sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Toni Negri: América Latina deixou de ser periferia


Dinamismo das lutas sociais na região seria contraponto ao declínio da esquerda europeia e abriria caminho para política dos “comuns”
Entrevista a Verónica Gago e Diego Sztuwark, no Página 12 | Tradução: Hugo Albuquerque | Imagem: MZK,sem título 
Prestes a completar oitenta anos, o pensador italiano Antonio Negri, autor, ao lado de Michael Hardt, da trilogia “Império-Multidão-Commonwealth” (a última parte ainda sem tradução para o português) e de clássicos como “Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade”, participou do IX Colóquio Internacional Spinoza, na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Negri centra o foco de suas análises na transformação radical pela qual passou o capitalismo, a partir dos anos 70, com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, fato que alterou a forma de produção — agora imaterial e cognitiva — e a maneira como o capital controla o trabalho.
A saída de cena da linha de montagem fabril e a ascensão dos grandes salões de telemarketing — enquanto o sistema financeiro termina por se afirmar como o “elemento que unifica o complexo social, de um modo abstrato, porém efetivo” — é o que interessa a Negri, na sua leitura inovadora de Marx, firmemente assentada no imanentismo de Spinoza — que se volta para a defesa do comunismo no horizonte do capitalismo cognitivo e, por tabela, globalizado. Não existem, dentro do sistema negriano, concessões para o sistema do capital como também não há saída que não seja global para um capitalismo globalizado, no qual os Estados-nações estão postos em função do funcionamento do sistema.
Diante do Império capitalista global, é necessário mais do que indignação e velhas táticas, a compreensão do fenômeno e a produção de novas formas de atuação, baseadas na multidão como classe emergente global e na reapropriação da riqueza comum. É essa preocupação que fez de Negri um observador atento, e visitante recorrente, da América Latina: ele enxerga nas experiências dos movimentos sociais do continente, e sua relativa “chegada ao poder” nos últimos anos, fatos dignos de atenção no que concerne à constituição de uma nova práxis revolucionária global, objeto central de sua obra militante.
Lutas como as do novo sindicalismo e dos sem-terra no Brasil, dos movimentos indígenas na América Andina — sobretudo na Bolívia e Peru — e de movimentos democráticos antineoliberais por todo o continente, sua ascensão na forma dos governos Lula, Kirchner, Chávez ou Morales (entre tantos outros) e o consequente atravessamento que passou a existir entre Estado e movimentos animam o pensamento de Negri — em contraste com a constatação da paralisia da esquerda europeia, burocratizada e elitizada.
É certo que o ciclo de mais de uma década desses governos apenas aprofundou certas contradições já existentes nos seus planos iniciais, sobretudo no que toca ao fortalecimento do extrativismo. Como agir diante disso? Quais ganhos e quais projetos merecem mais atenção? Quais ainda merecem atenção? São questões como estas que Negri buscou responder em uma entrevista ao periódico argentino Pagina 12. (Hugo Albuquerque.)
Há alguns anos, você propôs uma hipótese para entender a situação política na América do Sul: disse que havia um atravessamento do Estado por parte dos movimentos sociais. Desta maneira, o poder constituinte dos movimentos podia desenvolver-se, ainda que de modo conflitivo, no interior do poder constituído. Agora fala em estar “dentro e contra” o Estado. Como você lê atualmente esta relação entre potência popular e Estado?
Eu penso que quando se diz “dentro e contra”, se faz uma afirmação metodológica que sempre deve ser confrontada com as determinações do concreto. Não é que “dentro e contra” signifique sempre o mesmo, mas sim que se trata de adotar uma perspectiva da qual se enxergam as coisas. Tenho a impressão de que tanto do ponto de vista da gestão econômica como da política houve, nos últimos anos, um relativo declive a partir da situação inicial formada na última década, depois de 2001, quando havia um quadro efetivamente revolucionário. Houve um primeiro deslocamento do ponto de vista econômico a partir do governo de Néstor Kirchner: a partir de uma recuperação produtiva, que tomou como base a produção social em um sentido amplo, se produziu uma confrontação com os ditadores dos mercados, sustentada pela experiência de resistência do período anterior. Aquele primeiro momento foi efetivamente muito importante, na medida em que ganharam força os movimentos piqueteiros, as ocupações de fábrica, a organização das vizinhanças como base de ampliação do terreno da produção social, sem fechar essas experiências em uma interpretação puramente ideológica. Este elemento novo da produtividade social insurgente é a força que consegue se fazer representar em um processo institucional efetivo, que tem a nação como espaço definido. Nesse sentido, o poder político nacional consolidou a efetiva necessidade de ter um ponto de referência central para enfrentar os mercados e suas manobras monetárias. Por exemplo, deste ponto de vista, a renegociação do pagamento da dívida e as tratativas com o Clube de Paris têm sido um momento de requalificação da trama institucional da democracia argentina em relação aos esquemas herdados do peronismo tradicional, levando em conta as mutações no tecido social.
E qual sua impressão sobre o que aconteceu depois?
