sábado, 13 de abril de 2013

O novo velho Mano Brown - 1ª Parte da Entrevista

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“A gente não foca na polícia, a polícia é um tentáculo do sistema, o mais mal pago. Mas é armado e chega com autoridade, é um tentáculo perigoso”

Confira a primeira parte da entrevista com o rapper Mano Brown, capa da edição 120 da revista Fórum

Por Glauco Faria, Igor Carvalho e Renato Rovai. Fotos de Guilherme Perez


“Eu sou o Brown mais velho, macaco velho. Estou menos óbvio, menos personagem e mais natural. Comecei a tomar cuidado. Nunca fui oportunista, vivo de música, não sou um político que faz música.” Essa é uma das formas pelas quais o líder e vocalista do Racionais MC’s se define hoje, 25 anos depois de o grupo de rap conseguir levar sua mensagem não apenas às periferias de todo o Brasil, mas também a muitos lugares e pessoas que não tinham intimidade com o ritmo.

A mensagem de Brown sempre foi forte e contundente, mas hoje o músico prepara o lançamento de um álbum solo, no qual o soul e o romantismo predominam. Isso não significa, nem de longe, que o seu pensamento tenha se modificado, até porque muito do contexto que propiciou o nascimento do Racionais ainda está presente na realidade brasileira. “Eu não estava falando de chacina, de nada disso, estava preparando um disco de música romântica, aí começou a morrer gente aqui e tive de fazer alguma coisa.”

O músico se refere à chacina que matou sete pessoas na região do Campo Limpo, zona sul paulistana, em 5 de janeiro. Entre as vítimas, DJ Lah, em um primeiro momento tido como autor de um vídeo que denunciava a execução de um comerciante no mesmo local, feita por policiais. A informação foi desmentida depois, mas o espectro de que se tratava de uma vingança paira sobre a população do lugar. E Brown fala sobre as possíveis consequências para quem viu e sentiu a tragédia de perto. “Essa ferida não vai cicatrizar, quem mora naquele lugar onde morreu o Lah não vai esquecer, os moleques vão crescer, mano. Quem viveu aquilo não vai esquecer.”

Na entrevista a seguir, Mano Brown fala sobre a falta de oportunidades na periferia, do racismo, de um sistema que oprime, mas também ressalta o que ele considera ser o nascimento de um novo Brasil, destacando o papel da nova geração. Assim, ele mesmo tenta se “reinventar” para seguir na luta que sempre foi dele e de muitas outras pessoas. “Para dar continuidade ao trabalho, temos de caminhar pra frente, a juventude precisa de rapidez na informação, não dá pra ficar debatendo a mesma ideia sempre. É fácil para o Brown ficar nessas ideias, fácil, é até covarde ficar jogando mais lenha, então fui buscar as outras ideias, que passam pela raça também, com certeza.”

Fórum – Você esteve em uma reunião do pessoal do rap com o então candidato a prefeito de São Paulo Fernando Haddad, e ali disse que não iria falar sobre cultura, mas sim denunciar que os jovens estavam morrendo na periferia. Recentemente, houve o assassinato do DJ Lah, e mortes violentas de músicos da periferia têm sido muito comuns em São Paulo, na Baixada Santista, por exemplo. Como definir essa situação?

Mano Brown – Esses moleques cantam o que eles vivem. Geralmente, quando você chega nas quebradas, têm poucos lugares que são espaços de lazer, e o lugar onde teve a chacina era um ponto de lazer, querendo ou não. Um ponto meio marginal, mas tudo que é nosso é marginal. Era um bar, tinha a sinuca, tinham os amigos, o bate-papo com a família, tem o fluxo, é o centro da quebrada. O barzinho vende de tudo, vende pinga, vende leite, vende tudo, e o Lah gostava de ficar por ali, vários caras gostavam, era o quintal das pessoas.

O que aconteceu ali foi execução, crime de guerra. Tem a guerra e tem os crimes de guerra. As pessoas não estavam esperando por aquilo ali, não estavam preparadas pr’aquilo. É o que tem acontecido neste começo de ano, e aconteceu no final do ano passado, as mortes todas têm o mesmo perfil: moleque pobre em proximidade de favela. Os caras encontram várias fragilidades ali, várias formas de chegar, matar e sair rápido, e o governo simplesmente ignora o que aconteceu. existem as facilidades. O cara vai lá e mata sabendo que não vai ser cobrado.

Fórum – Mas você acha que, por conta dessas ocorrências, há uma coisa dirigida contra o rap?

Brown – Acho que não, se dissesse isso seria até leviano, porque muitas pessoas que morreram não tinham nada a ver com o rap. Gente comum, motoboy, entregador de pizza, moleque que saiu da Febem e estava na rua, com uma passagenzinha primária e morreu… E o rap tá na vida da molecada mesmo, tá nos becos, nas esquinas, no bar, na viela, geralmente o moleque que curte rap tá nesses lugares. É uma coisa dirigida, mas é dirigida à raça. Dirigida a uma classe.

Se você for fazer a conta de quantas pessoas morreram no final do ano, mortes sem explicação, crimes a serem investigados, e somar o tanto de gente que morreu em Santa Maria… Morreu muito mais aqui. Lá foi comoção total pela forma que ocorreu, lógico, todo mundo é ser humano, mas veja a repercussão de um caso e a repercussão de outro caso, quanto tempo demorou pra mídia acordar pra chacina? Quanto tempo demorou pras pessoas perceberem a cor dos mortos? Coisa meio que normal, oito pretos mortos, quatro aqui, três ali… É uma coisa meio cultural, preto, pobre, preso morto já é uma coisa normal. Ninguém faz contas.

Fórum – E quem está matando nas periferias?

Brown – A polícia. O braço armado, conexões armadas, de direita.

Fórum – Você tem um histórico de estranhamentos com a polícia…

Brown – Houve a época em que soava o gongo, a gente saía dando porrada pra todo lado, não olhava nem em quem. Outra época, a gente procurava a polícia pra sair batendo. Hoje em dia, espera pra ver quem vai vir. Não é só a polícia, são vários poderes. A gente não foca na polícia, a polícia é um tentáculo do sistema, o mais mal pago. Mas é armado e chega com autoridade, é um tentáculo perigoso. E tem várias formas de matar, de matar o preto.

Fórum – Da última vez que você deu entrevista à Fórum, há mais de 11 anos, boa parte da conversa foi sobre isso. Você é um ator importante dentro desse cenário, como está atuando para mudar a situação, está fazendo intervenções no governo, conversando com pessoas, ou só se manifestando pela sua arte mesmo?

Brown – Se eu disser que não uso meus contatos, estou mentindo. O que tem acontecido traumatizou todo mundo, então ficamos todos aqui com muita raiva, lógico que alguma coisa a gente fez. Mas não posso dizer o quê. Tenho minhas armas, mas não posso expor, parado a gente não ficou.

A partir do momento em que a gente nota realmente que nossa quebrada tem fragilidades, vê as famílias das pessoas com muitas mulheres e poucos homens, homens com pouca liberdade, pouca liberdade de movimento, vida pregressa com problema, pouca mobilidade na sociedade, caras condenados a viver no submundo, você começa a criar um exército na comunidade, de gente que vê aquele entra e sai da cadeia, de homens com vida pregressa que não conseguem mais arranjar emprego. As casas perdem esses caras, que deixam de ser úteis dentro de casa. Você vê a morte do homem da casa, cinco mulheres chorando; as famílias estão num processo que vai demorar, de restauração pra uma vida mais rotineira, mais calma, é uma corrente que tem de quebrar.

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“Antigamente, quando só o rico tinha, ninguém reclamava. Pobre com celular, com moto, não pode, o sistema cobra”
 
Fórum – Um cenário de guerra, mesmo.

Brown – É, não passou a ser guerra agora, depois da chacina, já vivia em guerra. As mães também lamentam os filhos que vão pra vida do crime, perder pra droga… A molecada negra tá muito exposta ao perigo, o salário é baixo, o risco é alto. A sociedade cobra muito, você tem de ter as coisas, tem de estar, tem de ser, tem de aparentar ser… Aparentar ser já custa caro, “ser” é outro estágio. O pessoal acha que é vaidade boba a pessoa gostar de marca, de perfume bom, mas são coisas que ajudam a pessoa a circular, a arrumar um emprego, a arrumar uma gata, tudo melhora. No momento em que no Brasil começa a sobrar um dinheirinho pra categoria, pra raça, o outro lado já começa a cobrar com a vida também. O excesso de gente usufruindo deste novo Brasil… Não pode, é excesso, tem de limpar. Tudo que é moleque de moto… Os excessos que o pessoal começa a reclamar, todo mundo com celular no busão. Antigamente, quando só o rico tinha, ninguém reclamava. Pobre com celular, com moto, não pode, o sistema cobra.

