sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Documentário - Derrubaram o Pinheirinho



Documentário - Derrubaram o Pinheirinho de Fabiano Amorim

Ultra-capitalismo: do terrorismo ao calote mundial



Por Marcelo Salles

Por que não podemos classificar o terrorista norueguês como ultra-capitalista? Por que temos que nos conformar com o rótulo na capa da revista Veja, que o chama de ultra-nacionalista, ou com as variantes usadas no restante das corporações de mídia (atirador, terrorista, extremista e outros tantos, que confundem muito mais do que explicam). São confiáveis esses veículos de comunicação que imediatamente após o tiroteio apontavam o dedo para um providencial “extremista islâmico”? -- versão que, aliás, não resistiu a 24 horas.

Estou sendo radical? O capitalismo não prega genocídios? O capitalismo tem um lado humano? 

Quando digo que o marginal norueguês é ultra-capitalista não estou pensando nos postulados de Adam Smith ou naquilo que é permitido que se publique a respeito do sistema que domina o mundo. Estou me referindo ao que é escondido (o trabalho escravo ou semi-escravo e a máquina de moer essa gente que trabalha por um salário mínimo de fome) e ao que está implícito, às sutis formas de produção e reprodução de subjetividades, que interferem nas formas de sentir, pensar e agir dos cidadãos e, conseqüentemente, da própria sociedade em que estes estão inseridos. 

O assassino em massa que chocou o mundo agiu influenciado por doutrinas que pregam a concorrência violenta, o ódio ao próximo. Essa teoria que joga a culpa de tudo em estrangeiros, negros, gays, ou em qualquer um que seja diferente. É reducionista, mas funciona. Em vez de reconhecer os próprios defeitos, o que demanda tempo, reflexão e análise, basta jogar a culpa em alguém com quem a pessoa não se reconhece: o outro.

Não me parece casual que o alvo do assassino tenha sido um acampamento da juventude socialista, que reuniu centenas de jovens de todos os cantos do mundo – inclusive do Brasil. O bandido criticava o multiculturalismo e chegou a dizer que esse era o grande problema do nosso país. Essa seria a razão para sermos uma sociedade “disfuncional”, de segunda classe.

É evidente que o genocida norueguês nunca assistiu a um desfile da Estação Primeira de Mangueira. E nem viu um Neymar da vida jogando. Muito menos teve a oportunidade de apreciar uma partida como a de quarta-feira, entre Flamengo e Santos. Ali, na Vila Belmiro, quando todos os deuses do futebol (que não são nórdicos, por suposto) baixaram simultaneamente em campo, ficou provada a existência de milagres. Esses milagres que permitem uma jogada como a do terceiro gol do Santos, quando o miscigenado Neymar fez com a bola algo que desafia a compreensão até mesmo dos deuses. Esses milagres que fizeram com que o Flamengo virasse uma partida após estar perdendo por três gols de diferença, sendo que o miscigenado Ronaldinho fez três e foi chamado de “gênio” pelo melhor jogador do mundo na atualidade. Foi um jogo que será lembrado daqui a cem a nos. Deve ser duro para os racistas ouvirem isso, mas a verdade é que esses milagres nascem justamente com a miscigenação que as teorias nazistas repudiam. Futebol e música soam melhor quando tem mistura, é assim em qualquer lugar do mundo. 

A propósito: o nazismo não era capitalista? Se não, o que era?

A dificuldade de se entender o discurso do premiê da Noruega é compreensível. Todos ficaram chocados quando ele afirmou que discursos de ultra-direita são legítimos. Isso porque as corporações de mídia não conseguiram traduzir para o bom português; preferiram fingir que ele não estava se referindo à ultra-direita, ou seja, a versão mais descarada do capitalismo. Para as corporações de mídia é melhor apostar na confusão do que mostrar ao povo brasileiro que seus sócios e amigos defendem, por exemplo, o cercamento de favelas. Ou o abandono da gente pobre. A tortura de traficantes varejistas. 

Os tiros disparados na Noruega também ecoam nos Estados Unidos. O extremismo do assassino nórdico tem tudo a ver com o fundamentalismo neoliberal de mercado. Ambos reivindicam para si a verdade, como se existisse apenas uma, a deles. Ambos consideram-se pertencentes a uma casta superior. E ambos agiram com planejamento, método e frieza. 