Do ponto de vista econômico, parece que foi dado um impulso ao extrativismo, empurrado pelo agronegócio da soja, consolidando a estrutura de relações com as grandes empresas multinacionais. Seguramente, a disputa com o campo teve a ver com isso. Desse ponto de vista, parece ter havido uma paralisação e uma forte intenção de centralizar o poder por parte do governo. O extrativismo não é apenas um fato econômico. Não se trata somente de discutir que pode ser útil concentrar a produção em certos produtos, mas sim ter em conta que isso funciona como negação efetiva de uma democratização econômica, no sentido de que nega uma produtividade generalizada. Agora, a pergunta é como faz o modelo atual para garantir um regime efetivo de bem-estar na Argentina. Tenho a impressão de que as políticas sociais — tal como acontece, por exemplo, na Venezuela — adotam cada vez mais a aparência de concessões ao povo e, por tabela, cada vez menos parecem ser consequência de uma mobilização geral produtiva, à qual corresponde um welfare efetivo.
E como funciona então o “dentro e contra” o Estado nesse 
Consiste na utilização do Estado, por assim dizer, no interior do espaço global dos mercados, colocando no centro esse problema fundamental da democracia, que não é tanto o problema da liberdade, mas sim o da produção. Quero dizer que é no nível das condições materiais de produção que se desempenham, em essência, o devir democrático e a conquista de novas liberdades.
Como você acredita que outros países da América Latina manejam a relação entre welfare e extrativismo? Pensemos nas experiências importantíssimas de Venezuela e Brasil.
Já mencionei o que se passa na Venezuela. Não sei se podemos chamar de welfare, mas há ali, sem dúvida, uma difusão de serviços às comunidades com significativo salto político e tecnológico com o apoio cubano (médicos, professores etc). Foi algo muito importante, na medida em que houve um constante crescimento no nível de expectativa de vida. Sem dúvida, uma verdadeira democratização da sociedade supõe enfrentar muitas dificuldades. Por exemplo, os problemas que se abateram sobre as missões, ao mesmo tempo em que se forma uma nova burguesia, tão ativa quanto espoliadora. Tenho uma avaliação mais positiva do processo brasileiro, que conta com condições excepcionais do ponto de vista dos recursos naturais e sociais. Há, de fato, uma situação muito afortunada, mas não há dúvida de que a política de Lula foi capaz, efetivamente, de permitir que todos participassem do desenvolvimento, configurando uma sociedade aberta, em termos democráticos e produtivos. Lula desencadeou uma luta de classes contínua, contra uma burguesia e um setor capitalista fortes e com grande capacidade, o que supõe problemas enormes.
O Brasil lhe parece um modelo?
Não sei se essas lutas podem se dar de modo igual em diferentes lugares. Não creio que sua política seja um modelo. Mas, esses dias eu me perguntava sobre a ênfase do discurso oficial argentino a respeito da batalha contra o grupo Clarín. Lula precisou enfrentar o enorme poder da televisão brasileira e não fundou um só diário, preferindo apoiar-se na capacidade de intervir sobre outros setores, sustentado em uma politização das bases por meio dos grandes movimentos, como o MST e os movimentos de favelados que foram extremamente importantes. A situação argentina não parece contar hoje com uma capacidade de recriar movimentos sociais dessa magnitude, ainda que eu tenha muitas dúvidas a esse respeito. De toda a maneira, me parece que o problema da democracia se mostra com toda clareza na América Latina, isto é, que ela já não pode ser pensada como um território periférico, pois em muitos aspectos constitui um cenário central para todos nós.
O extrativismo convive em boa parte da América Latina com uma retórica contrária ao neoliberalismo, mesmo que não haja uma série de práticas sociais que funcionam segundo lógicas de apropriação neoliberais. Como avalia essa defasagem?
A mim parece que quando o Estado se pronuncia contra o neoliberalismo, ele mente. Existe toda uma série de acordos específicos com multinacionais. É um pouco o que aconteceu aqui (na Argentina) no momento da crise do campo. Dentro do marco no qual surgem esses acordos, atuam as empresas nacionais e os empreendimentos cooperativos imersos na lógica capitalista. Esses governos estão contra o neoliberalismo? Talvez seja melhor dizer: estão contra as extremas consequências do neoliberalismo, que são aquelas que buscam anular o welfare. Mas essas são apenas as consequências extremas.
Podemos pensar que é o capital financeiro, enquanto tal, que funciona de um modo parasitário em relação à produção de valor do conjunto da sociedade?
Tenho a impressão que há uma identidade completa entre capital financeiro e extrativismo. Mesmo que os governos progressistas da América do Sul tenham construído novas relações de força em relação aos mercados financeiros, o certo é que esses capitais seguem funcionando a partir da expropriação do valor produzido pela cooperação social. É certo que o capital financeiro continua sendo o elemento que unifica o complexo social, de um modo abstrato, é verdade, porém efetivo. E não se trata de uma intervenção que venha de fora, de um modo imperialista: ao contrário, trata-se de uma intervenção que condiciona a máquina social inteira, e busca prefigurá-la. Por isso é insuficiente toda tentativa de lhe opor meramente uma estrutura de regulação vertical. O problema político que se impõe é, na verdade, como articular contra isso as pluralidades produtivas. Eu não vejo uma proposta diferente.