Fórum – Você entende isso como uma reação da elite?

Brown – Uma reação. Três governos de esquerda eleitos pelo povo, o Brasil pagou a dívida, a classe C tomando espaço e a Globo expondo isso na novela, todo mundo analisando, os autores são mais jovens e começaram a mudar a mente, as ideias começaram a ir pra tela e os movimentos ganhando força a partir das ideias, muita coisa junto… Os caras reagiram. O que aconteceu em São Paulo aconteceu no resto do Brasil. Em Alagoas, o índice de negros mortos é muito alto, em Belém do Pará, Goiás…

Fórum – E você pediu o impeachment do governador Geraldo Alckmin em um evento na Assembleia…

Brown – Pedi o impeachment do Alckmin e ele tem de tomar providências. Naquela altura, estava em um estágio em que dava a impressão de que o Alckmin não estava nem aí. As declarações que ele deu foram piorando, chegou num ponto de eu achar que ele não sabia o que estava acontecendo. Era suicídio, como ele vai se eleger a qualquer coisa com esses números de morte?

Muitas vezes, acho a mídia com tanto medo e, de repente, vai um canal de direita, que é a Record, que começou a investigação. A gente conversava e sentia que tinha o medo no ar, eram jornalistas com medo, quando eu vi o [André] Caramante isolando e as pessoas pedindo pra ele não voltar, pensei: “Os caras tão com medo, o governo tá junto”. E as declarações que ele [Alckmin] estava dando mostravam isso, que não ia voltar atrás e era um movimento aprovado pelo povo, o povo estava com ele. Redução da violência, crime organizado, a guerra do PCC, o povo leu isso como uma coisa benéfica pra sociedade, mas estavam morrendo os filhos deles mesmos.

Fórum – Será que o povo leu isso desse jeito?

Brown – Pelo número de PMs que foi eleito, percebo que o povo está se dirigindo a votar dessa forma, tem medo. Primeira coisa que se pensa: segurança. Segurança é polícia, entre um cantor de rap, um padre e um policial, ele vai eleger um policial. O voto explica.

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“O PCC hoje tem tanto poder que eles nem precisariam da contravenção pra existir”
 
Fórum – Qual a sua opinião sobre o PCC?

Brown – O PCC hoje tem tanto poder que eles nem precisariam da contravenção pra existir. Aí seria realmente um poder incontestável, e pelo número de mortes que foi reduzido em São Paulo, a gente sabe que muito tem a ver com eles. Já existe o PCC, não precisa fazer nada mais contra a lei. Se é que houve alguma coisa contra a lei… Não seria mais necessário usar contravenção, já existe a autoridade, existe a autoridade instalada, o povo aceitou.

Fórum – Como você vê a ascensão dos movimentos sociais hoje em São Paulo?

Brown – Sou privilegiado de ver acontecer isso, minha geração. Acho digno e muito importante mesmo todos os saraus, as reuniões, os diálogos, todo o movimento de jovens dedicado a isso, a conhecer as causas do Brasil, não só reclamar. É uma geração que não só reclama, que faz, que desce o beco da favela, vai trabalhar, vai bater nas portas. É um novo Brasil, novos médicos, novos advogados, novos pedreiros, novos motoboys, novos motoristas. O que todo mundo bebe, vai ser; o que todo mundo come, vai ser; o que todo mundo respira, vai ser. Daqui a 20 anos, você vai ver o país que está sendo implantado pelo Lula, pela Dilma, pelos Racionais, pelo Bill, pelo Facção Central. Daqui a 20 anos, vai ter um povo que vai ter essa cara.

Fórum – Fale um pouco mais de sua concepção desse novo Brasil.

Brown – Tenho 42 anos, sou fruto daquela geração dos anos 1980, aquela “geração lixo”. “Geração lixo”. Eu sou aquilo, com todos os defeitos e qualidades. Já os nossos filhos, nós que já aprendemos e sofremos um pouquinho mais, vão ser melhorados, mais ligeiros, mais práticos que eu, e não vão rodar tanto em volta do objetivo, vão direto ao foco.

Agora, os meus filhos, a molecada em geral… Ainda temos de lavar a roupa suja. Eu e eles. Não gosto de puxar a orelha dos moleques por revista e nem por entrevista, mas temos roupa suja pra lavar nas favelas, nas vielas, nas ruas, nos palcos, tem muita coisa pra melhorar ainda.

Fórum – Mas existe um orgulho hoje de quem vive na periferia, ele não se esconde mais. Há marcas que nascem na periferia. 

Brown – É o que o judeu fez, o italiano fez, o japonês fez e o preto foi proibido de fazer. Nos dias de hoje, faz, monta time de futebol, loja, grupo de rap. Forma a família, que é onde está o foco nosso, a família, dialogar, organizar… Historicamente foi proibido pra nós, a gente vive correndo, se escondendo, um comportamento de foragido que talvez essa geração não vá ter mais.

Fórum – Será que esse não é o susto das elites, perceber que daqui a 20 anos o Brasil não vai ser mais esse? 

Brown – O Brasil atrasado, os brancos também não querem isso, os brancos ligeiros não querem mais isso. Foi um ganho o branco acordar e o preto acordar também.

Fórum – “Fim de semana no parque” fez vinte anos agora. Você acha que essa foi a principal mudança nesse período, além do ganho econômico, também a elevação da autoestima?

Brown – Começa pela raça, pelo orgulho do que você é, de você ter na sua família a sua raiz. Se você não tem vergonha da sua mãe você vai ouvir mais ela, se você acha sua mãe bonita, seu pai bonito… Eu sou de uma geração em que muitos não tiveram pai, não tive pai, vários amigos não tiveram. Tive de aprender a ser meu pai, o homem da casa sempre fui eu. Isso também fez eu ser quem eu sou, mas acho que seria melhor se tivesse tido um pai. Em várias casas faltam um pai. Acho que a periferia vive este momento de fluxo de cadeia, da molecada se envolvendo na criminalidade, perdendo o direito de ir e vir, de oportunidade de emprego por conta de passagem [na polícia], então vai limitando e as famílias vão ficando empobrecidas. Mesmo que o governo faça, vai estar sempre correndo atrás, essa corrente tem de cortar. Dar oportunidade pra molecada – principalmente para os homens –, que não tem como demonstrar nada numa sociedade em que você tem de parecer que é, pelo menos. A molecada não tem oportunidade.

Fórum – Falando em oportunidade, o que você acha das cotas?

Brown – Como tudo que envolve o negro, é polêmico. Agora, se você negar que o Brasil prejudicou a raça negra… [As cotas] não vão resolver o problema, mas dizer que o negro não é merecedor disso é racismo. Historicamente teria de ter, mas, dentro da raça negra, o lance de cotas é tão dividido ou mais que entre os brancos. Se você chegar na inteligência negra, perguntar ali o que acha da cota… Mano, é treta! Você vai ter cara crânio que é contra, vai falar pra ele que tem de ser a favor… É dividido, acho bom ser polêmico. O problema tem de ser debatido, depois faz o acordo, mas de cara tem de conversar.

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“Primeira coisa que se pensa: segurança. Segurança é polícia, entre um cantor de rap, um padre e um policial, ele vai eleger um policial. O voto explica”
 
Fórum – Qual a sua avaliação do movimento negro no Brasil?

Brown – O movimento negro evoluiu muito, tenho muito orgulho de ver como o movimento atua hoje, algumas reuniões em que eu fui, moleques muito inteligentes… Dá vontade de parar de falar e deixar só os moleques falarem. No dia do evento mesmo, antes tinha falado um garoto do movimento negro, ele já tinha falado tudo. Eu nem quis falar muito porque ele já tinha falado tudo. Antigamente, ia nos movimentos e era um debate muito primário, ranço de 300 anos debatido nos anos 1980, nós estamos em 2013 e a molecada já está debatendo outras coisas, outros poderes, não só os visíveis. Já não querem só a roupa de marca, os caras querem poder, os moleques vêm pesado na reivindicação, no direito, na história. São terríveis e estão vindo aí. Tenho orgulho, já foi um movimento confuso, hoje não é mais. É um movimento prático.

Fórum – Existe uma crítica de que somente o empoderamento econômico não traria consciência social para as pessoas, mas o seu depoimento não diz isso.

