sexta-feira, 12 de abril de 2013

A Dama de Ferro: o filme

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Por Carla Luciana Silva


Normalmente quando se resenha um filme recém-estreado tem-se o cuidado de não contar tudo sobre ele, não explicitar demais o roteiro, não contar “o final” para que outros possam assistir-lhe. Não é o caso em Dama de Ferro (Phyllida Lloyd, 1h44). Quanto mais se falar dele numa resenha mais diminui a chance de que outros queiram assisti-lo, ainda bem. O filme não vale a ida ao cinema e o pagamento do alto preço; além disso, há o incômodo de ver sempre algum vizinho de poltrona admirado com o personagem criado na grande tela [ecran], sensação desagradável. Afinal, o filme foi laureado por duas estatuetas no Oscar. Meryl Streep, por sua atuação, ao construir uma personagem de forma absoluta e inquestionável. E, ao mesmo tempo, maquiagem. Perfeito, afinal, o filme propicia um tal maquiamento da história e construção de uma memória estetizada que realmente faz pensar que mereceu o prêmio.

O filme tenta fazer piadas, fazer rir através da criação de um personagem – o marido, um boboca [palerma] que nada mais é do que a vingança de todos os homens sobre uma mulher poderosa, numa alegoria fraca, sem graça e falsa que o filme cria. Gera-se uma espécie de Ghost: do outro lado da vida. O homem, marido da grande dama de ferro, que aparece não só como sem personalidade mas como alguém que vive do ar que ela respira, e não um grande empresário do ramo petrolífero, é um fantasma que a assombra em suas alucinações doentias. Se ao longo da vida ela quis agir como homem (“forte”), no fim da vida, apenas depois do fim da vida do seu “fraco” marido, ele tem o poder de infernizá-la com coisas banais, como contar o final do livro que ela está lendo ou colocando em xeque seu poder absoluto.

A trama do filme é a história de uma senhora que não consegue desapegar-se do passado, o seu passado pessoal e seu papel histórico. Mas o passado pessoal será facilmente descartado, doado para a Oxfan, através das roupas do marido morto que farão com que ela complete seu luto. No final do filme ela consegue se desfazer das roupas e do fantasma, quando finalmente vemos uma emoção, uma lágrima lhe escapa do olho. Ela perdeu seu apego pessoal. Mas, e o legado histórico? Bem, a reconstrução de uma memória absolutamente conservadora é o que filme propõe sucessivamente. Um passado reificado, um “objeto de consumo, estetizado, naturalizado e rentabilizado, pronto para ser utilizado”.[1] Não existe memória sem consequências, sem implicações, e é esse embate que queremos perceber no filme.

As remissões à Margareth jovem são bizarras. Primeiro, mostrando um ideal presente nas falas de seu pai, de um conservadorismo a toda prova, de um individualismo segundo o qual pode o personagem se colocar como portador da verdade, ela possui a verdade e não importa o que aconteça, fará com que ela impere, à luz da construção do seu poder. O personagem Thatcher surgirá como guia, alguém que deverá levar o partido a um caminho. Interessante que esse caminho aparece apenas como idealizado por essa mulher jovem, idealista. Em nenhum momento se refere ao seu embasamento teórico neoliberal, que fundamenta com precisão as políticas que colocaria em prática, suas relações com Hayek, nada disso aparece no filme; afinal, é uma “memória pessoal”.

A figura da “mulher” também passa por contradições. A mulher velha sofre na memória suas escolhas históricas com relação aos filhos. Busca se reconciliar com o filho, a quem ela chama em vários momentos de senilidade, por quem clama e que sarcasticamente no final se nega a aparecer, “foge” para a África do Sul, não tem tempo para a mãe. A culpa da mãe que trabalha e que “abandonou” o filho, ao dedicar-se a qualquer coisa na vida, no caso, a política, fica mais uma vez interiorizada.

Já li em vários lugares comentários alegando um certo “feminismo” no filme. Ideia mais absurda! O tempo todo o personagem deixa claro que “prefere a companhia dos homens”, porque eles teriam obviamente uma lógica própria, um modus de ser distinto, que não seria fútil como o das mulheres. Com eles estava o poder. Interessante que o filme mostra justamente uma mulher não apenas bonita, como atraente, focando em várias cenas seu corpo acinturado, focando seu traseiro marcado pelas saias de um azul claro celestial. A cena que precede sua entrada no Parlamento como primeira-ministra tem uma virada de corpo que faz dela uma Marilyn Monroe da política, mas aos avessos, porque quando ela dá a virada com a saia os homens como que desaparecem, abrindo caminho para sua entrada triunfal.