Não lhe parece também um problema o modo como se fixa uma certa imagem do movimento social, incapaz de dar conta de novos modos mais difusos de organização?
Creio que isso se trata, efetivamente, de um verdadeiro problema. Vejo que, por esses dias, fala-se muito [na Argentina] dos panelaços. Para além do sentido político que possui o movimento — pelo que escuto aqui, é um movimento basicamente de direita –, trata-se de fenômenos que não se expressam no nível institucional, mas no das multidões. Coloca-se a pergunta: como se pode dizer que uma multidão é “boa” ou “má”? Creio ter uma resposta, embora ela seja abstrata: o que distingue uma boa multidão da má é o que chamo de comum. Trata-se de uma hipótese teórica que abarca também uma noção de democracia substancial, não como algo meramente formal. Eu me refiro à democracia enquanto capacidade de organizar um conjunto de relações, e extrair delas uma consciência política. O comunismo não é algo que pode brotar do comum de modo direto. Por isso, há de se criar formas políticas capazes de pôr as singularidades em relação, e de dar-lhes uma forma institucional no decorrer do processo.
Como você pensa essa forma institucional sem que se termine atado ao Estado nacional?
Creio que depois da grande polêmica contra o Estado-nação, e também frente ao poder de inovação capitalista, devemos refletir sobre os termos nos quais se considera a questão hoje, a partir de uma visão de esquerda. Na Europa, o fracasso da esquerda consiste em não ter conseguido ir além do Estado-nação e de não chegar a imaginar uma gestão do poder por fora e para além dele. O defeito da esquerda europeia é ter identificado a própria ideia de governo como uma única instância. Ao identificar a ideia de governo à de Estado nacional, a capacidade de imaginar formas de governo sobre os mercados ficou bloqueada, uma vez que eles possuem poderes que excedem as fronteiras dos países. E então, acontece que os mercados criam por eles mesmos suas instância de governo. Assim, o Banco Central atua como representante da rede europeia: é disso que se trata o comunismo do capital. Na América Latina, as coisas se dão de outro modo, embora também aqui se trate de superar visões que se fecham nos limites dos projetos nacionais-extrativistas. E me parece que a possibilidade de articular uma espacialidade mais ampla passa pela compreensão do papel desempenhado pelo Brasil.
Em que sentido?
Porque o Brasil produz mais do que produzem os demais países da América Latina, e tem uma enorme capacidade de atração no nível internacional, fato que o coloca necessariamente em posição hegemônica. Esse problema se situa fora do conceito de hegemonia que propõe Laclau, referido exclusivamente ao nível nacional, e que exclui a necessidade de levar a sério o nível regional. Creio que teríamos de pensar em um equilíbrio da relação entre espaços nacionais e regionais a partir de uma colaboração real. Porque se os países se fecham na exportação de seus recursos naturais, é muito fácil que passem a competir uns com os outros, ao estilo do Oriente Médio, mas sem xeique.
Você fala de uma série de paradoxos em torno do que chama biocapitalismo e o sujeito atual “homem-máquina” como parte da dinâmica de valorização. De que se trata?
Seria importante voltar a trabalhar sobre as noções de Marx, tais como capital constante e capital variável, além de capital fixo e capital circulante, para ver como essas categorias se modificam a partir da hegemonia do capital financeiro. O paradoxo é que, ao mesmo tempo que as finanças constituem atualmente o próprio poder do capital, a força de trabalho está determinada por novas formas de existência em virtude de sua mobilidade, da incorporação do conhecimento e do fato de que sua cooperação tornou-se autônoma. Neste sentido, pode-se dizer que o trabalho vivo sofreu uma mudança antropológica: o homem-máquina, tomando aqui como exemplo a imagem de Deleuze e Guattari, se apropriou de elementos do que Marx tradicionalmente chamou de capital fixo, isto é, as máquinas. Essa mutação supõe que o capital já não dirige o trabalho de modo direto, mas sim à distância, capturando o trabalho a partir de dispositivos financeiros. Trata-se de um capital que capta o resultado do trabalho em rede. Esta é uma grande diferença, que implica uma série de consequências políticas.
Por exemplo?
Por exemplo, a respeito da questão da propriedade, que concerne cada vez menos à posse imediata de um bem e mais à apropriação de uma série de serviços. A propriedade depende cada vez mais do conjunto do trabalho que se organiza em torno da posse. A composição desse trabalho se dá como uma realidade inteiramente bipolítica, que implica um movimento de subjetivação fundamental. Me parece que a reconstrução de um pensamento revolucionário deve se desenvolver sobre este terreno, no sentido de ligar a análise dessas transformações à utopia: nisso, Maquiavel, Lenin e Gramsci continuam sendo muito atuais.
Você fala também de uma moeda do comum, a que se refere?