Agora a maior economia do mundo anuncia tranqüilamente que pode dar um calote amplo, geral e irrestrito, mas não aparece um economista para entoar os cânticos de “irresponsável”. Onde estão os fiscais dos fundamentos da economia? Onde os que diziam que Lula quebraria o Brasil? Cadê a turma que defendia o modelo estadunidense como digno de ser seguido? Estão todos quietinhos, debaixo da cama, morrendo de medo das conseqüências, imprevisíveis, de uma moratória dos Estados Unidos.

O mundo não está nessa situação porque de vez em quando aparece um lunático disposto a tudo para fazer valer sua irracionalidade. Chegamos a este ponto porque o modelo de sociedade adotado pela maior parte do mundo não presta. Quem sabe a União de Nações Sul-Americanas – Unasul – aponte uma nova direção.


Marcelo Salles é jornalista, colaborador do www.fazendomedia.com e outros veículos de comunicação democráticos.

Fonte: Carta Maior

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

“Rede Globo tem medo da internet”


Blogueiros sofrem implacável perseguição judicial do diretor de jornalismo da maior emissora do país


Pedro Rafael,
de Brasília (DF)


Um dos espaços mais fortes de contraponto à hegemonia dos grandes meios de comunicação são os blogs de jornalistas e ativistas espalhados pela internet. A velocidade da rede e a capacidade de disseminação de informações têm provocado reações que revelam o verdadeiro compromisso dos empresários da mídia com a liberdade de expressão.

Na mais recente investida contra blogueiros, na semana passada, o diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, venceu em segunda instância o processo que move contra Rodrigo Vianna, repórter da TV Record e dono do blog Escrevinhador, que chega a ter mais de 30 mil acessos diretos por dia. O blogueiro, que foi repórter da Globo e saiu justamente por discordar da cobertura parcial da emissora nas eleições presidenciais de 2006 – em favorecimento à candidatura do PSDB – pode ser obrigado a pagar uma salgada indenização apenas porque exerceu o “sagrado” direito constitucional da livre opinião. O problema é que foi contra a Globo.

Vianna publicou em seu blog que o jornalismo da emissora comandada por Kamel era algo “pornográfico”, em alusão a uma infeliz coincidência: um ator pornô dos anos 1980 também usava o mesmo nome do manda chuva do jornalismo da Globo. Ao se apropriar da informação como metáfora, para produzir uma crítica, o jornalista atingiu o alvo.

“O que me interessava era a homonímia entre o ator pornô e o diretor da Globo, e não dizer que um era o outro, como afirma meu acusador. Tratou-se do exercício da liberdade de opinião, ou seja, usar uma metáfora para criticar o jornalismo pornográfico que a Globo pratica. Aí não pode, porque metáfora só quem pode fazer é o Arnaldo Jabor, que escreveu um livro chamado Pornopolítica. Eu recorri ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e perdi. O que eu vou fazer agora é recorrer aos tribunais em Brasília e seguir protestando, mostrando a hipocrisia dos caras que falam em liberdade de expressão, mas só para eles. É como os liberais do século XIX, que reivindicavam o liberalismo para serem donos de escravos porque abolir a escravidão, na visão de alguns desses liberais, atentava contra a propriedade privada, que eram os próprios escravos”, desfere o escrevinhador.

Rodrigo Vianna não é o único. Outros blogueiros bastante conhecidos como Luiz Carlos Azenha – também ex-repórter da TV Globo, Luiz Nassif, Cloaca News e Paulo Henrique Amorim colecionam no currículo ações criminais impetradas pelo diretor da vênus platinada. “Então, não pode fazer política, não pode brincar, criticar através do humor. Nem os militares fizeram isso com o Pasquim. É incrível como um sujeito como o Ali Kamel, que controla os noticiários da principal emissora de TV do país, que acaba influenciando outros veículos das Organizações Globo, quer processar um blogueiro como eu. É porque eles estão dando muita importância para a blogosfera”, desabafa Vianna.

“A mídia não aceita ser questionada. E as brincadeiras que a Globo faz com a Dilma no Zorra Total, por exemplo? Eles são ótimos para defender a liberdade deles, dos monopólios. Quando a brincadeira é com eles, não gostam e revelam um DNA fascista muito forte. Outro caso diz respeito ao jornal Folha de S. Paulo. Quando a turma fez uma crítica, como foi o blog Falha de S. Paulo, o jornal reagiu com ação judicial para tirar o site do ar”, aponta o jornalista Altamiro Borges, do Blog do Miro e presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé. Miro é um dos organizadores do Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, que já teve três edições.