Brown – Traz. Traz porque o tempo é dinheiro pra todos, inclusive pra classe C. O micro-ondas, o carro que anda melhor vai fazer você chegar com mais conforto em casa, no seu trabalho, você vai ter tempo pra melhorar. Por que é conforto pro rico e pro pobre não? O pobre vai ficar bobo alegre, por quê? É preconceito. O que faz a vida do cara ter conforto, permitir organizar o tempo, poder estudar, trabalhar e cuidar do filho… Daqui a 20 anos, tá ele formado, o filho estudando, se ele não tivesse o carro, com certeza não trabalhava, não estudava, tinha cuidado só do filho. Ele não tinha estudado e era só o filho, não eram duas rendas, era uma. Bem material “aliena o pobre”, porque pobre é alienado, esse é o discurso… O pobre não tem inteligência… Sabedoria do povo é sabedoria do povo, tem de escutar, tem de entender a mensagem.


Amanhã a segunda parte da entrevista...

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A Dama de Ferro: o filme

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Por Carla Luciana Silva


Normalmente quando se resenha um filme recém-estreado tem-se o cuidado de não contar tudo sobre ele, não explicitar demais o roteiro, não contar “o final” para que outros possam assistir-lhe. Não é o caso em Dama de Ferro (Phyllida Lloyd, 1h44). Quanto mais se falar dele numa resenha mais diminui a chance de que outros queiram assisti-lo, ainda bem. O filme não vale a ida ao cinema e o pagamento do alto preço; além disso, há o incômodo de ver sempre algum vizinho de poltrona admirado com o personagem criado na grande tela [ecran], sensação desagradável. Afinal, o filme foi laureado por duas estatuetas no Oscar. Meryl Streep, por sua atuação, ao construir uma personagem de forma absoluta e inquestionável. E, ao mesmo tempo, maquiagem. Perfeito, afinal, o filme propicia um tal maquiamento da história e construção de uma memória estetizada que realmente faz pensar que mereceu o prêmio.

O filme tenta fazer piadas, fazer rir através da criação de um personagem – o marido, um boboca [palerma] que nada mais é do que a vingança de todos os homens sobre uma mulher poderosa, numa alegoria fraca, sem graça e falsa que o filme cria. Gera-se uma espécie de Ghost: do outro lado da vida. O homem, marido da grande dama de ferro, que aparece não só como sem personalidade mas como alguém que vive do ar que ela respira, e não um grande empresário do ramo petrolífero, é um fantasma que a assombra em suas alucinações doentias. Se ao longo da vida ela quis agir como homem (“forte”), no fim da vida, apenas depois do fim da vida do seu “fraco” marido, ele tem o poder de infernizá-la com coisas banais, como contar o final do livro que ela está lendo ou colocando em xeque seu poder absoluto.

A trama do filme é a história de uma senhora que não consegue desapegar-se do passado, o seu passado pessoal e seu papel histórico. Mas o passado pessoal será facilmente descartado, doado para a Oxfan, através das roupas do marido morto que farão com que ela complete seu luto. No final do filme ela consegue se desfazer das roupas e do fantasma, quando finalmente vemos uma emoção, uma lágrima lhe escapa do olho. Ela perdeu seu apego pessoal. Mas, e o legado histórico? Bem, a reconstrução de uma memória absolutamente conservadora é o que filme propõe sucessivamente. Um passado reificado, um “objeto de consumo, estetizado, naturalizado e rentabilizado, pronto para ser utilizado”.[1] Não existe memória sem consequências, sem implicações, e é esse embate que queremos perceber no filme.

As remissões à Margareth jovem são bizarras. Primeiro, mostrando um ideal presente nas falas de seu pai, de um conservadorismo a toda prova, de um individualismo segundo o qual pode o personagem se colocar como portador da verdade, ela possui a verdade e não importa o que aconteça, fará com que ela impere, à luz da construção do seu poder. O personagem Thatcher surgirá como guia, alguém que deverá levar o partido a um caminho. Interessante que esse caminho aparece apenas como idealizado por essa mulher jovem, idealista. Em nenhum momento se refere ao seu embasamento teórico neoliberal, que fundamenta com precisão as políticas que colocaria em prática, suas relações com Hayek, nada disso aparece no filme; afinal, é uma “memória pessoal”.

A figura da “mulher” também passa por contradições. A mulher velha sofre na memória suas escolhas históricas com relação aos filhos. Busca se reconciliar com o filho, a quem ela chama em vários momentos de senilidade, por quem clama e que sarcasticamente no final se nega a aparecer, “foge” para a África do Sul, não tem tempo para a mãe. A culpa da mãe que trabalha e que “abandonou” o filho, ao dedicar-se a qualquer coisa na vida, no caso, a política, fica mais uma vez interiorizada.

Já li em vários lugares comentários alegando um certo “feminismo” no filme. Ideia mais absurda! O tempo todo o personagem deixa claro que “prefere a companhia dos homens”, porque eles teriam obviamente uma lógica própria, um modus de ser distinto, que não seria fútil como o das mulheres. Com eles estava o poder. Interessante que o filme mostra justamente uma mulher não apenas bonita, como atraente, focando em várias cenas seu corpo acinturado, focando seu traseiro marcado pelas saias de um azul claro celestial. A cena que precede sua entrada no Parlamento como primeira-ministra tem uma virada de corpo que faz dela uma Marilyn Monroe da política, mas aos avessos, porque quando ela dá a virada com a saia os homens como que desaparecem, abrindo caminho para sua entrada triunfal.

Assim, de feminismo o filme não tem nada. Tanto é que em uma das últimas cenas Margareth aparece lavando a xícara do próprio chá que acabara de beber. Ou seja, encerrada na cozinha. Aliás, é na cozinha que se passam várias de suas alucinações, como se aquele espaço representasse a prisão da qual fugiu mas que agora a prendia, e o marido (ghost) retornava para torturá-la psicologicamente. Aliás, a única cena em que sua mãe aparece no filme ocorre quando ela foi chamada para a Universidade, comemorou com seu pai e, quando foi ao encontro da mãe, essa se “esconde” lavando louças na cozinha. No âmbito da “prisão” de sua cozinha, numa cena mostra sua vingança, acendendo todos os eletrodomésticos para fazer barulho e impedir de ouvir as críticas do fantasma do seu marido sobre seu papel histórico.

Há ainda outra cena de uma sensualidade descabida. Diante de um debate forte sobre a resistência do aprofundamento das políticas neoliberais, ela, impassível, tem seu vestido ajustado por uma serviçal, que aparece apenas de costas e que foca todo seu trabalho em ajustar os peitos da dama de ferro. Numa cena em que os homens do partido falam que não poderão mais aguentar o arroxo [cortes de salários], a câmera foca nos peitos pendularmente. No final, ela aparece triunfal, dizendo que esse remédio amargo iria aplicar no seu povo/doente que precisava de remédio, segundo ela própria.

A figura autoritária é tão forte que mais tarde, quando consulta o médico, ela dá uma lição de moral dizendo-lhe que ele deveria perguntar o que ela pensa, não o que ela sente. Ou seja, quando está de um lado, aplica o remédio e pronto; quando está do outro, ensina ao médico a não aplicar o remédio. O filme com isso naturaliza o remédio, como se Thatcher não tivesse historicamente sido a responsável pelo desemprego massivo que criou com suas medidas.

Quando foi primeiro Ministra da Educação, além de ter fechado várias escolas, uma de suas medidas mais controversas foi acabar com o leite da merenda escolar. O filme, que em nenhum momento fala disso, começa com Thatcher fugindo do controle de seus empregados e indo ao mercadinho comprar leite, e reclamando do preço do leite, que havia subido de novo. Ela compra o leite em meio a desconhecidos, como se tivesse finalmente se misturado, passando, ironia da história, a ser uma igual.

Também o discurso antiterrorista acompanha todo o filme, assim como atentados do IRA, que vão seguindo ao longo da trama. Não aparece, no entanto, a intransigência da personagem, essa memória que se constrói possui apenas um lado. Interessante observar como o discurso de realocação do papel histórico de figuras deploráveis para a classe trabalhadora, como Thatcher, segue uma linha parecida com aquela usada nas biografias de grandes fascistas, como no caso do ditador português Salazar, que é mostrado como um homem solitário, e que seria o preço a pagar pela dedicação de uma vida inteira à “causa pública”. Nessas biografias desaparecem seus apoiadores e todos aqueles que lucravam com suas decisões. No caso de Thatcher, vemos raramente relações pessoais além da família. Uma cena de seu triunfo pós-guerra das Malvinas a mostra bailando com ninguém menos que Ronald Reagan, como se fosse um conto de fadas.