Creio que hoje se coloca o problema da reapropriação da riqueza comum, processo que só poderá se dar por meio da moeda do comum, de modo a torná-la o mais extensa possível, aceitando sempre a abstração da relação, já que isso não pode ser revertido. Logo, nesse território, só uma luta comum em nível global é que resolve o problema. Não vejo outras soluções. Pode haver soluções particulares de ruptura, expulsar uma multinacional, repetir operações com a de 2001, não pagar, declarar a insolvência: são momentos de luta, mas não de solução. Esses são problemas que se colocam politicamente de maneira muito forte, por isso este é um momento maquiavélico puro.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O capitalismo feliz por José Luís Fiori


Houve quem acreditasse, por décadas, que era possível enriquecer no sistema sem mergulhar em sua lógica. Será verdade?
Por José Luís Fiori | Imagem: Cesare Novi, A vida à margem do rio 
A história do desenvolvimento capitalista dos séculos XIX e XX registra a existência de alguns países com altos níveis de desenvolvimento, riqueza e qualidade de vida, e com baixa propensão nacional expansiva ou imperialista. Como é o caso das ex-colônias britânicas, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, e dos países nórdicos, Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia. Todos apresentam taxas de crescimento altas, constantes e convergentes, desde 1870, só inferiores à da Argentina, até a 1º Guerra Mundial. Hoje, são economias industrializadas, especializadas e sofisticadas. A Noruega tem a terceira maior renda per capita, e o maior índice IDH (0.943) do mundo; a Austrália tem a quinta renda per capita, e o segundo melhor IDH (0,929); e quase todos têm uma renda média per capita entre 50 e 60 mil dólares anuais. A Noruega é considerada hoje o país mais rico do mundo, em “reservas per capita”, e foi tida pela ONU, em 2009, como “o melhor país do mundo para se viver”. E a Dinamarca já foi classificada – entre 2006 e 2008 – como “o lugar mais feliz do mundo”, e o segundo país mais pacífico da terra, depois da Nova Zelândia, e ao lado da Noruega.
Canadá, Austrália e Nova Zelândia foram colônias de povoamento da Inglaterra, durante o século XIX, e mais tarde transformaram-se em Domínios da Coroa Britânica, até depois da 2º Guerra Mundial. Mas até hoje são nações ou reinos independentes que fazem parte da Commonwealth, e mantêm o monarca inglês como seu chefe de estado. Como colônias e domínios, funcionaram sempre como periferia da economia inglesa, mesmo depois de iniciado seu processo de industrialização, mantendo-se – em média – a participação do capital inglês em até 2/3 da formação bruta de capital destes três países. E todos eles estabeleceram relações análogas com a economia norte-americana, depois do fim da 2ª Guerra.
Neste século e meio de história, o Canadá – como caso exemplar – esteve ao lado da Grã-Bretanha e dos EUA na 1ª e 2ª Guerras Mundiais, além de participar Guerra dos Boers e da Guerra da Coreia e de ser um dos membros fundadores da OTAN, em 1949. Esteve nas Guerras do Golfo, do Iraque, do Afeganistão e da Líbia, e participa diretamente do sistema de defesa aeroespacial norte-americano. E o mesmo aconteceu, em quase todos os casos, com a Austrália e a Nova Zelândia.
Por outro lado, os países nórdicos foram expansivos, e a Suécia em particular, foi um grande império dominante, dentro da Europa, até o século XVIII. Mas depois de sua derrota para a Rússia, em 1720, e de sua submissão dentro da hierarquia de poder europeia, os estados nórdicos transformaram-se em pequenos países, com baixa densidade demográfica e alta dotação de recursos naturais, funcionando como pedaços especializados e cada vez mais sofisticados do sistema produtivo europeu.
A Suécia ficou famosa pelo “sucesso” de suas políticas econômicas anticíclicas ou “keynesianas”, depois de 1929, mas de fato logrou superar os efeitos da crise graças à suas condição de sócia econômica e fornecedora de aço e equipamentos para a máquina de guerra nazista – que também ocupou a Dinamarca e exerceu grande influencia sobre a região, durante toda a 2ª Guerra Mundial. Depois da guerra, a Dinamarca e a Noruega tornaram-se membros da OTAN, e a Dinamarca segue sendo uma passagem estratégica para o controle do mar Báltico. Por sua vez, a Suécia participou das guerras do Kosovo e do Afeganistão e foi fornecedora de armamentos para as forças anglo-saxônicas, na guerra do Iraque. Por último, a Finlândia, que fez parte da Suécia até 1808, e da Rússia até 1917, acabou ocupando um lugar fundamental dentro da Guerra Fria até 1991 – e ocupa uma posição estratégica até hoje, no controle da Bahia da Finlândia e da própria Rússia.