Desvendando o jogo

Já faz um tempo que a liberdade de expressão na internet tem incomodado os maiores conglomerados de mídia do país. Em 2006, durante as eleições presidenciais, o acirramento da disputa produziu um dos episódios mais constrangedores do jornalismo contemporâneo. Às vésperas do primeiro turno, com todas as indicações que o então presidente Lula confirmaria a vitória sem a necessidade de novas eleições, nasce um escândalo que daria sobrevida para a candidatura do PSDB, na figura de Geraldo Alckmin. Operação da Polícia Federal, duas semanas antes, tinha desbaratado a tentativa de duas pessoas ligadas ao PT em comprar, com R$ 1,7 milhão, um suposto dossiê contra José Serra e outros tucanos graúdos.

A denúncia não teve o efeito prático desejado. Faltava a bala de prata para sensibilizar o eleitorado. Foi aí que surgiu Edmílson Pereira Bruno, o delegado da PF que havia comandado a operação contra os “aloprados” – alcunha que teria sido dita por Lula ao se referir às figuras que tentaram adquirir o dossiê e acabaram prejudicando o próprio presidente. Bruno convidou quatro jornalistas para uma conversa reservada e repassou os CDs com as fotos do montante do dinheiro que havia sido flagrado nas mãos dos compradores do tal dossiê. A conversa foi inteiramente gravada e nela se pôde ouvir os apelos excitantes do delegado para que as imagens fossem parar na edição do Jornal Nacional (JN) do mesmo dia, 29 de setembro. Dito e feito. Os jornais do dia seguinte estamparam a manchete com as fotos e o JN dedicou quase toda sua edição para mostrar as imagens da montanha de dinheiro. O uso político das fotos ficou ainda mais evidenciado pelo fato das matérias, todas elas, omitirem a conversa com o delegado, em que ele claramente condiciona a divulgação dos fotos para atingir a candidatura petista. Os próprios jornais difundiram a informação mentirosa de que as fotos teriam sido roubadas, quando, na verdade, tinham sido repassadas a eles pelo mesmo delegado.

No caso do JN, o uso político pôde ser constatado porque, na mesma noite em que se exibiram as fotos sem a contextualização de como foram obtidas, ocorreu a tragédia com o avião da Gol, em que morreram 154 passageiros no impressionante choque aéreo com o jato executivo Legacy, comandado por dois pilotos norte-americanos. Nada sobre o acidente foi informado, mesmo com a notícia repercutindo no mundo inteiro ainda durante a edição ao vivo do jornal.

Toda a ação orquestrada pela mídia nesse fatídico dia 29 de setembro de 2006 foi depois denunciada em reportagem da revista Carta Capital, assinada pelo jornalista Raimundo Rodrigues Pereira. Ocorre que a matéria, por sua vez, foi incrivelmente espalhada através de sites e correntes de emails pela internet e gerou uma onda de indignação que ecoou na redação da TV Globo. “Foi naquele momento das eleições que eu percebi o papel da internet”, relata Rodrigo Vianna, à época repórter da Globo em São Paulo. “Primeiro, porque as informações que foram colocadas por um colega de TV Globo na época, o Luiz Carlos Azenha, serviram de base para uma matéria da revista Carta Capital”. Azenha havia transcrito para o seu blog, o Viomundo, a íntegra da conversa com o delegado da Polícia Federal que vazou fotos da apreensão do dinheiro no escândalo dos aloprados.

“Os jornalistas que participaram da conversa com o delegado fizeram de conta que o encontro nunca existiu. A matéria da Carta teve uma repercussão muito grande na internet, nos blogs, tanto que a Globo teve que responder. O Ali Kamel admitiu que teriam que responder. Nem tanto por causa da revista, mas principalmente pela repercussão na rede. Foi aí que eu percebi que a Globo tem medo da força internet”, calcula. Foi em decorrência desse episódio que Rodrigo Vianna se desligou da emissora. Meses mais tarde, o próprio Luiz Carlos Azenha também desembarcaria do grupo de comandados de Kamel. Atualmente, ambos são repórteres da TV Record e mantêm, de forma autônoma, alguns dos blogs mais prestigiados da internet quando o assunto é política, jornalismo e temas da conjuntura, batendo a casa dos milhões de acesso/mês.