Desde o início do filme suas lembranças vêm acompanhadas da moral de que o Estado não deve intervir, não “sabe” o que fazer, e que cabe às pessoas cuidarem de si. Isso remete ao mercadinho no qual trabalhava para ajudar seu pai, denotando um estigma contra o trabalho que segue demarcando todo o filme: “a filha do merceeiro”. Uma menina ousada, auto-suficiente, cheia de iniciativas. O ideal neoliberal vai aparecendo nas suas falas, embora não tenha identidade, não apareça como um projeto de hegemonia. Aparece com ela dizendo que as pessoas têm que aprender a “controlar-se”, a gastar menos; ou dizendo que sempre há os que vêm “comer de graça” (alusão à criação da Comunidade Européia). Seu discurso antiorganização sindical, antitrabalhadores está presente o tempo todo, num crescente que ao invés de dizer realmente o que ela estava fazendo, mandando reprimir, bater, destruir, quebrar a espinha dorsal do movimento operário, constrói, ao contrário, uma imagem de uma mulher forte que sabe tomar decisões em momentos difíceis. As imagens difusas de trabalhadores sendo pisoteados por cavalos são totalmente desfocadas em função do close na coragem e nos peitos de Thatcher. Uma mulher que não quer saber de conversa, não há entendimento possível. Como se essa posição, uma vez mais, fosse apenas fruto de uma grande personalidade. O desprezo para com os trabalhadores aparece em frases como “muitos já estão quase a morrer de fome” – terão que voltar ao trabalho. O ideal que ela diz que sabe que está preservando, sua verdade que porta é: liberdade e oportunidade. O filme coloca em suas falas o “desejo de dizer o indizível”, ou seja, de tomar essas medidas; alguém ambicioso e com princípios, embora não diga quais são do ponto de vista histórico.

A mudança em seu perfil pessoal também aparece no filme, tomando aulas de postura de voz, mudando o penteado para deixar de parecer uma dona de casa, e o marido sempre como figurante nessas cenas, o que não faz qualquer sentido. A lógica da estetização da política paira no ar. E aos poucos o filme mostra a virada em sua vida, em que os homens começam não apenas a respeitá-la mas a admirá-la.

Em 1979, quando assume como primeira-ministra suas palavras são claras: o país “que amamos” tinha um preço a pagar para livrar-se do “socialismo”, ou seja, da organização dos trabalhadores. E, para ficar completo, não podia deixar de rezar uma oração de São Francisco: onde houver dúvida, que eu leve a fé. Ou seja, minha verdade vos libertará!!!

Mas o filme se torna ainda mais insuportável quando mostra a invasão das Malvinas. A arrogância de uma guerra aparece uma vez mais como fruto da vontade de uma mulher que percebe que seu país estava com a honra ameaçada, e justamente essa é a tônica final, que a mostra com um mundo a seus pés depois da guerra. Se antes já sentimos falta de alguns amigos queridos seus, aqui nos perguntamos porque o filme não mostra Pinochet lhe cedendo bases militares dentro do território chileno para atacar as Malvinas-argentinas?

Sempre há riscos em qualquer filme histórico, que busque a reconstituição da história. Esses filmes têm toda liberdade de interpretar, mas sua visão corre o sério risco de aparecer como um todo fechado, uma verdade absoluta. Por isso é mais grave, aparece como verdade porque “mostra”. Evidentemente que tudo o que é narrado não ocorreu sem oposição, sem resistência, embora a ênfase fosse sempre ocultada. O que prevalece são mulheres chorando quando Thatcher deixa o poder, como se fossem as mulheres que tivessem sido lá representadas.

A memória vai sendo reconstruída, a história passa a ser recontada a partir dela. E, por isso, a força do personagem e a “individualização” das decisões e da linha política. Por isso o personagem mostrado não titubeia, não tem dúvidas, faz parecer que a história se move para atender sua vontade.

O jornal francês Libération fez uma vasta matéria sobre o filme. O mais interessante foi que deu voz a pessoas que eram mineiros na época de Thatcher e a manchete é: “Quando ela morrer, nós faremos a festa!”.[2] Segundo o jornal, abaixo de um frio imenso os velhos mineiros se reuniram para ver o filme e urravam: “Maggie, Maggie, out, out, out” [Margarida, Margarida, fora, fora, fora], como na época das greves em 1983-84. O filme tem servido para reavivar a raiva desses homens e mulheres, mostrando o lugar onde milhares de pessoas perderam seus empregos por causa das decisões da primeira-ministra. Também as suas mulheres estão indignadas contra o retrato de Thacher “ícone feminista”, que o filme tenta passar: “Ela jamais defendeu as mulheres, não se bateu por seus direitos, não colocou mais mulheres no seu governo”, inclusive “queria mesmo estar sozinha no mundo de homens”. E recorda a cena chocante em que Thatcher passava impassível de carro enquanto as manifestações dos mineiros quase derrubavam seu carro: “mas o filme não mostra uma só vez por quais razões os mineiros estavam encolerizados, eles tiveram suas vidas destruídas, eram pessoas desesperadas”. E segue uma mulher de um ex-mineiro: “as verdadeiras damas de ferro são as mulheres dos mineiros, que enquanto tinham seus maridos pagos miseravelmente, ou que quando faziam greve não podiam pagar as dívidas, mesmo assim continuaram a chegar ao fim do mês como conseguiam.” Narra pessoas que perderam sua casa, seus maridos ficaram a ver navios.

Um homem diz: “ela é apresentada no filme como uma heroína. Mas ela não era nada disso, era uma bruta, tirana, que jamais teve qualquer compaixão pelas pessoas que batalhavam pelos seus empregos, não por férias ou melhores salários”, como o filme leva a crer. A conclusão é sintética: Thatcher foi “sobretudo uma personalidade que dividia, ela foi a principal responsável pela destruição de toda a indústria manufatureira do país. Ela começou pela indústria de estaleiros navais, depois o aço, o carvão e, finalmente, aliada a Rupert Murdoch (magnata da imprensa), ela destruiu a indústria gráfica”. Esta é sua herança. “Ela é odiada por aqui e, quando morrer, nós faremos a festa nas ruas, eu posso lhes assegurar”. Seria sem dúvida uma tentativa de vingança histórica contra uma memória forçada, forjada e falsa de uma “heroína”. Totalmente compreensível essa visão dos trabalhadores, mas o passo adiante é perceber que, diferentemente do que propõe o filme, as medidas por ela adotadas e impostas não foram apenas fruto de seu desejo de poder, e sim uma prática sistemática e articulada do capitalismo como reação à crise dos anos 1970.

A conclusão de outro comentador do jornal é interessante: tudo isso não faz deste filme um filme ridículo ou mal feito, mas um filme resolutamente de direita, e que por ser bem feito é que vai passar a construir relatos históricos. Com um fervor sincero ele exalta as virtudes de uma “Grã-Bretanha grande outra vez”.[3]Ou seja, como filme de qualidade técnica (ganhador de prêmios), será certamente mais assistido do que as aulas de história que se podem produzir para criticá-lo.

Também no francês Le Monde lemos uma pergunta instigante: “porque ela fez isso? Com que apoios?”[4] Não saberemos assistindo o filme. Já na revista brasileira Veja, que sempre exaltou a figura de Thatcher, identificamos uma “leoa do inverno”: “a primeira-ministra que era exatamente aquilo que os britânicos precisavam”.[5] A crônica na revista reproduz a fala da própria diretora [realizadora], que justifica seu filme dizendo que apenas quis mostrar a visão da própria história, sem “fazer julgamento histórico”, como se isso fosse possível, e como se o resultado não fosse um julgamento histórico apriorístico e hegemônico do início ao fim. Afinal, reafirma que a sua queda se deu porque “tinha razão” em vaticinar contra a entrada na zona do euro, e por isso foi punida, segundo a resenha de Veja, que ainda cobra mais do filme. Parece descontente com tanto foco na demência da personagem, cobrando que se diga, didaticamente, que havia coerência no seu pensamento e que ela apenas “dizia o que os ingleses realmente precisavam ouvir”. Por isso, nas três páginas da revista, repleta de imagens, há espaço de destaque para suas “benfeitorias”: resistência aos sindicatos; privatização; limites à Comunidade Europeia; enxugamento do estado de bem-estar social; intransigência com as ameaças externas; intransigência com o terrorismo; articulação entre EUA e URSS. Cada item vem explicado, como uma homenagem e uma lembrança, reafirmando os princípios em comum.

Notas
[*] Docente do Curso de História e do PPGH da UNIOESTE. carlalusi@gmail.com [1] TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa, Unipop, 2012, p. 11. [2] Libération, mercredi. 15 février, 2012, À l’affiche. Cinéma. III. Sonia Delesalle Stolper. [3] Libération. En fer et dame nation. Bruno Icher. 15/2/2012, p. II. [4] Le Monde, 15/2/2012, p. 26. Une biographie cosmétique et vaine pour un colosse politique. Thomas Sotinel. [5] Veja. 22/2/2012, p. 95. Isabela Boscov.