Por tudo isto, apesar de que estes países tenham origens e trajetórias diferentes, é possível identificar algumas coisas que têm em comum:
  1. São pequenos e têm excelente dotação de recursos, alimentares, minerais ou energéticos.
  2. O Canadá e a Austrália têm baixíssima densidade populacional e os outros países equivalem, em população, a menos da metade da cidade do Rio de Janeiro;
  3. Todos ocupam posições decisivas no tabuleiro geopolítico mundial.
  4. E todos especializaram-se em serviços ou setores industriais de alta tecnologia, em alguns casos dentro da industria militar
Alguns diriam que se trata de casos típicos de “desenvolvimento a convite”, mas isto quer dizer tudo e nada ao mesmo tempo. O fundamental é que o sucesso econômico destes países não se explica por si mesmo, porque desde o século XIX, os “domínios” operaram como “fronteiras de expansão” do “território econômico” inglês, e como bases militares e navais do Império Britânico. E os países nórdicos, depois que foram submetidos, transformaram-se em satélites especializados do sistema de produção e do poder expansivo europeu. E hoje, finalmente, todos estes sete países operam como pequenas “dobradiças felizes” da estrutura militar e do poder global dos Estados Unidos.
José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ, é Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”, www.poderglobal.net. O acervo de seus textos publicados em Outras Palavras, está aqui.


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A suprema justiça do espetáculo: o mensalão, o circo e nenhum pão



12.12.12_Mauro Iasi_A suprema justiça do espetáculo
Sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa (…)
Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana.

Guy Debord

Por Mauro Iasi.
Desde tempos imemoriais os seres humanos representam, isto é, transpõem a vida ao ritual, ao símbolo, à imagem, para olhá-la como num espelho e tentar reconhecer-se. No entanto, como nos explica Bakhtin, o signo não é uma simples reapresentação do real, ele reflete e refrata o real representado. No caso do ritual da justiça, o espetáculo não é mera expiação social do dano causado, ela é mais que isso, é catarse.
Os meios de comunicação transmitiram o espetáculo do julgamento do mensalão com o rigor do rito jurídico e com as sutilezas da performance circense, com direito a mágicos e suas capas e uma profusão de coelhos que saltavam de cartolas/pastas, equilibristas navegando de maneira instável em uma tênue linha que separa a verdade da ficção. Malabaristas jogavam suas palavras, termos jurídicos, citações filosóficas, tipificações do ato delituoso, atenuantes, impropérios e, lógico, os palhaços, esses artistas incompreendidos e adorados, com suas roupas extravagantes e enormes sapatos que distraem a atenção do público enquanto os funcionários trocam os cenários.
Inútil procurar os fatos, a sagrada verdade, sobre os entulhos de processos e recursos. Ela é o que menos importa, pois no espetáculo “tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação”, nos diz Debord (A sociedade do Espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto: 1997, 13).
O espetáculo é a afirmação da aparência, mas aparência não é falsidade que encobre um real, é a forma necessária de expressão deste real, nos termos de Marx a expressão invertida de um mundo invertido. O fato que origina a ação jurídica tem que se tornar abstrato para ser julgado, ele deixa de ser um ato que fere uma ou outra pessoa, ou as pessoas em seu conjunto como sociedade, mas deve ser tipificado como ação contrária a determinado preceito legal. Na abstração da norma positivada, o fato se vê e se reconhece, ou não, mas não pelo que é em si mesmo, mas pela habilidade dos advogados em reconstruí-lo para que se encontre nos termos abstratos da lei, ou dela destoe.
Desta maneira, o espetáculo jurídico, assim como todo espetáculo, assume uma forma tautológica, uma vez que “seus meios (são), ao mesmo tempo, seu fim” (idem, 17). Quando se chega ao fim do julgamento, a sentença proferida, a justiça é feita. Realiza-se lá, no espaço jurídico, o que deixou de se realizar no campo social onde se deu o fato. Este é o mecanismo primordial da catarse. Na vida tudo é muito complicado, as contas não fecham, nossos amores viram desamores, nossos carros não sobem montanhas, ficam presos no engarrafamento, nosso cigarro vira câncer de laringe; mas, na novela os casais se encontram, normalmente no último capítulo, e, no que nos interessa, os culpados são punidos e a justiça é feita.
É, no entanto, inegável que ao projetarmos a realização do desejo no outro sentimos em nós uma realização indireta. Pulamos de aviões, enfrentamos batalhas, vivemos grandes e avassaladoras paixões, voltamos no tempo e desvendamos os rincões mais distantes do espaço. Talvez, seja esse um elemento do ser social que em si mesmo não é um problema. Nossa projeção nos outros e mesmo a realização de nossos desejos na realização do outro, é próprio da sociabilidade humana, mas não é disso que se trata, mas de uma projeção na qual uma relação entre seres humanos assume a forma de uma relação entre coisas.
O fundamento da catarse é que projetamos para outro a realização de algo que por esse meio deixa de se realizar em nós, assim se aproxima do fenômeno da alienação e do estranhamento. No campo da política tal fenômeno está presente no mito fundador do Estado, tal como descrito pelas mãos de seus precursores contratualistas. Dizia Hobbes:
“Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que qualquer homem ou assembleia de homens a que sejam atribuídos pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seus representante), todos, sem exceção (…) deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus atos e decisões” (Hobbes,Leviatã, cap.XVIII).
Vejam, aqueles que “representam” decidem por nós, em nosso lugar. Os mais otimistas diriam: sim, mas e daí? É um ato legítimo de representação, em nosso nome, portanto, salvaguardando nossos interesses. O que os otimistas (ou ingênuos) não percebem é que a transposição para o universo simbólico e espetacular onde se dá a representação não é apenas a expressão refletida de nossa vontade como vontade geral, a refração que distorce toda representação é que os interesses particulares se apresentam como se fossem universais.