Mídia que incomoda

De lá para cá, o debate público, especialmente nos períodos eleitorais, tem ficado um pouco menos desigual. “Quando há a centralidade do modelo eleitoral, como tem sido no Brasil, a luta de classes se exacerba e as contradições ficam mais visíveis, aí a mídia alternativa cumpre um papel mais relevante e incomoda”, avalia Miro Borges, do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. Três episódios recentes estão entre os mais emblemáticos: a história da bolinha de papel é o campeão de preferência na internet. “Não fosse a mídia alternativa, a bolinha de papel teria virado um míssil na cabeça do Serra”, brinca Miro, em referência a bolinha de papel que atingiu a cabeça do tucano durante uma atividade de campanha no Rio de Janeiro. Ele alegou que tinha sido atingido por um objeto pesado e duro e criou toda uma cena, comprada pela maioria dos meios de comunicação, inclusive e novamente, o Jornal Nacional. A história virou piada.

Outro episódio foi a guinada conservadora da campanha de José Serra durante o segundo turno das eleições. Começou-se a espalhar um boato de que Dilma Rousseff seria defensora do aborto. Uma das porta-vozes do discurso obscurantista foi a própria esposa do candidato, Mônica Serra. “Até que uma aluna dela, através do facebook, escreveu uma mensagem dizendo estranhar a postura da Mônica Serra porque ela já tinha confessado ter feito aborto para as alunas, durante uma aula de dança. Aí eles tiveram que calar a boca e encerrar esse assunto imediatamente porque ficava evidente que era pura hipocrisia eleitoreira”, conta Miro.

Não à toa, também nessa época, José Serra cunhou a expressão blogueiros sujos, ao discursar para militares de pijama durante uma reunião na sede do Clube Militar, no Rio. Uma historia menos conhecida foi o clipe que a Globo preparou, em 2010, para comemorar o seu aniversário de 45 anos. “Por pura coincidência, justamente nos seus 45 anos de fundação, a Globo usou o mesmo refrão da campanha do Serra, o tal do ‘Queremos Mais’, utilizando, claro, atores globais e nas mesmas cores da campanha tucano. O clipe terminava com um número 45 gigante na tela”, ironiza Miro Borges. No dia seguinte, a blogosfera não deu sossego e a Globo, após uma consulta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que confirmou se tratar de propaganda irregular, acabou tendo que tirar o clipe do ar em menos de 48 horas.


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Por que a Aldeia Maracanã resiste


