudou é esse monte de escândalos em que eles se envolvem. “Ah, o cara é representante de Jesus”, mas quem deu esse direito a ele? “Ah, Jesus falou…”. Então tá, falou pra ele e por que não falou pra mim?

Fórum – Eles nunca tentaram chegar em você?

Brown – Não. Eles xingam os Racionais na TV, mas sem saber. Vou na igreja, gosto da ideia e da fé. Gosto de ajudar, de descer a favela, ir na cadeira, sou devoto dessa ideia, seja do candomblé, do evangélico ou do comunista, o cara que coloca em prática o que Jesus falou.

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“Eu como e bebo por causa da pirataria, é minha rádio. Minha música nunca parou de tocar por causa da pirataria, ganhei e perdi na mesma proporção. Tá bom”
 
Fórum – Você falou de pegar em armas. Na periferia já não existem grupos de garotos falando em reagir, vingar essas chacinas?

Brown – Essa resposta você vai ver em sete ou oito anos. Essa ferida não vai cicatrizar, quem mora naquele lugar onde morreu o Lah não vai esquecer, os moleques vão crescer, mano. Quem viveu aquilo não vai esquecer.

Fórum – O governador Geraldo Alckmin, na sua opinião, está pecando por omissão ou é conivente com essa situação?

Brown – Peca por negligência, peca por prevaricação, por não executar a lei.

Fórum – Uns dois anos atrás, você disse que queria mudar sua imagem, que estava ficando “mapeada e óbvia”. Você mudou? Quem é o novo Brown?

Brown – O novo Brown não existe, porque esse termo “imagem” não existe, imagem é nada. Eu sou o Brown mais velho, macaco velho. Estou menos óbvio, menos personagem e mais natural. Comecei a tomar cuidado. Nunca fui oportunista, vivo de música, não sou um político que faz música. Eu não estava falando de chacina, de nada disso, estava preparando um disco de música romântica, aí começou a morrer gente aqui e tive de fazer alguma coisa.

Fórum – Você sempre teve uma visão crítica da mídia. O que acha dela hoje?

Brown – Ando muito chateado com a mídia por conta da chacina do final do ano. Dá para ver quem são os mais contestadores, eles são mais jovens e não têm forças. Os mais velhos têm espaço, mas são conservadores. Quem é da mídia e queria falar estava amarrado, e quem poderia falar fechou com a polícia, meio que concordando, entendendo mais a polícia do que a gente. Ontem (6 de fevereiro), em outra chacina em Guarulhos, mataram três irmãos nossos, filhos da mesma mulher, que já não tinham pai. Típico. A mulher de 40 perde os filhos de 15, 18 e 21 porque um polícia morreu na quebrada deles e mataram cinco para vingar.

Fórum – A chacina em que morreu o Lah realmente marcou você…

Brown – Muito, mano. Eu estava acompanhando antes daquilo, na véspera da eleição eu falei, em novembro; avisei de novo, aí depois vem essa chacina… Foi uma ação suicida, deram tiro com a bala da delegacia, foi como se dissesse assim: “Governador, você não é homem, o Estado não existe. Brasil, você é uma merda. Vem me pegar se vocês quiserem, matei sete pessoas no bar, com arma da polícia, e não vai dar em nada”. Deixou o recado. Como um país como o Brasil pôde tolerar os números de mortes em São Paulo, em 2012? Ninguém vê? ONU? Unicef? Qual a justificativa para tantas mortes? Não estamos em guerra. Queria saber como a Dilma lidou com isso.

Fórum – Sua relação com o Lula sempre foi forte.

Brown – É uma relação de respeito, sem badalação. Desde adolescente, eu votava no Lula, eu era simpatizante do PT, criei empatia. Ele é um cara honesto, gosto do Lula.

Fórum – E você ainda tem simpatia pelo PT?

Brown – Tenho. O PT, com todos os defeitos, ainda é a única coisa que a gente tem para lutar contra o PSDB, o partido do Alckmin, do Serra, da polícia tal, do delegado tal.

Fórum – Olhando para trás, após 25 anos de Racionais, você consegue identificar por que os Racionais ficaram tão grandes?