Vamos aos fatos. Vivemos em um presidencialismo de coalizão, isto é, o presidente governa construindo uma sustentação no Congresso (Senado e Câmara de Deputados). A sistemática política funciona no sentido de impor a necessidade de formar bancadas de sustentação entre forças distintas que ocupam, supostamente de maneira proporcional, os postos no legislativo. O meio consagrado de manter estas bancadas, condição essencial à governabilidade, é a troca de favores entre o executivo e o legislativo que pode se dar na divisão de cargos no governo, na aprovação de emendas ao orçamento, no direcionamento das ações públicas para áreas de interesse dos lobbies que os parlamentares representam.
Até aqui, a consciência condescendente de nossa época e a legislação considera legitimo e legal. O ato do espetáculo exige não apenas que os atores que representam atuem como se aquilo fosse o real, mas há a exigência de outra atuação complementar, aquela que impõe ao público que suponha real a atuação dos atores (a menos que estivéssemos diante do distanciamento brechitiano, que não cabe aqui). Assim, os governantes atuam desta forma como se fosse pelo interesse geral e o bom público finge acreditar.
O que os governantes sabem e o bom público também, é que este campo restrito de legalidade é constantemente subvertido por iniciativas que vão além do legal e do legítimo e a troca de favores inclui práticas diretas ou indiretas de corrupção. Longe de ser um desvio ou mau funcionamento de um sistema em si virtuoso, a corrupção é parte integrante e incontornável da forma de governo estabelecida. Mas para o bom andamento do espetáculo, todos temos que fingir que não sabíamos e, público e governantes, se mostrar surpresos (normalmente como mau atores) quando as práticas ilícitas se tornam visíveis.
As campanhas eleitorais, que são o ritual espetaculoso pelo qual se montam as representações governamentais e parlamentares, são fundamentalmente um ato explícito de corrupção e chantagem. Não importa que fira os mais elementares princípios da própria jurídicialidade burguesa. Vejam a distribuição do tempo de televisão (meio que, hoje, se tornou decisivo). Pela lei, ele é distribuído pelo tamanho das bancadas existentes, o que é absurdo uma vez que define uma proporção fundada nas eleições anteriores para um pleito aberto ao futuro e quebra a igualdade como condição da disputa. Tal procedimento abre a negociação pelo tempo em um verdadeiro balcão de negócios onde o que menos vale são programas e compromissos políticos fundados em interesses reais em disputa na sociedade (leia-se “de classes”).
Não se proíbe a mercantilização da política, mas a consciência piedosa de nossa época parece se espantar na hora de pagar pela compra realizada, como o desavisado no bordel se mostrando surpreso por não ter sido por amor. Não é menos corrupção, no exato sentido da palavra, um governo que mantêm as taxas de juros em patamares exorbitantes para atender as promessas de campanha ao setor bancário, ou que dirige as obras públicas em favor das grandes empreiteiras. Ele está pagando favores advindos do financiamento de campanha. Da mesma maneira os recursos oriundos destes financiamentos, sejam registrados e legalizados ou contabilizados no famoso caixa dois, são partilhados entre aqueles partidos e políticos que disciplinadamente mantiveram-se na sustentação do governo.
O PT tem razão em se mostrar indignado. Ele apenas atuou pelas mesmas regras que sempre se atuou no presidencialismo de coalizão, da mesma forma que os governos do PSDB, DEM e PPS, assim como o histórico fisiologismo do PMDB, sempre governaram. Seu engano, entre tantos, foi supor que tinha sido aceito no clube e receberia as mesmas prerrogativas que seus pares mais tradicionais. Acreditou que pelo fato de não abrir a caixa preta do governo FHC e expor as entranhas dos atos ilícitos ali praticados, não diferentes daqueles pelos quais foi julgado, ele seria poupado, numa espécie de crença ingênua de “amor, com amor se paga”, tendo que cantar, ao final, um samba amargurado: “você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão”.
Havia outro caminho? Esta é uma pergunta difícil. Para aqueles que acreditam que a estratégia política passa pelo suposto controle de governo tal com está definido nos marcos do Estado Burguês, ou seja, aboliram de sua concepção política a noção de ruptura, infelizmente, não. Mas não há inevitabilidade na política. O equívoco maior do PT e de sua estratégia é se prender aos limites da governabilidade burguesa e das amarras do presidencialismos de coalizão. Havia sim oura sustentação política, mas esta se localizava fora do parlamento e dos marcos da institucionalidade burguesa: os movimentos sociais e a organização autônoma da classe trabalhadora.
Essa opção levaria a um governo de tensões e intensificação da luta de classes, opção descartada pelos estrategistas petistas. A opção pela governabilidade com base na adesão (compra) de partidos implicou na aceitação tácita e explícita dos meios necessários para isso que agora são julgados como imorais e ilegais (e são).