aldeia-maracanã
Acendeu-se a fogueira da mobilização. Apareceram negros, mulheres, militantes, hackers. Ninguém aceita substituir prédio histórico e polo político-cultural por vazio cinzento
Por Bruno Cava, no Quadrado dos loucos
O prédio do Museu do Índio (1865) é 83 anos mais antigo que o Maracanã (1948). Tem mais do que o dobro da idade do estádio. Isto significa que, quando o Maracanã foi construído, o prédio do Museu, que à época abrigava o Serviço de Proteção ao Índio, existia há mais tempo do que a idade atual do estádio (65 anos). Ali trabalharam pesquisadores, antropólogos e brasilianistas de destaque, como o sonhador Darcy Ribeiro, que sonhava com a primeira Universidade Indígena. Isso por si só, em qualquer governo inteligente do mundo, já bastaria para por um ponto final em décadas de descaso e fazer do lugar uma referência vital da história da cidade e do país. Fala-se tanto em sustentabilidade: como não ver o potencial educativo, cultural, antropológico, e até turístico?
A dignidade da questão é maior. Desde 2006, indígenas preencheram de história viva um marco do passado brasileiro. Os índios ocuparam um espaço que ninguém queria e erigiram suas casas nos arredores, transformando a paisagem. Expressão do movimento indigenista, afirmaram um direito num sistema político que ou os nivela a crianças, ou a aproveitadores; em qualquer caso incapazes de direito e despidos de legitimidade para criar sua própria história. A aldeia Maracanã se torna assim um laboratório de política no coração do Rio. Um indígena cotista da UERJ bate na mesa e declara que está assimilando a cultura branca e não o inverso.
maraca1940
Os governos só “lembraram” do Museu e dos índios para demolir o primeiro e remover os últimos. Outro pedaço do Rio de Janeiro, passado e presente, é vendido ao aglomerado de interesses imobiliários, financeiros, midiático-jornalísticos e empresariais da construção civil, que mandam na cidade. A justificativa do progresso opõe o futuro ao passado, o moderno ao atraso, o brilho ebúrneo da razão planejadora à escuridão do caos, da pobreza e das “raças inferiores”. Estas todavia falam do subsolo da história, seu rumor convoca outros espectros que rondam as Américas.
Hoje, a dignidade da questão é imensa. Os grupos indígenas na Aldeia Maracanã se multiplicaram e se organizaram. Acendeu-se a fogueira da resistência. Um acampamento fincou raízes pelo assoalho do Museu, produzindo seu discurso, mídia e cultura de resistência. Apareceu o negro, a mulher, o militante, o hacker. Os mundos se misturaram e se transformaram, transformando a própria imagem do que é fazer ocupação e movimento. Coletivos e movimentos sociais, ativistas e representantes, mídias livres e blogues independentes, estudantes, advogados e punks se juntaram para defender a memória vida desta cidade linda e insubmissa. Todos eles determinados a resistir à indesejada “lembrança” pelo poder público, cujo norte maior tem sido o mercado e suas “novas oportunidades”. Não só a resistir, mas a constituir seu espaço e seu tempo. Mais um Pinheirinho, dos mil que as “raças inferiores” continuam proliferando pelos Brasis, num contexto de higienização urbana e desenvolvimentismo.
A ameaça de uma invasão policial ordenada pelo governador paira sobre as atividades na Aldeia, enquanto a Justiça brasileira parece irremediavelmente presa ao formalismo que ampara os poderosos. Contudo, neste caso, nem mesmo as razões formais justificam a remoção e demolição. A FIFA não exige a retomada. O órgão federal de preservação (Iphan) é de parecer contrário. O órgão estadual (InePac), por sua vez, pediu o tombamento do prédio. Juízes já concederam decisões favoráveis pela permanência do Museu, embora rapidamente cassadas pelas instâncias superiores, mais próximas da esfera de barganha dos governos. Mandatários como Renato Cinco e Remoint Otoni, entre outros, — assim como o candidato a prefeito derrotado com 27% dos votos Marcelo Freixo, — trabalham por dentro do sistema representativo atrás de soluções pacíficas para o problema.
Um defensor público, exasperado, perguntou: “Por que vai demolir o prédio então?!” Segundo o próprio governo e o projeto de engenharia, aquela área não é essencial para qualquer estrutura ou instalação do novo estádio do Maracanã, e não impacta significativamente o calendário das obras para a Copa. Ela serviria, simplesmente, de “área de circulação”, para a movimentação dos visitantes. Noutras palavras, pretende-se substituir um prédio histórico, uma aldeia indígena e um nascente polo cultural e político da cidade viva por, nada mais nada menos, que um plano horizontal concretado, vazio, cinzento. Eis a razão de estado: mortiça e desmemoriada.
Como diria o velho mestre Darcy, nunca foi tão detestável estar do lado de quem está “vencendo”.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