[N.E.]    (c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e o site passapalavra.info sejam citados e esta nota seja incluída   http://passapalavra.info/?p=53801

terça-feira, 9 de abril de 2013

Porto Alegre: sinais de Primavera Brasileira?

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Auto-convocados por redes sociais, jovens fizeram uma semana de mobilizações, até revogação do aumento dos ônibus. Que eles ensinam?

Por Samir Oliveira. no Sul21 | Imagens: Ramiro Furquim

Na segunda-feira (1), os porto-alegrenses realizaram um protesto como há muito não ocorria na cidade. Pelo menos 6 mil pessoas saíram às ruas para exigir a revogação do aumento da passagem de ônibus, numa época em que é bastante comum ouvir lamentos de que já não ocorrem mais grandes manifestações. Não são poucos os que dizem que, hoje em dia, existem apenas “ativistas de sofá”, em referência à convocação de mobilizações por redes sociais como Facebook e Twitter – expediente utilizado para organizar os atos contra o aumento da passagem na Capital.

Desconsiderando os grandes eventos — como o Fórum Social Mundial Temático, de janeiro de 2012, e o Fórum Social Mundial Palestina Livre, de dezembro do ano passado — , a cidade não recebia uma manifestação tão grande desde março de 2011, quando mais de duas mil pessoas foram às ruas para protestar contra o atropelamento em massa de ciclistas feito pelo funcionário do Banco Central Ricardo José Neis.

Sociólogos e cientistas políticos ouvidos pelo Sul21 avaliam que a intensidade do último protesto contra o aumento da passagem sinaliza uma revolta crescente contra políticas de restrição dos espaços públicos em Porto Alegre e dialoga com a lógica de movimentos autoconvocados em outros lugares do mundo, como as ocupações nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha.

O perfil do Occupy da cidade de Barcelona, na Espanha, chegou a reproduzir uma imagem do protesto desta segunda-feira na Capital. Em uma artigo publicado nesta quarta-feira (3) no Jornal do Comércio, o jornalista Guilherme Kolling, que morou em Madri, comenta as semelhanças dos atos na Capital com a revolta dos jovens espanhóis. “’¡Manos arriba! ¡Eso es un atraco!’, gritavam os Indignados da Espanha, em uma manifestação em Madri no ano passado contra os cortes do governo central. ‘Mãos ao alto! R$ 3,05 é um assalto!’, bradavam os estudantes de Porto Alegre, ao protestar contra o aumento da passagem de ônibus na segunda-feira”, comparou.


Movimento pode consolidar cultura política para além da representação, avalia cientista político

Uma das características desse tipo de movimento é a ausência de grandes lideranças. Os atos costumam ser convocados no Facebook e reúnem grupos de diferentes linhas ideológicas, que atuam dentro ou fora da institucionalidade – além de uma ampla gama de participantes que não atuam em nenhum tipo de organização política.

Esse coletivo diversificado compõe o Bloco de Luta pelo Transporte Público, que é um dos principais aglutinadores de agentes sociais envolvidos nos protestos contra o aumento da passagem, mas cujos integrantes organizados — que participam de reuniões e assembleias — não são maioria entre os manifestantes. No primeiro protesto, no final de janeiro, os ativistas organizados em coletivos compunham parte expressiva da mobilização, que possuía algumas centenas de jovens. Entretanto, nos dois últimos atos, quando o número chegou à casa dos milhares, quem engrossou o caldo nas ruas foram jovens sem qualquer envolvimento com o bloco.

O cientista político e professor da Unisinos Bruno Lima Rocha observa que as organizações que apoiam e também convocam esses protestos não hegemonizam os atos. “No protesto de quarta-feira, claramente, havia pelo menos cinco forças políticas: PSTU, PSOL, Movimento Revolucionário, PCB e Federação Anarquista Gaúcha. Nenhuma delas é majoritária e consegue hegemonizar o ato. É um sintoma de que a manifestação transborda e se inverte. Quem está organizado em alguma instituição não consegue hegemonizar o que é convocado”, interpreta.

No final da manifestação de quarta-feira, muitos jovens gritaram para que os militantes partidários abaixassem suas bandeiras e bradaram: “O povo unido protesta sem partido!”. Na opinião de Bruno Lima Rocha, “o sentimento de não aceitar intermediários políticos é muito presente” nesse tipo de movimento. Ele acredita que isso pode “consolidar uma cultura política nova, que transborde a representação”. Mas alerta que também há riscos decorrentes dessa postura. “Na ausência de uma intermediação política, que acaba sendo deslegitimada, os atos podem deixar uma experiência, mas não um tecido social organizado”, ressalva.


“Quem pauta os protestos são os indivíduos, não as instituições”, observa sociólogo

Professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUCRS, Adão Clóvis Martins dos Santos entende que Porto Alegre está consolidando uma nova cultura de manifestações – a partir de referências que chegam de experiências como o movimento Occupy nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha.

“Existe um caldo de uma nova cultura e prática de mobilização se formando. É claro que existem partidos, diretórios estudantis e sindicatos que também organizam e convocam, mas quem pauta esses protestos são os diferentes indivíduos, não as instituições”, explica.

O professor afirma que essa estrutura fluída de organização confunde, inclusive, as autoridades públicas, que não estão compreendendo essa dinâmica. “Há algumas semanas eu ouvi de um policial militar que a polícia não sabe como agir em relação a esses movimentos. Não sabem qual o trajeto de uma marcha, pois não existe roteiro. O policial disse que é mais fácil lidar com o MST, que possui lideranças definidas, do que acompanhar um ato desses”, comenta.

Adão Clóvis observa que as causas que estão motivando os jovens a ir para as ruas hoje são diferentes das que mobilizavam a população entre os anos 1960 e 1980. “Um dos grandes movimentos de Porto Alegre hoje é a luta pelo espaço público democrático e pelo direito de ir e vir. A palavra de ordem desses grupos é contra a apropriação privada de espaços públicos. Questionam uma cultura que deseja que os jovens sejam segregados e confinados em espaços fechados, sem fazer ruído”, avalia.

O sociólogo acredita que o que levou pelo menos 6 mil pessoas às ruas na segunda-feira foi um processo de revolta contra diversas políticas restritivas, que acabaram tendo como estopim o aumento da passagem. “É uma reação a políticas que restringem o uso do espaço urbano e a capacidade do cidadão em se locomover por ele”, critica o professor, que também dá aulas sobre Teoria da Urbanização.

Apesar de reconhecer a predominância de indivíduos sobre instituições, Adão Clóvis entende que algumas organizações podem se readaptar a essa nova dinâmica de mobilização. “A partir de um determinado momento, DCEs importantes, como da PUCRS e da UFRGS, retornam às manifestações. Grupos recém iniciados na política chegaram à direção dessas instituições. Eles não possuem experiência, mas também não possuem os vícios de uma estrutura organizada”, entende.


“Vivemos movimento de explosão social que não ocorre pela via política tradicional”, diz professor da UPF
Professor de Sociologia da Universidade de Passo Fundo (UPF), Vinícius Rauber afirma que as mobilizações em Porto Alegre ganharam corpo porque o descontentamento em relação ao preço da passagem atinge boa parte da população da cidade. “A gênesis do movimento ocorreu com o fechamento de espaços de socialização da juventude. Com o aumento da repressão, a organização e as reclamações deixaram de ser apenas pela internet. No caso das passagens, o cidadão comum passa a se identificar com o movimento, pois vê que seu calo também está sendo pisado”, reflete.

Ele também reforça a semelhança dessas revoltas com os levantes em outros lugares do mundo, mas pontua diferenças. “Não é algo restrito a Porto Alegre. Vemos isso no Occupy desde 2010 e nas mobilizações da Primavera Árabe. Claro que, nesse último caso, tratava-se de sistemas totalitários que abrangiam toda população de um país. Mas o princípio é o mesmo: pessoas que se organizam na internet e vão para as ruas protestar contra a opressão de instituições do Estado”, qualifica.

Vinícius Rauber entende que as críticas que se proliferam à presença de partidos políticos nas manifestações refletem uma descrença na política institucional, mas não acredita que isso dê um caráter apolítico ao movimento. “Os protestos começaram como uma reação a uma política específica – como fechamento de bares –, depois foram aumentando, por conta da repressão, e se transformaram em manifestações de cidadania positiva. Estamos vivendo um momento de explosão social que não ocorre pela via política tradicional. A redemocratização brasileira ocorreu assim, com pequenos movimentos de esquerda demandando questões pontuais, até que a população se uniu em um movimento mais amplo. Estamos vivendo esta fase de transição e agregação“, resume.