Brown – Porque o povo é muito grande. De cara, eu e o KL Jay, a gente trabalhava juntos, e falávamos que a periferia é a maioria absoluta e não tinha para ninguém. Se eles vierem com a gente, tá feito. O rap é a única coisa que sabia [fazer] e acredito nele até hoje.

Fórum – Quantos discos o Racionais vendeu?

Brown – Não tenho ideia, uns 2 ou 3 milhões.

Fórum – O que você pensa da pirataria?

Brown – Ótimo. Eu como e bebo por causa da pirataria, é minha rádio. Minha música nunca parou de tocar por causa da pirataria, ganhei e perdi na mesma proporção. Tá bom.

Fórum – Seu disco novo vai vir mais romântico mesmo? Você sempre falou de sua admiração por Marvin Gaye e Barry White, está se inspirando neles?

Brown – Continuo sendo o mesmo cara, interessado pelas coisas políticas do Brasil, pelo povo. Musicalmente, sempre gostei de música romântica, do Jorge Ben, Djavan, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho… Hoje em dia, as pessoas esperam do Brown aquele posicionamento combativo, de luta e guerra, mas aí é um personagem também, né? O Brown é um cara atuante, que tá buscando na vida novidade, força, inspiração, razões, buscando pessoas… É o que eu mais busco: pessoas. Quando as pessoas viram as costas e saem andando, você tem de saber por quê. Para dar continuidade ao trabalho, temos de caminhar pra frente, não voltar ao zero toda hora. A juventude precisa de rapidez, mobilidade de ideias, não dá pra ficar na mesma ideia todo dia. Seria uma atitude até covarde, fácil, ficar jogando mais lenha na fogueira. Então, você tem de buscar outras ideias, que passam pela raça também, com certeza.

Fórum – E essas novas ideias…

Brown – Passam pela raça, todas as ideias. Mas nenhuma ideia é desprezível.

Fórum – Você gosta de polêmicas, Brown?

Brown – O Brown está como sempre, velho e chato. Atuante, jamais calado ou inoperante. Tô aqui, ali, gesticulando, trazendo divisão de ideias, porque meu papel é esse também, trazer essas ideias, e tem de saber o que o povo quer também, não é só o que os intelectuais querem. Os comuns têm direito à opinião. E se a opinião dos comuns não for igual à dos intelectuais? Vai fazer uma ditadura, vai se isolar? Vai ter de interagir. Que nem quando escolheram o Serra, ficamos aqui, interagindo com as consequências da eleição do Serra [para prefeito, em 2004], encontrei gente na favela que votou nele. Quando a gente erra, o reflexo é violento.

Fórum – Você falou da eleição de policiais. A base de votos deles está na periferia. 

Brown – A base de voto de todo mundo. O público-alvo é a massa, os números estão aqui. Os partidos não conseguem se eleger com conceitos, é com números, com votos dos que não sabem o que estão fazendo e dos que sabem, dos brancos, índios, negros, confusos. Depois, quando estão lá em cima, decidem que direção tomar. Ter candidatos de dentro das comunidades seria bom, mas acho que isso ainda vai demorar um pouco. Do mesmo jeito que o rico se cerca com cerca elétrica, o pobre quer pular.

Fórum – Apesar de não ter candidato, a comunidade está exercendo um poder de pressão não pela via política, mas pela mobilização. Você vê que as pessoas estão experimentando novas formas de fazer política que não sejam necessariamente pelo voto?

Brown – Há quem diga que o povo que votou no Serra queria mudança, o que é uma forma de inteligência. Mas trouxe consequências gravíssimas na relação entre o povo e o poder, acabou o diálogo. Vamos ver o número de homicídios na periferia, não é possível que, por mais que sejam maquiados, que a informação seja negada, alguns excessos como essa chacina… No caso do DJ Lah, foi quando eu vi a revolta realmente, sete pessoas mortas em um lugar onde já tinha morrido um, prometida uma vingança… O povo vê a fragilidade, a opressão, o medo das famílias.