De Chiapas à Palestina, outro futebol é possível

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Originários de Bristol, Inglaterra, os Easton Cowboys & Cowgirls viajam o mundo usando o esporte como ferramenta de crítica e mobilização social
Por Raphael Piva, no Opera Mundi
“Liberdade através do futebol”.  Este lema reúne punks, imigrantes, engenheiros, médicos, taxistas, mulheres e crianças quase todos os dias em campos e ruas da cidade inglesa de Bristol. Se não fossem suas raízes anarquistas, a rotina do Easton Cowboys & Cowgirls não diferiria de outros times de futebol amador ao redor do mundo, disputando partidas e torneios semanalmente em ligas regionais. Ao longo da sua trajetória de mais de 20 anos, o clube do multicultural bairro de Easton viajou o mundo, conquistando a simpatia de palestinos dos territórios ocupados, criando laços solidários com os zapatistas de Chiapas e descobrindo no futebol uma maneira de unir as pessoas e dar impulso a lutas sociais.
Essa história começou com uma despretensiosa “pelada” entre jovens de Easton no final da década de 1980. Em meio a manifestações contra as politicas neoliberais e repressivas do governo de Margaret Thatcher, as partidas de futebol disputadas aos domingos em praças públicas do bairro eram uma das poucas atividades não militantes na vida de algumas dessas pessoas. Essa brincadeira durou anos e só ganhou contornos de seriedade bem mais tarde. Em 1992, no mesmo momento em que a Inglaterra assistia ao nascimento da English Premier League – o novo formato da primeira divisão do futebol profissional inglês –,  o Easton Cowboys foi oficialmente fundado e ingressou na liga amadora de Bristol.
Ao final de sua primeira temporada jogando contra outras equipes da região, o Easton Cowboys viveu sua primeira experiência futebolística fora de Bristol. Por meio do contato que jogadores do time inglês fizeram um ano antes, durante uma turnê da banda de rock independente em que tocavam, a equipe viajou até a Alemanha e descobriu a então improvável combinação de futebol e anarquismo.
Jogaram um torneio de futebol na cidade alemã de Stuttgart, organizado por punks e squatters – pessoas que ocupam casas e prédios para a criação de espaços de convivência libertária –, que foi o ponto de partida para a construção de uma rede de conexão entre equipes amadoras da Europa que compartilham valores antifascistas e antirracistas.
O woodstock do futebol
A experiência vivida na Alemanha inspirou o time inglês e mostrou que não era preciso de entidades poderosas, como a FIFA e a UEFA, para desfrutar de todo o potencial do futebol. Com o apoio de alguns grupos independentes e equipes amigas, o Easton Cowboys organizou, em 1998, a primeira edição da “Copa do Mundo Alternativa”, sediada em Thorncombe, um pequeno vilarejo inglês. O torneio teve o formato de um grande festival que uniu mais de mil pessoas, durante cinco dias, promovendo junto ao futebol também diversas atividades culturais.
Além das equipes europeias, o campeonato contou com a participação de um time formado por adolescentes sul-africanos de Soweto, que chegou à Inglaterra com a ajuda de recursos arrecadados pelos organizadores. Dando algum sentido a famosa previsão feita por Pelé de que uma equipe africana seria campeã do mundo antes do final do século XX, os sul-africanos conquistaram a Copa do Mundo Alternativa de Thorncombe. Curiosamente, entre os jogadores do Soweto estava o então jovem Benedict Vilakazi, que vestiria a camisa 10 da seleção principal da África do Sul na Copa das Nações Africanas de 2006.
De um pequeno vilarejo inglês a Chiapas
Entre as pessoas das mais diversas origens que vivenciaram o torneio em Thorncombe, estava um casal de ativistas que acabara de regressar da região de Chiapas, no México, onde ocorrera a insurreição do EZLN (Exército Zapatista da Libertação Nacional) contra o Estado méxicano. Eles haviam trabalhado como observadores internacionais de direitos humanos na região depois do Massacre de Acteal, quando mais de 40 indígenas, incluindo mulheres e crianças, foram assassinados por grupos paramilitares em dezembro de 1997.
Sabendo da paixão dos zapatistas pelo futebol e tendo visto na possível visita de uma organização esportiva uma brecha às dificuldades impostas pelo governo mexicano para a entrada de ativistas de outros países, o casal propôs ao Easton Cowboys & Cowgirls viajarem ao Chiapas para enfrentar, dentro das quatro linhas, as equipes do EZLN. Entre o entusiasmo e alguma preocupação em relação aos possíveis riscos que acometiam a viagem, a ideia concretizou-se no ano seguinte.

[Capitães do Easton Cowboys e da equipe do EZLN se cumprimentam antes de partida]
Enquanto o Easton Cowboys cruzava o Atlântico em uma turnê solidária para desembarcar no cerne da luta socialista, o futebol profissional inglês passava por profundas mudanças. Em 1999, sete anos após o início da Premier League, o preço médio dos ingressos aumentou em cerca de 300% – segundo dados levantados pelo antropólogo e historiador Marcos Alvito da UFF –, restringindo o acesso popular aos estádios.
Futebol rebelde
De volta à Inglaterra, não restaram apenas lembranças das partidas disputadas em Chiapas. O conhecimento da penosa luta diária enfrentada pelo EZLN levou alguns dos ingleses a fundarem, em 2000, um grupo internacional de ajuda aos zapatistas. O KIPTIK (“força interior” na língua do grupo indígena Tzetzal, majoritário na região) trabalha diretamente com as comunidades e já arrecadou mais de 100 mil libras para a realização de diversos projetos.
A atuação da organização vai desde criar infraestrutura no local, como a construção de reservatórios de água potável e de assistência médica, até a distribuição na Europa do café produzido em cooperativas zapatistas. O KIPTIK também apoia atividades lúdicas na comunidade ligadas ao esporte e à arte, ajudando a expressar os sonhos e dificuldades dos que habitam as montanhosas florestas do Chiapas.
O goleiro Banksy
Em 2001, o time inglês retornou ao Chiapas com um reforço de peso. O artista de rua Banksy vestiu a camisa de goleiro do Easton Cowboys & Cowgirls e realizou intervenções no território zapatista. Nascido em Bristol, o grafiteiro participou dos primeiros passos dados pelo time inglês antes de mudar-se para Londres.
Banksy criou o desenho de uma camiseta idealizada pelo time inglês cujo lucro das vendas, que ultrapassaram a quantia de 8 mil libras, foi diretamente para os zapatistas.
Um outro futebol é possível
Estados Unidos, Marrocos, Palestina, Brasil e Argentina foram outros países visitados pela equipe inglesa, repetindo o formato de aproximar pessoas e apoiar lutas sociais a partir do esporte. “Isso (as turnês para o Chiapas) nos deu muita confiança e para mim pessoalmente (como a pessoa que fez a maior parte da organização de excursões para a Palestina). Eu pensei que a ideia de uma turnê de “solidariedade” poderia ser aplicada com sucesso em outros lugares”, explica a Opera Mundi Will Simpson, membro do time e autor do livro sobre a história do Easton Cowboys & Cowgirls.
R S Grove / Fellow Traveller