Assim, de feminismo o filme não tem nada. Tanto é que em uma das últimas cenas Margareth aparece lavando a xícara do próprio chá que acabara de beber. Ou seja, encerrada na cozinha. Aliás, é na cozinha que se passam várias de suas alucinações, como se aquele espaço representasse a prisão da qual fugiu mas que agora a prendia, e o marido (ghost) retornava para torturá-la psicologicamente. Aliás, a única cena em que sua mãe aparece no filme ocorre quando ela foi chamada para a Universidade, comemorou com seu pai e, quando foi ao encontro da mãe, essa se “esconde” lavando louças na cozinha. No âmbito da “prisão” de sua cozinha, numa cena mostra sua vingança, acendendo todos os eletrodomésticos para fazer barulho e impedir de ouvir as críticas do fantasma do seu marido sobre seu papel histórico.

Há ainda outra cena de uma sensualidade descabida. Diante de um debate forte sobre a resistência do aprofundamento das políticas neoliberais, ela, impassível, tem seu vestido ajustado por uma serviçal, que aparece apenas de costas e que foca todo seu trabalho em ajustar os peitos da dama de ferro. Numa cena em que os homens do partido falam que não poderão mais aguentar o arroxo [cortes de salários], a câmera foca nos peitos pendularmente. No final, ela aparece triunfal, dizendo que esse remédio amargo iria aplicar no seu povo/doente que precisava de remédio, segundo ela própria.

A figura autoritária é tão forte que mais tarde, quando consulta o médico, ela dá uma lição de moral dizendo-lhe que ele deveria perguntar o que ela pensa, não o que ela sente. Ou seja, quando está de um lado, aplica o remédio e pronto; quando está do outro, ensina ao médico a não aplicar o remédio. O filme com isso naturaliza o remédio, como se Thatcher não tivesse historicamente sido a responsável pelo desemprego massivo que criou com suas medidas.

Quando foi primeiro Ministra da Educação, além de ter fechado várias escolas, uma de suas medidas mais controversas foi acabar com o leite da merenda escolar. O filme, que em nenhum momento fala disso, começa com Thatcher fugindo do controle de seus empregados e indo ao mercadinho comprar leite, e reclamando do preço do leite, que havia subido de novo. Ela compra o leite em meio a desconhecidos, como se tivesse finalmente se misturado, passando, ironia da história, a ser uma igual.

Também o discurso antiterrorista acompanha todo o filme, assim como atentados do IRA, que vão seguindo ao longo da trama. Não aparece, no entanto, a intransigência da personagem, essa memória que se constrói possui apenas um lado. Interessante observar como o discurso de realocação do papel histórico de figuras deploráveis para a classe trabalhadora, como Thatcher, segue uma linha parecida com aquela usada nas biografias de grandes fascistas, como no caso do ditador português Salazar, que é mostrado como um homem solitário, e que seria o preço a pagar pela dedicação de uma vida inteira à “causa pública”. Nessas biografias desaparecem seus apoiadores e todos aqueles que lucravam com suas decisões. No caso de Thatcher, vemos raramente relações pessoais além da família. Uma cena de seu triunfo pós-guerra das Malvinas a mostra bailando com ninguém menos que Ronald Reagan, como se fosse um conto de fadas.

