quinta-feira, 30 de maio de 2013

A Cisma do Bosta

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Joãozinho do Rio

Há alguns dias atrás os cariocas foram surpreendidos por um episódio no mínimo curioso, no qual o prefeito da cidade, Eduardo Paes, agrediu com socos um cidadão conhecido pelos seus como Botika. A motivação para a agressão, segundo veiculado nos jornais e pelo próprio Botika em seu perfil numa rede social, se deu em virtude de alguns xingamentos – o mais notório “bosta” – proferidos por ele contra o prefeito, que estava jantando com amigos no mesmo restaurante japonês que o seu desafeto-relâmpago. Não se sabe se ambos pediram o mesmo prato. Sabe-se, no entanto, que divergiam sobre a forma como a cidade do Rio de Janeiro deveria ser governada e, alguns saquês mais tarde, deu-se as vias de fato.

Na grande mídia, a “cisma do bosta” ficou entre o obscurecido e o minimizado, na cor marrom que também define nossa imprensa. Já nas redes sociais o tratamento dispensado ao episódio se situou dentro do velho padrão maniqueísta que costuma caracterizar as intervenções/opiniões na internet: preto ou branco. O artista, para alguns, se tornou herói. Para outros, um moleque que não tinha o direito de fazer o que fez, da forma que fez, no lugar onde fez. No geral, o debate, se é que podemos chamá-lo assim, parece concentrado na ideia de certo ou errado. Ou de quem está menos errado.

Qualquer um já deve ter experimentado algo semelhante na infância. “Ele me bateu”. “Não, pai, ele que começou com o xingamento”. Eu passei por isso inúmeras vezes quando era garoto. Meus pais sempre colocavam os dois de castigo. Mas não estamos falando de crianças. E eu, particularmente, não quero falar nem mesmo de adultos com posturas infantis, como são ambos os “meninos mimados” e bem nascidos da zona sul carioca que protagonizaram esse patético episódio. Meu ponto é outro, que não trata do entrevero entre indivíduos privados, mas da vida pública e alguns de seus aspectos simbólicos.

Em virtude dos megaeventos que acontecerão no Rio de Janeiro em futuro próximo, a cidade tornou-se objeto de grande interesse político e empresarial. Até aí, nada a declarar – afinal, a reestruturação da cidade é uma demanda centenária e, sob os auspícios dos megaeventos, uma oportunidade salutar. Contudo, vê-se muito pouco acontecendo nos termos de um legado para a cidade e sua população. Ou melhor, até se vê, mas não da forma imaginada pelos cariocas regulares que não pertencem à família de Eike Batista ou que não são acionistas da Odebrecht. O desapontamento daqueles que, tardiamente, se deram conta da orgia especulativa que tomou conta do Rio é evidente. E esse desapontamento, no geral, quando ganha corpo sob a forma de protestos, é respondido com truculência ímpar. O Rio tem sido, à duras penas, mantido calado à força. Na base do spray de pimenta pra classe média e das armas empunhadas contra os favelados durante as remoções.

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Apenas a título de ilustração, no início de maio acompanhei uma pesquisadora canadense que estuda os megaeventos no mundo. Visitamos uma série de lugares afetados direta ou indiretamente por esse processo. O grau de obscurantismo é inacreditável. A ponto de sermos impedidos de tirar uma simples fotografia de um canteiro de obras, situado próximo à Central do Brasil, onde estão erguendo prédios para alocar parte dos moradores que serão removidos do morro da Providência. E estávamos numa via pública. Isso não impediu que fôssemos violentamente embarreirados pelos seguranças da obra – segundo os quais tinham ordens superiores para assim procederem. A episódios como esse somam-se inúmeras denúncias de superfaturamento e corrupção, que não vêm ao caso serem comentadas. Não aqui. Independente disso, parece evidente que o processo de reestruturação da cidade é imposto de cima pra baixo, sem qualquer tipo de reflexão, diálogo ou preocupação com a coisa pública.

Nesse contexto, algumas esquizofrenias acabam por emergir. A Aldeia Maracanã foi uma delas. Quem mora no Rio e conhece aquela região sabe que o prédio não tem nada de indígena. Estava simplesmente abandonado. Caindo aos pedaços. Ninguém reclamaria de sua derrubada em uma situação normal – embora a arquitetura do prédio, de grande beleza, ainda pudesse ser resguardada com uma reforma. Mas então por que fizeram tanto estardalhaço por uma construção quase em ruínas? Seriam aquelas pessoas ingênuas? Ou maldosos oposicionistas políticos?

Para mim, Joãozinho do Rio, flâneur por opção e pitaqueiro por esporte, tanto a Aldeia Maracanã quanto as reações sobre a “cisma do bosta” espelham uma necessidade da cidade falar. Uma vocação nossa. As pessoas não lutaram por um prédio, mas por um símbolo. As pessoas não defenderam uma agressão verbal contra o Dudu, sujeito privado, mas um grito público contra sua administração particular. Gritaram contra o silêncio que vem sendo imposto goela abaixo dos cariocas e que, mês a mês, tem sido de cada vez mais difícil digestão.

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É por isso que, no caso específico da discussão no restaurante chique do Jardim Botânico, as reações, em sua maioria favoráveis ao Botika, espelham apenas superficialmente uma opinião sobre o episódio em si. A “cisma do bosta” tem um quê de vingança, de revolta – não sobre sujeitos privados, mas públicos, encarnados nas duas figuras que digladiaram num domingo tedioso. A transformação do xingamento de um cidadão nos socos do prefeito não diz respeito apenas a Botika e Paes. O episódio espelha dramaticamente o modelo de Rio de Janeiro em que atualmente vivemos. O modelo do silêncio. O modelo da força. O modelo da grana. O modelo em que um “princípio de desentendimento físico” – segundo as palavras de Eduardo Paes – é principiado pelo próprio poder público toda vez que uma voz dissonante se faz ligeiramente ouvir. A “cisma do bosta” foi um desses eventos espetaculares em que o micro traduz o macro. A infantilidade etílica do protesto, num momento de baixa autocensura e, ao mesmo tempo, da possibilidade de se fazer ouvir diretamente por uma autoridade que se recusa a ouvir algo mais que o tilintar das moedas no cofrinho, retrata, de forma triste, lamentável e caricata, um problema muito sério.

Se Botika agiu como um menino mimado, chamando o prefeito de bosta, ele está duplamente errado. Eduardo Paes não é um bosta. Provavelmente é um verme. Uma Taenia solium que parasita um Rio de Janeiro cansado da carne do porco orwelliano gordo e burguês.  E esse verme, que se alimenta do vigor da nossa cidade, insiste em nos tornar politicamente anêmicos. É por isso que manifestações tristes e pálidas como as de Botika ganham cor, mas não a cor marrom da mídia, tampouco o preto-ou-branco da internet. A cor é vermelha – vermelho-sangue – da indignação pública, mas também da violência com que a indignação pública é tratada por essa bosta de prefeito que saiu do nosso próprio rabo – não esqueçam – nas últimas eleições.



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