Um povo que não tinha noção de direito, de cidadania nenhuma, não sabe o que representa, o poder que tem, não confia em ninguém e, consequentemente, não respeita ninguém. Não vai respeitar o orelhão, não vai respeitar o ônibus, o que tem cheiro de sistema é alvo de agressões. É o orelhão que o moleque, por ignorância, quebra, até a casa onde ele picha. Então, a relação é entre seres humanos, não entre robôs, o comandante que está ali atrás da farda é um ser humano, o cara que dá a palestra na hora de formar o soldado é um ser humano, tem mulher, tem filhos. O que ele lê, o que assiste na TV, o que ele come, o que sofreu na infância dele pra ter esse comportamento?
  
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“Os comuns têm direito à opinião. E se a opinião dos comuns não for igual à dos intelectuais? Vai fazer uma ditadura, vai se isolar? Vai ter de interagir”

Fórum – Recentemente, você esteve em Nova York e encontrou o Criolo lá. Quando você sai do País, você vai nas periferias? Como você vê o comportamento da juventude nesses locais?

Brown – O negro brasileiro é caloroso, e o americano é arredio, é outro comportamento. Fui lá procurar uns contatos de uns negões, uns negros muçulmanos, pesado demais cara, sombria a parada. Os caras ensinando coisas ruins para os negões, ensinando a fazer bomba, vai vendo, vai só piorando, é foda [risos]. O cara coloca na cabeça dos meninos a religião e tira a preguiça do corpo, dão motivo para o cara querer lutar.

Fórum – O Racionais, de um tempo para cá, tem sido muito ouvido na classe média. Como você lida com isso?

Brown – Há quem diga que a classe média é que cresceu muito [risos]. Mas já estava lá. Vejo com respeito, ouço crítica, elogio, converso, é importante ouvir o que eles dizem. Acho da hora que eles venham falar, até pra explicar minhas teorias, há muitos que vão de embalo, mas no caso do Racionais, estamos meio à prova de “embalista”, porque estamos há dez anos sem lançar disco, curte quem gosta mesmo. Não tem “modinha” Racionais.

Fórum – Como você tem se relacionado com os movimentos culturais, como o Tecnobrega?

Brown – Apoio. Conheci a Gaby Amarantos na MTV, mina lutadora, a nossa luta é a mesma, ela como mulher e negra, a luta é duas vezes maior. Eu dialogo com todos, o pancadão, os saraus, a várzea, até a música gospel. Sou envolvido com o começo da música gospel no Capão, não como evangélico, mas como amigo dos caras, eu gostava dos caras e eles gostavam de mim do meu jeito, a cena é forte aqui.

Fórum – Como é a história daquele diálogo inicial do Vida Loka 1?

Brown – A gente correu um certo perigo naquela gravação, porque celular em presídio é proibido, tá ligado? E é passível de punição. Ele estava preso, o disco saiu assim e não pegou nada. Houve uma falha no sistema, que estava meio embriagado de poder e nem viu nada. Naquela época a cadeia estava cheia de celular, e aí, porra, a gravação foi feita daquele jeito, ele lá dentro, falando comigo aqui fora.

Fórum – E o Santos? Você é um dos torcedores símbolos do Santos.

Brown – Não reconhecido, o Santos nunca me chama para nada, eu até conheço o presidente do Santos. Inviabilizei a contratação do Rafael Moura, ah, melei mesmo, contrata a Xuxa também, tá de brincadeira [risos]. Aquela reunião foi treta, aí eu sugeri: “Traz o André aí”. O Santos tá com um complexo de pobreza que eu não compreendo, esse negócio ridículo de colocar vidro no estádio inteiro, não dá pra ouvir as vozes da torcida, diminui a pressão. Os caras ficam batendo nos vidros, ficam parecendo loucos, esse negócio de colocar televisão nos camarotes. O setor Visa é vazio o ano inteiro, eu já perguntei ao presidente pra quem que é bom o marketing da torcida vazia, abre a câmera e o estádio está vazio.

Fórum – E o Neymar?

Brown – O Neymar é sensacional, melhor coisa que aconteceu no Brasil depois da eleição do Lula. Só poderia ter nascido no Santos mesmo, é foda, não cabe em outro time, mano.


Agradecemos à Produtora Boogie Naipe pela colaboração