Desde o início do filme suas lembranças vêm acompanhadas da moral de que o Estado não deve intervir, não “sabe” o que fazer, e que cabe às pessoas cuidarem de si. Isso remete ao mercadinho no qual trabalhava para ajudar seu pai, denotando um estigma contra o trabalho que segue demarcando todo o filme: “a filha do merceeiro”. Uma menina ousada, auto-suficiente, cheia de iniciativas. O ideal neoliberal vai aparecendo nas suas falas, embora não tenha identidade, não apareça como um projeto de hegemonia. Aparece com ela dizendo que as pessoas têm que aprender a “controlar-se”, a gastar menos; ou dizendo que sempre há os que vêm “comer de graça” (alusão à criação da Comunidade Européia). Seu discurso antiorganização sindical, antitrabalhadores está presente o tempo todo, num crescente que ao invés de dizer realmente o que ela estava fazendo, mandando reprimir, bater, destruir, quebrar a espinha dorsal do movimento operário, constrói, ao contrário, uma imagem de uma mulher forte que sabe tomar decisões em momentos difíceis. As imagens difusas de trabalhadores sendo pisoteados por cavalos são totalmente desfocadas em função do close na coragem e nos peitos de Thatcher. Uma mulher que não quer saber de conversa, não há entendimento possível. Como se essa posição, uma vez mais, fosse apenas fruto de uma grande personalidade. O desprezo para com os trabalhadores aparece em frases como “muitos já estão quase a morrer de fome” – terão que voltar ao trabalho. O ideal que ela diz que sabe que está preservando, sua verdade que porta é: liberdade e oportunidade. O filme coloca em suas falas o “desejo de dizer o indizível”, ou seja, de tomar essas medidas; alguém ambicioso e com princípios, embora não diga quais são do ponto de vista histórico.

A mudança em seu perfil pessoal também aparece no filme, tomando aulas de postura de voz, mudando o penteado para deixar de parecer uma dona de casa, e o marido sempre como figurante nessas cenas, o que não faz qualquer sentido. A lógica da estetização da política paira no ar. E aos poucos o filme mostra a virada em sua vida, em que os homens começam não apenas a respeitá-la mas a admirá-la.

Em 1979, quando assume como primeira-ministra suas palavras são claras: o país “que amamos” tinha um preço a pagar para livrar-se do “socialismo”, ou seja, da organização dos trabalhadores. E, para ficar completo, não podia deixar de rezar uma oração de São Francisco: onde houver dúvida, que eu leve a fé. Ou seja, minha verdade vos libertará!!!

Mas o filme se torna ainda mais insuportável quando mostra a invasão das Malvinas. A arrogância de uma guerra aparece uma vez mais como fruto da vontade de uma mulher que percebe que seu país estava com a honra ameaçada, e justamente essa é a tônica final, que a mostra com um mundo a seus pés depois da guerra. Se antes já sentimos falta de alguns amigos queridos seus, aqui nos perguntamos porque o filme não mostra Pinochet lhe cedendo bases militares dentro do território chileno para atacar as Malvinas-argentinas?

Sempre há riscos em qualquer filme histórico, que busque a reconstituição da história. Esses filmes têm toda liberdade de interpretar, mas sua visão corre o sério risco de aparecer como um todo fechado, uma verdade absoluta. Por isso é mais grave, aparece como verdade porque “mostra”. Evidentemente que tudo o que é narrado não ocorreu sem oposição, sem resistência, embora a ênfase fosse sempre ocultada. O que prevalece são mulheres chorando quando Thatcher deixa o poder, como se fossem as mulheres que tivessem sido lá representadas.

A memória vai sendo reconstruída, a história passa a ser recontada a partir dela. E, por isso, a força do personagem e a “individualização” das decisões e da linha política. Por isso o personagem mostrado não titubeia, não tem dúvidas, faz parecer que a história se move para atender sua vontade.

O jornal francês Libération fez uma vasta matéria sobre o filme. O mais interessante foi que deu voz a pessoas que eram mineiros na época de Thatcher e a manchete é: “Quando ela morrer, nós faremos a festa!”.[2] Segundo o jornal, abaixo de um frio imenso os velhos mineiros se reuniram para ver o filme e urravam: “Maggie, Maggie, out, out, out” [Margarida, Margarida, fora, fora, fora], como na época das greves em 1983-84. O filme tem servido para reavivar a raiva desses homens e mulheres, mostrando o lugar onde milhares de pessoas perderam seus empregos por causa das decisões da primeira-ministra. Também as suas mulheres estão indignadas contra o retrato de Thacher “ícone feminista”, que o filme tenta passar: “Ela jamais defendeu as mulheres, não se bateu por seus direitos, não colocou mais mulheres no seu governo”, inclusive “queria mesmo estar sozinha no mundo de homens”. E recorda a cena chocante em que Thatcher passava impassível de carro enquanto as manifestações dos mineiros quase derrubavam seu carro: “mas o filme não mostra uma só vez por quais razões os mineiros estavam encolerizados, eles tiveram suas vidas destruídas, eram pessoas desesperadas”. E segue uma mulher de um ex-mineiro: “as verdadeiras damas de ferro são as mulheres dos mineiros, que enquanto tinham seus maridos pagos miseravelmente, ou que quando faziam greve não podiam pagar as dívidas, mesmo assim continuaram a chegar ao fim do mês como conseguiam.” Narra pessoas que perderam sua casa, seus maridos ficaram a ver navios.