Mural pintado por Banksy, goleiro do Easton Cowboys & Cowgirls, em visita à comunidade zapatista em Chiapas, no México
A  equipe cresceu ao longo de sua história de mais duas décadas, chegando, hoje, a reunir mais de 200 pessoas entre vários times de futebol e outros esportes. Não são incomuns pessoas que entraram no time somente para jogar aos finais de semana na liga amadora local e acabaram se envolvendo em ações politicas internacionais.
Num momento em que cada vez mais os grandes investimentos financeiros e transações obscuras ditam a tona nos noticiários esportivos, a história do Easton Cowboys & Cowgirls nos mostra que, entre os rios de dinheiro que correm no futebol profissional atual e ameaçam afogar a paixão popular, um outro futebol ainda é possível.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Mali: o conflito, em poucas palavras


A República do Mali localiza-se na África Ocidental, e uma boa parte sua fica naquela região que se chama de Sahel. O resto é quase tudo deserto, o sul do Saara.
País com fronteiras artificiais como a imensa maioria dos países africanos, o Mali tem como habitantes pessoas das mais diversas etnias: de negros a árabes, passando pelos tuaregues, um povo bérbere nômade ou seminômade.
Árabes e tuaregues costumavam atacar os assentamentos de negros para capturar pessoas e vendê-las como escravos, a outros árabes, ou a portugueses. Muitos negros brasileiros são com certeza descendentes dos chamados malês, cativos de religião muçulmana e heroicos resistentes à escravidão no Brasil colonial.
No final do século XIX, o Mali transformou-se, como boa parte da região, em colônia francesa, emancipando-se pro forma somente em 1960. Seguiram-se vários governos, mais ou menos aliados à França (na verdade, controlados por ela), que pouco se importavam com seus habitantes, fossem eles negros, ou tuaregues.
Esses últimos cansaram-se do descaso do governo central de Bamako, localizado a várias e boas centenas de quilômetros de sua região natal, e um dia usaram as armas que sempre detiveram e sublevaram-se. Subsequentemente a um golpe de Estado que derrubou o presidente, na longínqua Bamako, capital do país, viram sua chance e proclamaram a República de Azawad, cobrindo uma grande parte da República do Mali – o seu norte.

Para seu azar, fizeram-no mais ou menos ao mesmo tempo em que, na Líbia, os turistas islamistas do mundo inteiro estavam visitando para contribuir modestamente à queda de Muamar Gaddhafi, fartamente subvencionados pelos regimes do “Ocidente”, e pelos fundamentalistas islâmicos da Arábia Saudita e do Qatar, ambos aliados do mesmo  “Ocidente”. Subvencionados não só com petrodólares, mas também com armas: armas também desse “Ocidente”.

