sexta-feira, 14 de junho de 2013

Grampearam o Mundo (e tem gente achando normal)

Edward-Snowden1

Antonio Engelke

Sabemos pouco, mas o pouco que sabemos impressiona. O jovem Edward Snowden veio a público revelar que a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA, na sigla em inglês), na qual trabalhava, vem monitorando as atividades privadas de cidadãos do mundo inteiro através da espionagem de seus e-mails, conversas por Skype e interações via Facebook. O programa, chamado Prism, não é exatamente novidade. Parte da má fama do governo Bush deve-se a iniciativas que obedeciam ao mesmo princípio: em nome da segurança nacional, da prevenção contra ataques terroristas, sacrificam-se liberdades individuais, violam-se direitos de privacidade. A administração Obama não fez mais do que lhes dar continuidade, o que surpreende apenas os que preferiam minimizar ou ignorar questões como a manutenção da prisão de Guantánamo e a ampliação do uso de drones no Afeganistão.

Fatos desta magnitude e importância geram debates cujos termos são em larga medida estabelecidos pela cobertura jornalística que recebem. Colunistas ocupam aí uma posição privilegiada, pois cumprem a função de avaliar criticamente os eventos, interpretando-os ou conferindo-lhes um sentido que a descrição supostamente neutra de seus colegas de redação é incapaz de prover. Quando a denúncia de Edward Snowden veio à tona, imediatamente ansiei pela opinião do Pedro Doria. Atual editor executivo de plataformas digitais do jornal O Globo, Doria foi um dos pioneiros da internet no Brasil. Autor de 4 livros, co-fundador do extinto site no.com.br e primeiro a fazer um blog jornalístico no Brasil (o saudoso Weblog), Doria especializou-se no cruzamento entre jornalismo, tecnologia e política: foi Knight Latin American Fellow da Universidade de Stanford, pesquisando a relação entre internet e democracia.

Não precisei esperar muito. Sua coluna desta terça-feira, 11 de junho, “Seremos todos espionados”, vai ao assunto. Afirma, em tom realista, que a espionagem digital de cidadãos não é nem exclusividade do governo norte-americano, nem prática passageira, e que tende a generalizar-se nos próximos anos. Expõe a origem de sua infraestrutura técnica: a criação, em meio à “cultura libertária” de empreendedores do Vale do Silício, de algoritmos que permitem identificar e avaliar com precisão a preferência de indivíduos online, permitindo assim a venda de publicidade direcionada. O objetivo primordial dos algoritmos não era espionar ninguém, mas como se mostraram capazes de conhecer em detalhes os desejos e os percursos das pessoas, acabaram servindo “como uma luva” aos propósitos menos nobres do estado. Encerra decretando: “Se é digital, é inseguro por natureza. Nossas vidas serão, cada vez mais, um livro aberto. Para governos. E para outros”.

Há uma verdade aí. Está correto o diagnóstico da inevitabilidade do seqüestro das tecnologias de informação para fins de vigilância por parte do estado. Mas uma coisa é fazer do diagnóstico uma espécie de sentença definitiva e irreversível, que portanto dispensaria de antemão qualquer esforço no sentido de lhe pensar a resistência. Outra, totalmente diferente, é transformá-lo no combustível desta resistência. A julgar pela certeza futura enunciada já no título do artigo – Seremos todos espionados –, Doria fica com a primeira opção. Neste sentido, é sintomático que palavras como “direito” e “democracia”, ou expressões como “liberdades civis”, estejam ausentes de seu texto e, mais ainda, que ele reserve dois parágrafos para descrever o parque tecnológico que a NSA está prestes a inaugurar. Qualificando-o de “invejável”, faz questão de detalhar sua capacidade de processamento: “Um yottabyte equivale a um milhão de exabites. A proporção é esta”. Obviamente, não quer isto dizer que Doria endosse a espionagem levada a cabo pelo Prism; tendo acompanhado diariamente seu trabalho no Weblog durante anos, sei que nem de longe é o caso. Contudo, é impossível não notar o fascínio que transborda da grandiloqüência através da qual ele descreve aquilo que deveria criticar. Tal fascínio, expresso no elogio à capacidade técnica por trás da operação de espionagem, torna-se ainda mais revelador quando levamos em conta todas as urgentes questões às quais o artigo não faz referência. Isto sugere que, neste particular, a imaginação do colunista está em larga medida com o poder, sendo-lhe condescendente, e não contra ele.

É questão de perspectiva. A escolha de olhar este episódio pelo prisma da resistência não condena o pensamento a gravitar em torno de clichês como o big brother orwelliano, tampouco nos limita a um espasmo de indignação moralizante calcado na reivindicação abstrata por liberdade. Podemos, por exemplo, situar seu significado dentro de uma linhagem de eventos históricos que tem em Dreyfuss e Watergate seus casos paradigmáticos. Podemos abrir a reflexão para o paradoxo que a situação de Snowden evidencia: a justiça (o rapaz fez “a coisa certa”) contradizendo o Direito (o rapaz cometeu um crime), assim revelando-lhe o limite. Podemos ainda inscrever o debate que inevitavelmente se seguirá dentro da luta política que vem sendo empreendida por todos aqueles que querem uma internet aberta e livre, como os ativistas ligados às iniciativas A2K (“Acesso ao Conhecimento”) e Creative Commons. Privacidade para a vida privada, transparência para a vida pública. Deveria ser óbvio. Não é.

Doria, contudo, prefere naturalizar a internet como espaço da insegurança, ao invés de vê-la como um terreno de disputa e em disputa, em que a insegurança, como em qualquer outra esfera da vida, é produzida. Reparem no fechamento (de questionamentos, de possibilidades) que o argumento opera: se a internet é “insegura por natureza”, então não há muito o que fazer a respeito. Diante de um tal ambiente, dominado por forças espetaculares que manejam seus yottabytes fora de qualquer controle e verificação, restaria ou a condescendência comodista e desinteressada, ou o exílio online auto-imposto. Coerente, Doria declara a inevitabilidade do fim da privacidade na era da informação digital – mas apenas para sugerir que não há opção senão nos conformarmos em ter a vida devassada pelo desvio de uma tecnologia feita por uma turma que só estava querendo descolar uma graninha vendendo publicidade. Trata-se, em suma, de um convite velado à resignação: menos um relato sobriamente realista da realidade do que um veículo de sua normalização.


 Fonte: Revista Pittacos

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