Por isso, há uma ironia na última reunião do diretório nacional do PT que aventou a possibilidade de chamar as massas e a militância em defesa do PT contra o STF. Não se pensou em mobilizar as energias militantes e a capacidade de luta da classe trabalhadora quando podia e devia, para impor uma governabilidade que se dirigisse contra os limites da ordem, para sustentar uma reforma política que supera-se as armadilhas da governabilidade viciada estabelecida, para garantir uma reforma agrária, para barrar o desmonte das políticas públicas, para defender a previdência, para barrar os transgênicos e a supremacia do agronegócio. Agora querem que os trabalhadores saiam em defesa do governo contra uma decisão da justiça, da representação suprema de uma ordem política e jurídica a qual o PT se rendeu como limite intransponível. É mais que irônico, é ridículo.
Neste ponto o PT, mais uma vez, se mostrou coerente. Acatou a decisão da justiça e desautorizou as manifestações de massa.
Diz, mais uma vez Debord:
“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (Debord, op. cit. 24)
Quem produziu espectadores não pode esperar agora que hajam como atores.
Quando morre um palhaço, triste e solitário, com cirrose de tanto beber para enganar a tristeza da vida, o público nem percebe. No picadeiro há outro, com uma grossa camada de maquiagem, com suas roupas coloridas e um sorriso desenhado na cara.  
O espetáculo não pode parar! Respeitável público…
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Capitalismo corporativo e ciências sociais



A partir da necessidade de colocar os problemas locais ou regionais dentro de uma dialética mundial, divido esta exposição em três partes. Na primeira, farei referência às ciências hegemônicas da globalização. Na segunda, levarei em conta o atual aprofundamento da crise e a dialética das necessidades imediatas, e dos hábitos de pressão e negociação, o de conformismo. E, na terceira parte, assinalarei como conseguem se superar as contradições, as desregulações e depredações do capitalismo corporativo, coforme elas aumentam; e também vou me referir as ciências sociais e ao pensamento crítico, alternativo e revolucionário, com manifestações particularmente ricas em América Latina

Pablo González Casanova*

(Tradução de Silvia Beatriz Adoue)
México, 24 de novembro de 2012
Palavras preliminares.
Para se aproximar às ciências sociais e o porvir de qualquer país ou região é inevitável analisar o processo de globalização que mundialmente se iniciou com o golpe de Estado de Pinochet em Chile. Desde então e até hoje, globalização e neoliberalismo evoluiram a passos acelerados, em sucessivas crises que abragem o mundo inteiro.
A partir da necessidade de colocar os problemas locais ou regionais dentro de uma dialética mundial, divido esta exposição em três partes. Na primeira, farei referência às ciências hegemônicas da globalização. Na segunda, levarei em conta o atual aprofundamento da crise e a dialética das necessidades imediatas, e dos hábitos de pressão e negociação, o de conformismo. E, na terceira parte, assinalarei como conseguem se superar as contradições, as desregulações e depredações do capitalismo corporativo, coforme elas aumentam; e também vou me referir as ciências sociais e ao pensamento crítico, alternativo e revolucionário, com manifestações particularmente ricas em América Latina.
Pretendo, antes, esclarecer que reconheço os males e perigos do mundo, com a certeza de que conhecê-los ajuda-nos a lutar para vencê-los. Digo isso porque vou falar sobre uma situação que tem piorado e  sobre como tem piorado.
Dentre o novo da globalização cabe atender observações que quando juntas têm um sentido do qual carecem quando são apresentadas por separado. Procurarei dar destaque às tendências nas quais se inscrevem as notícias isoladas dos jornais e outras mídias.

Primeira Parte.
1. Quero esclarecer que as ciências hegemônicas não são apenas ideologia. São também tecnologias e tecnociências para a dominação e a acumulação.
2. Como ciências e tecnociências, seu desenvolvimento não se restringe, mas corresponde ao desnevolvimento das ciências da comunicação e da organização destinadas a atingir os objetivos do capitalismo corporativo y de seus sistemas de organização para a maximização dos lucros e a minimização das perdas.
3. As ciências e tecnociências palicam-se à organização do sistema de sistemas corporativos, e também à organização de uma corporação como sistema de dominação e acumulação.
4. As tecnociências da comunicação e da informação constituem conhecimentos diretamente vinculados à organização dos sistemas do capitalismo corporativo. O vínculo entre comunicação, informação e organização coloca problemas das redes de informação e suas unidades hierárquicas e cooperativas, centralizadas e autônomas, formais e informais, legais e ilegais, abertas e encobertas.
5. Coloca ao mesmo tempo os problemas das unidades hierárquicas e das unidades coordinadas que de cima a baixo ou de baixo a cima dialogam e precisam as ações mais adequadas nos diferentes espaços ou tempos.
6. Em todos os casos, a organização das corporações procura estimular a retroalimentação para aumentar a eficiência e a eficácia, a competitividade e as possibilidades de domínio e acumulação. Ninguém declara que “em geral” as organizações devem ser hierárquicas ou cooperativas: estuda-se quais convêm em cada caso ou campo de ação para atingir os objetivos.