Um homem diz: “ela é apresentada no filme como uma heroína. Mas ela não era nada disso, era uma bruta, tirana, que jamais teve qualquer compaixão pelas pessoas que batalhavam pelos seus empregos, não por férias ou melhores salários”, como o filme leva a crer. A conclusão é sintética: Thatcher foi “sobretudo uma personalidade que dividia, ela foi a principal responsável pela destruição de toda a indústria manufatureira do país. Ela começou pela indústria de estaleiros navais, depois o aço, o carvão e, finalmente, aliada a Rupert Murdoch (magnata da imprensa), ela destruiu a indústria gráfica”. Esta é sua herança. “Ela é odiada por aqui e, quando morrer, nós faremos a festa nas ruas, eu posso lhes assegurar”. Seria sem dúvida uma tentativa de vingança histórica contra uma memória forçada, forjada e falsa de uma “heroína”. Totalmente compreensível essa visão dos trabalhadores, mas o passo adiante é perceber que, diferentemente do que propõe o filme, as medidas por ela adotadas e impostas não foram apenas fruto de seu desejo de poder, e sim uma prática sistemática e articulada do capitalismo como reação à crise dos anos 1970.

A conclusão de outro comentador do jornal é interessante: tudo isso não faz deste filme um filme ridículo ou mal feito, mas um filme resolutamente de direita, e que por ser bem feito é que vai passar a construir relatos históricos. Com um fervor sincero ele exalta as virtudes de uma “Grã-Bretanha grande outra vez”.[3]Ou seja, como filme de qualidade técnica (ganhador de prêmios), será certamente mais assistido do que as aulas de história que se podem produzir para criticá-lo.

Também no francês Le Monde lemos uma pergunta instigante: “porque ela fez isso? Com que apoios?”[4] Não saberemos assistindo o filme. Já na revista brasileira Veja, que sempre exaltou a figura de Thatcher, identificamos uma “leoa do inverno”: “a primeira-ministra que era exatamente aquilo que os britânicos precisavam”.[5] A crônica na revista reproduz a fala da própria diretora [realizadora], que justifica seu filme dizendo que apenas quis mostrar a visão da própria história, sem “fazer julgamento histórico”, como se isso fosse possível, e como se o resultado não fosse um julgamento histórico apriorístico e hegemônico do início ao fim. Afinal, reafirma que a sua queda se deu porque “tinha razão” em vaticinar contra a entrada na zona do euro, e por isso foi punida, segundo a resenha de Veja, que ainda cobra mais do filme. Parece descontente com tanto foco na demência da personagem, cobrando que se diga, didaticamente, que havia coerência no seu pensamento e que ela apenas “dizia o que os ingleses realmente precisavam ouvir”. Por isso, nas três páginas da revista, repleta de imagens, há espaço de destaque para suas “benfeitorias”: resistência aos sindicatos; privatização; limites à Comunidade Europeia; enxugamento do estado de bem-estar social; intransigência com as ameaças externas; intransigência com o terrorismo; articulação entre EUA e URSS. Cada item vem explicado, como uma homenagem e uma lembrança, reafirmando os princípios em comum.

Notas
[*] Docente do Curso de História e do PPGH da UNIOESTE. carlalusi@gmail.com [1] TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa, Unipop, 2012, p. 11. [2] Libération, mercredi. 15 février, 2012, À l’affiche. Cinéma. III. Sonia Delesalle Stolper. [3] Libération. En fer et dame nation. Bruno Icher. 15/2/2012, p. II. [4] Le Monde, 15/2/2012, p. 26. Une biographie cosmétique et vaine pour un colosse politique. Thomas Sotinel. [5] Veja. 22/2/2012, p. 95. Isabela Boscov.

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