Foto: Ramiro Furquim/Sul21

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Periferia: “mesmo céu, mesmo CEP, no lado sul do mapa?”

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Crise dos anos 1990 forjou identidade rebelde das quebradas. Mas ao retratá-la, em 2002, Mano Brown antecipava, angustiado, outro momento

Por Antonio Eleilson Leite, editor da coluna Literaturas da Periferia

(Segunda parte de ensaio sobre o rap Da Ponte pra cá, dos Racionais MCs e as transformações vividas pelas periferias brasileiras, seus habitantes e artistas. Leia aqui o primeiro e o terceiro segmento) 

II. Lavando o ódio embaixo do sereno

Da ponte pra cá é uma composição, cujo tema teve pelo menos dois anúncios prévios publicados por Mano Brown. O primeiro foi no ano 2000 no livro Capão Pecado, do escritor Ferréz, no qual, Brown escreve um texto intitulado A número 1 sem troféu1. O segundo foi no ano seguinte, na sua participação no CD solo do K L Jay, DJ dos Racionais. Este CD, de título KL Jay na Batida, vol. 3 Equilíbrio, lançado em 20012, traz a participação tanto de Mano Brown como do Edi Rock, os dois compositores do Racionais. No álbum duplo, Edi Rock abre o CD 1 e Mano Brow encerra o CD 2. Ambas as faixas tem o mesmo nome: “Privilégio”. Edi Rock canta a “Privilégio 1 que tem subtítulo Século 20 -21 que é um rap do qual participam os sócios de KL Jay na produtora 4 P, Rappin Hood e Xis. Um breve rap de 2,51 minutos. Já na faixa Privilégio 2 – O tempo é rei, com Mano Brown temos um depoimento do cantor que tem duração de 18m32s. Nessas duas colaborações em obras alheias, Brown antecipa vários elementos que estruturam o rap “Da ponte pra cáe indica o tom melancólico da composição encoberto por uma melodia dançante e harmonia vibrante que conduzem o ouvinte a um clima diferente do que o conteúdo da letra sugere.

A número 1 sem troféu:

No livro de Ferréz, o texto A número 1 sem troféu, o elemento central do rap “Da ponte pra cá já é dado no seguinte trecho:

Sem pretensão, a gente aqui do Capão nunca ia conseguir chamar a atenção do resto do mundo, porque da ponte João Dias pra cá é outro mundo, tá ligado?

Fica claro aqui a que ponte se refere a composição. Trata-se da Ponte João Dias que dá acesso aos distritos do Jardim São Luiz, Capão Redondo e Campo Limpo, entre outros bairros a partir de Santo Amaro, último bairro do lado lá. Via elevada sobre o Rio Pinheiros, continua em avenida homônima que depois passa a se chamar Estrada de Itapecerica da Serra, outra via citada em momento fundamental do rap. Esses três distritos somam mais de 1 milhão de habitantes e possuem características semelhantes compondo uma área urbana muito representativa do processo de periferização da região Sul de São Paulo: alta densidade populacional, serviços públicos escassos, assentamentos precários, falta de saneamento e transporte, entre outros direitos e altos índices de violência. Tais predicados eram ainda mais acentuados nos anos 1990 e início da primeira década do século XXI, época em que foi composto o rap “Da ponte pra cá. O próprio autor, baseado na sua percepção cotidiana da realidade afirma no texto:

São Paulo massacra os + pobres e aqui no extremo sul eu senti na pele o que é ser preto, pobre, filho de mãe solteira negra, que veio da Bahia com 12 anos de idade. Aprendi a não gostar de polícia (…) No Capão Redondo é onde a foto não tem inspiração para cartão postal (…) Capão Redondo é a pobreza, injustiça, ruas de terra, esgoto à céu aberto, crianças descalças (…) tensão e cheiro de maconha o tempo todo.

Porém, há no texto uma construção simbólica que define o Capão Redondo e as adjacências como um “mundo diferente”. Um mundo diferente, mas não um mundo à parte. O rapper situa esse distinto lugar dentro da cidade de São Paulo. Logo na segunda faixa do CD 1 (Vivão e Vivendo), a narrativa também se situa o contexto na Capital paulista: Você está nas ruas de São Paulo / Onde o vagabundo guarda o sentimento na sola do pé. Essa distinção não se restringe às carências relacionadas à precariedade urbana do lugar. Brown parece anunciar uma subjetividade coletiva traduzida no orgulho de ser deste local, apesar de todas as dificuldades que lhe são próprias. Veja:

São Paulo não é a cidade maravilhosa, e o Capão Redondo no lado sul do mapa, muito menos. Aqui as histórias de crime não têm romantismo nem heróis. Mas aí! Eu amo essa porra! No mundão eu não sou ninguém, mas no Capão Redondo eu tenho meu lugar garantido, morô, mano? (…) Capão Redondo, uma escola.

Nestes trechos citados no texto A número 1 sem troféu”, temos já três elementos fundamentais presentes na letra do rap “Da ponte pra cá: a) a definição geográfica e social (da Ponte João Dias pra cá / Lado sul do mapa / Pobreza, injustiça / Cheiro de maconha o tempo todo); b) a dimensão simbólica (Outro mundo / No mundão não sou ninguém, mas no Capão tenho meu lugar) e c) a dimensão subjetiva (Capão Redondo, uma escola / Amo essa porra!). 

Na letra do rap, composto mais tarde, o primeiro elemento se define principalmente no verso do refrão: O mundo é diferente da ponte pra cá. Os aspectos sociais relacionados à pobreza não são trabalhados no rap de forma direta, como em Negro Drama e nas duas versões de Vida Loka, por exemplo. Há uma abordagem indireta e irônica na seguinte passagem: Hey truta, eu tô louco, eu tô vendo miragem / Um Bradesco bem em frente à favela é miragem. Esses versos apontam a improbabilidade de uma instituição bancária se instalar junto a um lugar de concentração de pessoas de baixa renda. Passados dez anos, isso não só deixou de ser “miragem”, como até virou estratégia dessas empresas na busca pelas classes C e D. 

Ainda sobre primeiro elemento, destacamos os versos: Nunca mudou, nem nunca mudará / O cheiro de fogueira vai perfumando o ar / Mesmo céu, mesmo cep no lado Sul do mapa. O “cheiro de fogueira” pode ser uma referência cifrada a cheiro de maconha citado no texto. Não creio que seja um atenuante de censura dado pelo autor. Talvez seja uma opção em função da rima interna: cheiro/fogueira. Se fosse maconha, a sílaba tônica não ficaria bem encaixada no verso. Não obstante, a fogueira em seu sentido literal é algo muito próprio da periferia, ou pelo menos era até a época em que o rap foi composto. Além do mais, é uma madrugada fria de inverno, período em que se torna ainda mais comum o hábito de se acender uns gravetos no centro de uma roda de conversa entre rapazes, prática cultural já citada em outras composições do Racionais3

Já o termo lado sul do mapa é idêntico ao do texto como se vê. O dado novo, me parece, é o CEP – código de endereçamento postal. A habilidade poética no uso deste termo que faz uma composição rítmica com céu (mesmo céu, mesmo CEP) resultou numa expressão que repercutiu junto a outros artistas e movimentos culturais de periferia, como identificou Heloisa Buarque de Hollanda4 e reforça o aspecto geográfico com uma sutileza muito interessante.

Sobre o segundo elemento, aparecem no rap, entre outras, as seguintes passagens: Nas ruas da Sul eles me chamam Brown / Maldito vagabundo, mente criminal / O que toma uma taça de champagne também curte / Desbaratinado, tubaína tutti-frutti. (…) Jardim Rosana, Três Estrelas e Imbé / Santa Tereza, Valo Velho e Dom José / Parque (Santo Antônio), Chácara (Santana), (Jardim) Lídia, Vaz (de Lima) / Fundão / Muita treta pra Vinícius de Moraes! Nos primeiros versos Brown retoma o tema fundamental da trilogia: “Negro Drama, Jesus Chorou e Vida Loka I e II. Enfatizando que o acesso a bens como champagne, supostamente adquirido em função da elevação de renda decorrente do sucesso comercial de sua música, não tira dele o apreço pelo refrigerante popular muito consumido nas periferias, símbolo de um segmento social do qual ele não se desvincula simbolicamente. Como é dito no rap Negro Drama: O dinheiro tira o homem da miséria / mas não pode arrancar dele a favela (primeira parte – Edi Rock) e Você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você (segunda parte – Mano Brow). O apego ao bairro e toda a “rapa” é algo indissociável para o autor, razão de ser da sua visão de mundo e de seu lugar no mundo. 