Pouco a pouco, esses turistas, ou alguns deles, cansaram-se da Líbia e dirigiram-se ao sul, ao Mali, onde se juntaram com outros grupos islamistas lá já implatados ou em vias de formação e, meio que pegando de surpresa os tuaregues, que não são e nunca foram fundamentalistas islâmicos, tomaram o poder nessa região que se tinha separado do Estado malinês. Pelo menos três grupos fundamentalistas são conhecidos:
- a AQMI (Al Qaida no Maghreb Islâmico),
- o MUJAO (Movimento pela Unidade [de Deus, ou seja, pelo Monoteísmo] e Jihad na África Ocidental), ambos de inspiração salafista-wahhabista, e
Ansar ad-Din, um movimento islâmico tuaregue, mas que, ao menos em seu início,  poderia ser chamado de moderado.
Os dois primeiros grupos nstalaram nos territórios que controlam, inspirados na prática de seus financiadores sauditas, um regime reacionário, intolerante para qualquer tipo de Islã que não seja aquele baseado na interpretação wahhabita dessa religião, e isso num território onde a escola jurídica muçulmana malikita dominava, e onde o sufismo, essa vertente mística e, em regra, tolerante da religião muçulmana, estava bem ancorada. Além de introduzirem imediatamente a Sharia, a lei religiosa islâmica que rege a vida privada e social, começaram a destruir monumentos sufis, incluindo várias tumbas de xeques sufis venerados por seus discípulos na cidade de Timbuctu, que realmente existe.
Entra aí a França, antiga potência colonial e que, cinquenta anos passados da vaga independentista nas suas antigas possessões, ainda as considera como sua área de influência: como seu quintal, retomando uma expressão tão bem conhecida dos eventuais leitores latinoamericanos deste blogue. E, como todos sabemos, quem manda no seu quintal é o dono da casa! Ainda mais se nesse quintal, e no adjacente (o Níger), mas que também fazia parte do antigo latifúndio desmembrado, há enormes reservas de urânio e outros minerais importantes que, supresa!, são explorados preferencialmente por grandes empresas da pátria-mãe, perdão, da ex-potência colonial.
Os turistas islamistas são gente perigosa, inimigos do progresso, obscurantistas de pior espécie, nenhuma dúvida sobre isso. Que desapareçam da face da terra e que dêem lugar às luzes, como deveria ser o destino de todos os fundamentalistas religiosos! Mas são também muito úteis para confundir a massa da população que tem na “grande imprensa” ou, pior, nas redes de televisão a sua fonte exclusiva de informação. Para essas pessoas – a maioria da população – conta-se que a França decidiu levar a cabo uma intervenção militar no Mali para derrotar a ameaça islamista. Afinal, não se pode permitir que, a algumas horas de voo de Paris, um regime talibã seja estabelecido, não é? Não se pode permitir que, por exemplo, os tuaregues decidam sobre as riquezas de seu subsolo. Ou que os malineses de todas as raças façam o mesmo.
E aí envia a França, sob a coberta da luta antiislamista, antiterrorista, centenas de soldados e de mercenários da sua Legião Estrangeira ao Mali, que combaterão, com o apoio não só verbal dos outros países da OTAN e dos EUA, pelos interesses de algumas grandes companhias francesas e “ocidentais” , os mesmos islamistas, o mesmo tipo de pessoas que esses mesmos países apoiam abertamente, por exemplo, na Síria: com armas e com dinheiro.

Há, afinal, vários tipos de islamistas: os “bons” – e entre esses contam-se os que massacram muçulmanos não sunitas na Síria, e os “malvados”, por exemplo no Mali. Sem esquecer dos afegãos. Ah… os islamistas afegãos eram bonzinhos até expulsarem de lá os soviéticos, que apoiavam um governo local que muito fez para tirar o país das garras do obscurantismo religioso. Depois disso, viraram malvados.
E no Mali, a história se repete: os mesmos islamistas que, até pouco tempo atrás, na Líbia, faziam parte dos “bons islamistas”, mal cruzam a inexistente fronteira desértica e transformam-se em “islamistas malvados”, que devem ser combatidos para “defender o Ocidente”.
E ninguém nem pensa em se concentrar sobre os países que dão apoio ideológico, financeiro e em armamentos a esses islamistas: a Arábia Saudita principalmente, mas também o Qatar. Pois é de lá que vem a ideologia por trás desses grupos jihadistas: o wahhabismo, essa interpretação estreita, purista, reacionária e sumamente intolerante do Islã, doutrina oficial da Casa de Saud, os donos do país que leva seu nome.
Mexer com esses? Nem pensar.
Isso, em poucas palavras, o que está acontecendo no Mali.
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Adendo no dia 16.01.2013: @esquerdacrítica fez algumas pequenas alterações no texto acima, para torná-lo mais inteligível em alguns pontos. Adicionei também uma informação nova sobre o movimento islamista tuaregue Ansar ad-Din, que não segue a mesma linha ideológica dos dois outros movimentos citados. Além desses grupos islamistas, há ainda oMNLA (Movimento Nacional de Libertação de Azawad), composto por tuaregues, que também sofrerá as consequências dessa intervenção colonial, e que está por trás da criação de um Estado tuaregue.