domingo, 1 de dezembro de 2013

As fronteiras entre esquerda e direita na Europa

Em entrevista à Carta Maior, o sociólogo francês Gaël Brustier fala da crise da esquerda europeia e das dificuldades que ela enfrenta hoje.



Por Eduardo Febbro

A esquerda europeia se dilui. A socialdemocracia do Velho Continente ziguezagueia entre suas propostas ideais e uma ação política hiper-realista que não se separa dos cânones liberais quando tem que governar. Consensual, tíbia, moralista, apegada a suas conquistas do século passado, incapaz de oferecer uma visão alternativa que mobilize a sociedade, a socialdemocracia está em crise. As esquerdas da Europa são uma sombra do que já representaram em décadas passadas. Alguns analistas atribuem a ela até uma espécie de “prolofobia”.
 
Nos últimos 20 anos, a socialdemocracia europeia foi perdendo seus tradicionais bastiões operários e populares ao mesmo tempo em que ganhava o coração dos novos burgueses urbanos. Essa transformação da sociologia de seu eleitorado também transformou a esquerda e a relação de força dentro do jogo eleitoral: os operários e as classes populares votam à direita, os “novos modernos” na socialdemocracia.

O resultado é uma indiferenciação cada vez maior entre ambos os setores. A socialdemocracia pode ser tão adepta da globalização, dos ajustes fiscais e liberal como a direita. A ortodoxia financeira não lhe é indiferente. Em troca, as classes populares, ano após ano, abandonam suas fileiras. “Mas o povo existe!”, diz o sociólogo e cientista político francês Gaël Brustier em seu livro “Busca-se o povo desesperadamente”. Esse analista político escreveu vários livros sobre as transformações políticas atuais, especialmente sobre o futuro incerto da esquerda e a direitização das sociedades europeias. Em um de seus últimos livros, “La guerre culturelle aura bien lieu” (A guerra cultura vai acontecer) Brustier define o combate que a esquerda deve travar para mudar esse imaginário coletivo onde a direita se instalou comodamente na Europa hoje em dia.


Sua análise sobre o presente das esquerdas europeias não faz concessões. As reflexões de Gaël Brustier se inspiram muito nas do filósofo italiano Antonio Gramsci. Este pensador imperdível da esquerda foi um dos fundadores do Partido Comunista italiano. Gramsci foi preso pelo ditador fascista Benito Mussolini e morreu em 1937 quando saiu da cadeia. Nesta entrevista à Carta Maior, Gaël Brustier analisa a crise da socialdemocracia europeia, sua penosa falta de iniciativas e sua indefinição.


A divisão histórica entre a esquerda e a direita herdada da Revolução Francesa de 1789 parece estar chegando ao fim de um ciclo na Europa.


Com efeito. Essa divisão está sendo reconfigurada e reformada mediante outras diferenças. O conteúdo da esquerda de 2013 não é o mesmo do da esquerda de 1981, nem do de 1936. A direita também evoluiu. As diferenças entre esquerda e direita estão então em plena evolução, determinadas por sua vez pelas evoluções econômicas, pela desindustrialização e pela ruptura do esquema de classes sociais que atinge uma grande parte da população.


O Partido Socialista francês é hoje um partido de gente que vive nas grandes metrópoles, favoráveis à globalização. A direita, junto com a extrema direita, conseguiu conquistar os setores operários que durante muito tempo foram eleitores cativos da esquerda. Nos anos 80 ocorreram dois fenômenos: a ruptura do laço entre o voto classista, o voto operário, em favor da esquerda; e, paralelamente, a adesão de certa tecnoestrutura da esquerda às receitas liberais, à liberalização dos mercados internacionais. Esse setor da esquerda está convencido que é preciso desregulamentar e conduzir a França para o combate da globalização liberal. Estes dois fenômenos  conjugados definem a situação atual.


Se tivéssemos que tornar visível a linha que separa hoje a esquerda da direita, por onde ela passa?


É muito complicado. Mas podemos dizer que a linha de fratura passa pela sociologia dos dois campos. Certa burguesia de negócios permaneceu à direita enquanto que muitos operários e empregados passaram da esquerda para a direita. Por outro lado, muitos jovens com diplomas, que trabalham no mundo das ideias, na imprensa, na comunicação, que estão conectados com a mundialização, toda essa gente conforma a sociologia da esquerda. A fratura entre esquerda e direita já não passa tanto pelas questões econômicas. Hoje, fundamentalmente, no que diz respeito às questões econômicas as políticas que a socialdemocracia aplica na Europa não são tão diferentes das políticas aplicadas pelo bloco conservador. No parlamento europeu, por exemplo, os blocos da direita, o PPE, e da socialdemocracia, PSE, estão ligados pelo consenso europeu.