Faz muito sentido aqui a noção de frátria, definida por Maria Rita Kehl como “um campo de identificações horizontais” que justifica o tratamento de “mano”, indicando uma “ intensão de igualdade”5. O sentimento de igualdade derivado da condição fraterna entre os manos estende-se para os bairros de onde procedem essas pessoas. A forma como é citado cada um desses lugares dá a impressão de que “os manos” da periferia formam uma legião com alto grau de identificação e coesão. Indica a existência de um amplo movimento social, predominantemente juvenil, majoritariamente negro e pobre, pronto para o confronto. Daí, talvez a menção enigmática a Vinícius de Moraes. Este consagrado poeta é citado na letra do rap na sequência de uma série de bairros da periferia da Zona Sul de São Paulo, numa composição onde o aspecto geográfico é fundamental. 

Não faz sentido, aparentemente, que seja uma alusão à pessoa de Vinícius de Moraes (e sua condição de poeta, músico e intelectual ligado às classes médias) e sim um lugar de base territorial que leva seu nome. Como há um elemento de tensão explícito (muita treta), a citação sugere um lugar de oposição aos bairros citados. Essa oposição não seria, ao meu ver, de conflito interno (embora haja passagens na letra que revelam conflitos internos à frátria) e sim um fator exógeno. 

Minha hipótese é que o autor esteja se referindo à Praça Vinícius de Moraes no bairro do Morumbi, conhecido reduto da burguesia e classe média alta paulistana. Trata-se de uma praça muito ampla, ao lado do Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado, onde os moradores locais costumam se exercitar e passear com seus cachorros. Faço este destaque para debater com a dedução, ao meu ver equivocada, de Leandro Pasini, em texto citado anteriormente, no qual afirma:

(…) após enumerar alguns bairros da periferia da Zona Sul de São Paulo, Brown arremata: Muita treta pra Vinícius de Moraes! Ou seja, o rapper conclui que a violência de lá está muito acima das possibilidades expressivo-paisagística desse outro poeta-cantor que é Vinícius de Moraes”6

O elemento subjetivo, expresso no texto “A número 1 sem troféu” através da referência a “escola” e ao amor que o autor expressa pelo lugar, aparece mais explicitamente nos seguintes versos do refrão: Não adianta querer, tem que ser, tem que pá / Não adianta querer, tem que ter pra trocar. Logo depois do primeiro refrão: Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola / Minha meta é dez, nove e meio nem rola e nos versos finais do rap: Senhor, guarda meus irmãos nesse horizonte cinzento / Nesse Capão Redondo, frio, sem sentimento/Os mano é sofrido e fuma um sem dá guela / É o estilo favela e o respeito por ela/Os moleque tem instinto e ninguém amarela / Os coxinha cresce o zóio na função e gela.

Temos aqui a expressão do eu-lírico em três passagens fundamentais desta composição. No refrão a sentença de que a frátria está formada. Tem gente (mais de 50 mil manos anunciados no CD anterior) e território (da ponte pra cá). A adesão (à banca ou à frátria), entretanto, não é algo que se possa conseguir de forma voluntária, mas por merecimento, proceder e procedência. Zé povinho, playboy, malandrão vândalo, vermes e traíras e mulheres de certo tipo – quase nenhuma é digna, no universo misógino dos Racionais –, não entram. 

No rap “Da ponte pra cá, dividido em três partes, em cada uma delas um tipo social é rejeitado. Na primeira parte, os playboy: Playboy bom é chinês, australiano / Fala feio, mora longe não me chama de mano / Três vezes seu sofredor, odeio todos vocês. Na segunda parte, são os manos de quebrada que desandaram em busca de fama E tá tirando dez de havaiana (cumprindo pena na prisão). E por fim os bandidos “vândalos”, criminosos sem ética, Batendo no peito feio e fazendo escândalo. Identificados os elementos destoantes da irmandade, o rapper apela a Deus para guardar os “manos sofrido”, “ estilo favela” que botam medo nos policiais, referidos aqui pelo designação de “coxinha”, atribuída aos PMs devido ao costume de pararem em botecos e padarias para fazerem lanche.

Mano Brown, ainda que se mantenha inserido no mesmo contexto social de sua origem, encontra-se nele numa condição dúbia de pertencimento. Um lugar de dentro e ao mesmo tempo de fora, que lhe permite a tudo observar (“eu vejo tudo e ninguém me vê”) e formular juízo moral (não moralista) sobre o que se passa na quebrada que ele tanto ama, sua escola de vida. Seria ele o poeta épico freudiano (aquele que assume para si a autoria coletiva da morte do pai tirano)?7 Talvez se coloque como o guardião de uma irmandade na qual vive o conflito tenso e indissolúvel de pertencer, podendo dela se desprender pois seus laços não são mais materiais , mas apenas simbólicos.

O Tempo é rei:

Esse conflito fica ainda mais evidente no teor do depoimento do autor no CD de KL Jay, “Privilégio 2 – O tempo é rei. Na sua fala, aborda um outro aspecto que aparece depois na letra do rap “Da ponte pra cá”. É a crise de ordem existencial que o autor reconhece em si, mas principalmente na irmandade e me parece se revelar no seguinte trecho da letra de “Da ponte pra cá: Outra vez nós aqui vai vendo / Lavando o ódio embaixo do sereno / Cada um no seu castelo, cada um na sua função / Tudo junto cada qual na sua solidão / (…) Óh, filosofia de fumaça, analise / E cada favelado é um universo em crise.

Mano Brown chega ao estúdio da gravadora Trama onde Kl Jay produz seu CD e anuncia o tempo e o espaço em que se encontra. Uma quarta-feira do outono de 2001, por volta das 23h30. Os momentos que antecedem sua chegada serão a partir daí o enredo de seu depoimento. Saindo do Capão na companhia de alguns manos, passa pelo Jardim Miriam (outro bairro da Zona Sul, porém bem distante do Capão Redondo), onde observa a precariedade das residências de tijolo exposto, escadas quebradas, ruas de terra e bares lotados as 19h. Põe-se a refletir sobre o apelo que o bar exerce nos trabalhadores que se dirigem a este tipo de comércio antes mesmo de chegar em casa. “Entre o bar e o Jornal Nacional, não sei o que é pior”, resigna-se o rapper. “Sou um cara observador” define-se para anunciar em tom desesperançoso: “O mundo todo está em crise. Você não vê felicidade em ninguém, nem no pobre, nem no rico. Tá todo mundo desorientado. Eu também”, admite, embora reconheça que sabe o que quer, qualificando sua desorientação como um espasmo, um momento isolado de desconexão. 

Recupera na memória o momento de saída do Capão Redondo naquele dia. Expressa seu desânimo: “Lugar pra ter gente frustrada igual à Zona Sul, tô pra ver”. Relata ter visto os manos, cerca de trinta cara fumando maconha, rindo, porém, percebia no fundo do olho de cada um uma profunda tristeza. Mais um rolê, observa os barracos de uma favela no Capão, o som estridente da sirene de uma viatura da Polícia e imagina o sofrimento de alguém quando souber da notícia. Chama a atenção para a quantidade de ladrões: “na periferia, de dez, oito está roubando”. Tem mãe, diz ele, que fica aliviada ao saber que o filho está preso, pois assim se sente mais segura. 

Brown continua sua reflexão. Diz que jamais entraria no crime. Primeiro porque tem que sustentar o filho que está com seis anos. Depois, sua mãe não aguentaria saber de uma notícia dessas. Nesse momento, enaltece, como sempre faz, o amor que tem por sua mãe. Em tom confidencial, conta que seu respeito por dona Ana é tão grande que ele não é capaz de fumar na frente dela, admitindo ter queimado os dedos várias vezes ao apagar o cigarro às escondidas. Termina o depoimento agradecendo ao rap e a família Racionais. Reproduz frase que acabara de ver num outdoor que lhe fascinou e que diz: “a vida é desenhar sem borracha”

Mano Brown dá, em seu depoimento a devida dimensão do que realmente pensa sobre a quebrada, a irmandade, despido das rimas e da batida do rap “Da ponte pra cá. Toda a fragilidade está exposta num ambiente de crise social profunda como foi a que marcou a virada de século no Brasil e na Cidade de São Paulo em particular. Este rap expressa, na sua poesia e na fala de seu autor, que a frátria está dilacerada e que o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo, como sinaliza Maria Rita Keh8 é uma tarefa tão grandiosa quando improvável. 