Por acaso, a Europa matou a esquerda então?


O problema da esquerda europeia reside em que sempre se remeteu a um plano ideal para justificar a Europa real. Quando se construiu o mercado único a esquerda disse: na próxima etapa vamos construir a Europa social”. Mas essa Europa social nunca se tornou realidade. A esquerda disse também que as instituições europeias eram bastante oligárquicas e prometeu que, no futuro, construiria uma Europa democrática. Isso tampouco virou realidade. Em suma, a vocação de uma Europa ideal sempre serviu para justificar a existência da Europa real. Hoje chegamos ao fim dessa contradição.


A socialdemocracia pretende mudar a Europa ao mesmo tempo em que adere ao marco consensual europeu. Observemos o que ocorreu com o presidente francês François Hollande. Antes de ser eleito, Hollande prometeu que iria renegociar o famoso pacto fiscal europeu firmado pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy e pela chanceler alemã Angela Merkel, pacto conhecido como Merkozy. Mas ele não cumpriu sua promessa impedindo que a política econômica europeia tomasse outra direção. Em resumo, as esquerdas europeias perderam a batalha ideológica. A Europa funcionou durante muito tempo como um mito de substituição.


Esta situação deixa um esquema muito claro: se usam os ideais para ganhar uma eleição, mas se governa exclusivamente com as realidades financeiras. Isso faz parte do consenso europeu.


O problema reside em saber quem é capaz de romper esse consenso. O Partido Socialista francês é, por exemplo, o mais poderoso da Europa: tem a presidência, as regiões mais importantes, as duas câmaras do Parlamento. Mas isso não ocorre com os demais partidos socialdemocratas da Europa. Por isso não podem nem aceitar, nem aplicar um projeto socialdemocrata alternativo. A esquerda europeia poderia começar a propor um plano radicalmente distinto ao da direita. Mas não faz isso.


A esquerda europeia dá todos os sinais de estar no patíbulo: é incapaz de operar uma verdadeira mutação e também de propor uma alternativa.


A esquerda não morreu, ela é um gigante ferido. Até os sindicatos, que sempre foram o sustentáculo da esquerda, estão debilitados. Depois de um século de socialismo a esquerda se tornou incapaz de imprimir na sociedade uma verdadeira visão mobilizadora, um projeto claramente identificável. A socialdemocracia está em crise. A esquerda radical também está em crise porque nem substitui a socialdemocracia nem consegue desempenhar um papel de contraponto eficaz aos desvios dos socialdemocratas. Por paradoxal que seja, hoje é muito mais simples ser de direita que de esquerda. A direita navega sobre as ondas do pânico moral, sobre o medo da decadência. É muito simples. Mas é óbvio também que, à esquerda, não houve um trabalho crítico sobre a ideologia dominante.


É preciso não se enganar mais: a esquerda faz parte hoje da ideologia dominante e não consegue transmitir um imaginário alternativo. Essa é sua grande dificuldade. Se observamos o que ocorre na França, os protestos mais fortes não vêm das esquerda, mas sim da direita.


Esta crise e estas novas fronteiras que você descreve são próprias da esquerda europeia. Elas não se aplicam tanto às esquerdas latino-americanas.


Certamente. As esquerdas latino-americanas são muito diferentes das esquerdas europeias. Em primeiro lugar, as esquerdas da América Latina assumiram e formaram um projeto geopolítico. Há 15 anos, ninguém pensaria que a América Latina teria a autonomia que alcançou hoje. É uma grande conquista. Os Estados Unidos já não podem dar ordens com tanta facilidade como antes, nem tampouco considerar que a América Latina é seu quintal. Kirchner na Argentina, Chávez na Venezuela, Correa no Equador, Morales na Bolívia ou Lula no Brasil ganharam espaços enormes, imprimiram a afirmação de uma autonomia enorme em relação aos Estados Unidos. Esses presidentes tiveram uma visão geopolítica e um programa de ação social.

 
A situação das esquerdas europeias não é comparável a isso. As esquerdas latino-americanas impuseram suas agendas, conquistaram eleitores, desenvolveram sua visão de mundo. Esse esquema funciona porque essa esquerda é capaz de mobilizar a sociedade. Comparadas com as da Europa, as esquerdas latino-americanas são muito mais dinâmicas.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer




Fonte: Carta Maior

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