Talvez por isso, “Da ponte pra cá termine com uma espécie de epitáfio, um apelo a Deus para proteger os irmãos sofridos num “Capão frio, sem sentimento, nesse horizonte cinzento”. Um quadro desolador também reconhecido por Ferréz no livro Capão Pecado, “lugar abandonado por Deus, batizado pelo Diabo”.9 Todo carga conflituosa e sombria deste rap destoa da melodia e da harmonia, bem como da interpretação no CD. A forma estética da música seduz o ouvinte, conduzindo-o a um estado de agitação e expectativa que destoa daquilo que sugere o conteúdo da composição. Citando os cursos de estética de Hegel, Walter Garcia nos explica o seguinte:

Da parte do ouvinte, sem muito risco de errar, pode-se dizer que a atenção dos sentidos é despertada antes da atenção do raciocínio, isto é, antes da compreensão efetiva do tema que se canta. Nisso o rap não é diferente de nenhuma outra forma de canção: seduz e arrebata antes de tudo pela sonoridade, ainda que justamente a letra indique o “que é mais preciso no conteúdo”.10

Da ponte pra cá, é um rap que exige a uma audição atenciosa. À primeira vista pode parecer uma composição de exaltação sustentada em apologia à periferia, despertando um rancor com o outro lado da ponte, embalada por uma melodia dançante e harmonia vibrante. Não é bem isso que revela a letra. Este rap é auto-crítico com a quebrada, vai fundo na miséria da existência humana, nas tensões e conflitos endógenos e busca luz numa instância divina para proteção de um povo que, embora forte (que “não amarela”), está à deriva, sem esperança. É “estilo favela”, mas em cada favelado há “um universo em crise”. Daí os versos , ao meu ver, centrais: Outra vez nóis aqui, vai vendo / Lavando o ódio embaixo do sereno. Talvez esse estado de crise e desesperança seja a razão deste rap aparecer como um apêndice do CD como dito no início deste texto. Não é nem “chora agora”, nem ”ri depois”. O sentimento aqui não é polarizado, é melancólico com variação de intensidade conforme o foco do narrador que vê “vermes e leões no mesmo ecossistema”.

III. É o estilo favela

No CD Nada como um dia após o outro dia, há uma faixa intitulada “12 de Outubro (faixa do 8 CD 1 – Chora agora). Não é um rap. É um depoimento de Mano Brown tendo como fundo um solo de violão. Nela, o rapper, novamente num rolê pela quebrada, sai da região do Capão Redondo, mais especificamente do Parque Santo Antonio, atravessa a ponte no sentido da Vila Santa Catarina no final da então avenida Águas Espraiadas (atual Roberto Marinho) e passa por um grupo de crianças numa favela. Cumprimenta os meninos e fica sensibilizado pela história de um deles que ganhou da mãe, no dia das crianças, um tapa na cara. A agressão materna foi uma reação contra o garoto que protestou por não ter ganho presente. Indignado, Brown faz um discurso em tom de protesto atribuindo aos governantes, de forma generalizada, uma violência entre família e vê naquele garoto, inexoravelmente, um futuro adulto amargurado, revoltado. Identifica a origem de um círculo vicioso no qual só os pobres se dão mal.

Temos aí uma crônica expressa de forma oral. Talvez pudesse virar um rap. Quem sabe, Brown tenha tentado. Na impossibilidade de compor a canção, não quis deixar de fora o tema, gravando-o como depoimento. Tenho a impressão de algo semelhante ter acontecido com o rap Da ponte pra cá. Observando a narrativa de O tempo é rei, fico com a impressão que ali está boa parte do conteúdo da letra desta canção que acabou por ser composta em forma de rap, gravada em CD e DVD. Entre uma e outra gravação, há um espaço de quatro anos. 

Em outra obra, o DVD Mil trutas, mil tretas, entre as quinze músicas do show realizado no SESC Itaquera, estão quase todas as faixas do CD Nada como um dia após o outro dia e três clássicos do CD Sobrevivendo no Inferno (“Fórmula Mágica da Paz; Tô ouvindo alguém me chamar e “Diário de Um Detento – todos de Mano Brown11). O rap “Da ponte pra cá é a faixa nº 6 do DVD, meio do espetáculo, portanto. Bem diferente do lugar em que se encontra no CD. Neste momento do show ficaram agrupados os raps mais sombrios. “Da ponte pra cá está exatamente entre duas músicas do Edi Rock: faixa 5, “O crime vai, o crime vem e faixa 7, “Expresso da Meia noite. Parece-me um dado relevante. 

Este último rap é tragédia do início ao fim: tios embriagados, favelas, chacina, assassinato, pai espancando filha, menina que faz aborto com 15 anos, criança que nasce de estupro. Não há refrão, mas estes dois versos são particularmente marcantes: A vida no Fundão é desiquilibrada / Hebrom, Piqueri, Jova Rural, Serra Pelada. Percebo nesta passagem uma associação pertinente que reforça o tom melancólico e trágico que identifiquei no rap “Da ponte pra cá. A letra faz referência a um conjunto de bairros do extremo norte da Cidade de São Paulo, divisa com Guarulhos, muito próximos da Rodovia Fernão Dias, todos bairros surgidos nas décadas de 1980 e 1990, dois deles à base de ocupações feitas por movimentos de moradia e que se tornaram assentamentos muito precários12. Cenário de carência e violência muito semelhante ao Capão Redondo, palco do rap Da ponte pra cá. Edi Rock, porém, não aponta nenhuma saída, nem o apelo a Deus como há na composição de Mano Brown. O tom de desesperança e resignação toma conta. 

Por outro lado, a interpretação de Mano Brown e Ice Blue do rap “Da ponte pra cá no DVD é sisuda o tempo todo. Olhar raivoso e triste. Vários rapazes (manos) na parte de trás do palco, junto ao cenário, formam uma coletividade aguerrida e dançarinos de break fazem performances com máscaras toscas de monstros, dando forma final ao cenário desolador da periferia retratado neste rap e nos outros dois que o ladeiam no set list do show. Brown termina o rap com uma frase expressa de cabeça baixa: “Minha parte eu fiz”. Seria o ato de renúncia do poeta épico? “Borrou a letra triste do poeta” (“Jesus Chorou). Prevaleceram a melancolia, tristeza e desolação no coração do rapper durão. Um homem sensível e frágil por trás de um rap aparentemente de exaltação conduzido por uma sonoridade dançante e vibrante.

* Antonio Eleilson Leite edita Estéticas das Periferias. Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.

> Leia também as 35 edições de Cultura Periférica, a seção que Antonio Eleilson Leite publicou, entre outubro de 2007 e dezembro de 2008, no Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique.

1Na primeira edição deste livro, publicada no ano 2000 pela Editora Labortexto, o texto de Mano Brown aparece na abertura da primeira, das cinco partes da obra. Outros rappers escrevem também sobre o Capão Redondo na abertura das demais partes do livro. Na edição de 2005 e suas sucessivas reimpressões, o texto de Mano Brow passou para a orelha do livro. Porém, diferente da primeira edição, nesta, não é anunciada a participação de Brown na capa da publicação.

2Obra lançada pela 4P, produtora de KLJ (em sociedade com os rappers Xis e Rappin Hood) e a gravadora Trama, São Paulo, 2001.

3No rap a A fórmula mágica da paz do CD Sobrevivendo no Inferno , por exemplo, há o verso: Na roda da função, mó zoeira / Tomando vinho seco , em volta da fogueira

4BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa: Escolhas, uma autobiografia intelectual, Rio de Janeiro, Lingua Geral, Carpe Diem, 2009 (pag. 153) 

5KEHL, Maria Rita, A frátira órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo. In: ____ (org.) Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, pag. 212.

6PASINI, Leandro, op. Cit. (pag. 102) 

7KEHL, M.R, op cit. (pag. 217)

8KEHL, op cit (

9FERRÉZ, Capão Pecado, São Paulo, objetiva, 2010

10GARCIA, Walter, Sobre uma cena de Fim de Semana no Parque, do Racionais MC’s. In: Revista Estudos Avançados, volume 25, 71, janeiro/abril 2011– Dossiê São Paulo Hoje, IEA, USP (pag. 226)

11Diário de Um Detento é uma parceria de Mano Brpwn e Jocenir

12Falo aqui por conhecimento. Fui morador dessa região, tendo participado em 1984 do movimento de ocupação de terra que deu origem ao Jardim Filhos da Terra, citado no rap pelo apelido de Serra Pelada, em função do aspecto desordenado das moradias no declive de um vasto morro. O Jova Rural já foi uma concessão do Estado e e foi estruturado como conjunto habitacional do qual meu irmão, Antonio Silvestre Leite, foi o primeiro presidente da associação local. O jardim Hebron foi outra ocupação e o Piqueri, este sim, um bairro mais estruturado de expansão mais organizado, exatamente onde eu morava. Mas é tudo quebrada.