7. Acrescentam-se aos problemas anteriores aqueles que correspondem ao sentido da informação. Nesse terreno, aparecem as racionalizações e as ideologias e valores que deformam ou escamoteiam os verdadeiros objetivos que são procurados.
8. Muitos enganos e auto-enganos ocultam-se aos próprios atores e pesquisadores, e nem se fala o que se ocupta aos concorrentes ou às vítimas atuais e potenciais, a quem se enfraquece e se faz perder eficácia e eficiência mediante políticas de desinformação, de desorganização, de perda de senso da realidade, de conformismo, desentendimento, desídia mental e material, virtual e real.
9. As guerras formais e informais das políticas de desinformação, desconhecimento e desestruturação complementam-se com as medidas de eliminação e destruição física e moral de concorrentes e opositores.
10. Eliminação e destruição combinam-se com convites e atenções que procuram a cooptação, colusão e corrupção de indivíduos e grupos aos que se atrai e se afasta dos seus. A política de eliminação combina-se com a política dos desertores e traidores, ou dos agradecidos e integrados.
Falaremos mais na frente das limitações e contradições destas medidas e da rejeição das mesmas.
11. Outro campo dos conhecimentos hegemônicos aplicados pelo capital corporativo é o das combinações e reestrutorações, não apenas em redes de empresas associadas e subordinadas, mas também em redes de complexos empresariais-militares-políticos e mediáticos. As redes das corporações incluem coletivos dos que mandam nas organizações financeiras, nas megaempresas de produção, comunicação e serviços, no exército e na informação.
12. Os complexos de poder são unidades integradas que constituem “o poder atrás do Estado”. Aos complexos de poder das corporações corresponde assumir a soberania ou decisão na última instância; mas não o fazem sem uma grande quantidade de mediações nas que as decisões são discutidas e são tomadas por sócios, membros, cidadãos em campos atribuidos às soluções alternativas. Combinam-se assim uma grande autoridade e sujeição com campos de negociação que variam segundo a correlação de forças.
13. Em grande medida informais, os complexos de poder servem-se, de maneira também informal, de intermediários ou grupos de cooptação, corrupção, pressão e represão que, entre outros, constituem “lobbies” cujos membros operam nos círculos políticos, ou formam e contratam agentes que agem de maneira aberta ou encoverta, aos quais são encarregadas ações legais e ilegais, entre as que se esconde o crime organizado e terceirizado.
14. Os sistemas autorregulados e orientados para finalidades se aplicam junto com sistemas tecnológicos que são, além de autorregulados, adaptáveis, criadores e procriadores. As tecnociências da “inteligência” impulsionam crescimento e aperfeiçoamento da robótica, e dão origem tanto à biorrobótica como à construção de redes e sistemas de redes de informação e organização.
15. Robótica e biorrobótica, assim como ciências da informação e da organização, aumentam eficiencia e eficácia das corporações e complexos nos [cálculos dos] custos da acumulação e da dominação, na massa salarial, nas baixas das guerras, na “conquista” de mercados… Também aumentam o desemprego dos artesãos, trabalhadores autônomos, assalariados de pequenas e médias empresas.
16. E mais, enfraquecem as demandas dos trabalhadores organizados que desde seus lugares de trabalho se enfrentam a um capital em redes com alta mobilidade mundial, capaz de emigrar de um dia para outro, em direção a países com trabalhadores desregulados, que são como “estábulos de mão de obra barata”.
17. Os efeitos buscados para o abatimento de salários e a perda da força dos trabalhadores organizados não se limitam a operar na geografia das desigualdades existente. Com o neoliberalismo e a globalização impõem políticas de construção de “estábulos de mão de obra barata” nos próprios países centrais, nem se fala nos da periferia mundial.
18. As tecnociências aumentam exponencialmente a proporção de vítimas e danos do inimigo, se compararmos com as vítimas e os danos próprios. Os transgênicos aumentam de maneira também exponencial a capacidade de produção das agroindústrias e o deslocamento ou eliminação de camponeses, cujos territórios passam a depender das sementes transgênicas ou a perder suas propriedades em benefício da agroindústria ou das empresas extrativistas. À expulsão pelos transgênicos da qual são objeto, acrescentam-se mais outras medidas, como a falta de créditos, e numerosas formas de asédio e acoso de pistoleiros, paramilitares e narcotraficantes. As notícias que se publicam não dão conta das tendências às quais respondem.
19. Outros recursos tecnocientíficos notáveis são, por um lado, os que têm antecedentes na história das “mentiras de guerra” e, por outro lado, os que operam na economia monetária. Trata-se da “realidade virtual”, com afinidade incrível com o termo-magnetismo. O qual contribui com uma espécie de milagre científico: o de fazer acreditar que se vive num mundo no qual não se vive. Permite organizar lutas de distração que anulam totalmente a capacidade de ver e entender as lutas reais na que os beneficiários são as corporações e complexos e os integrantes de suas redes de apoio.
20. É necessário esclarecer que a diferença entre a realidade virtual e a realidade é distinta da diferença entre o mundo formal e o mundo real das instituições e o direito. Distinguem-se com relação às verdadeiras práticas que pouco e nada têm a ver com as formas institucionais e jurídicas.
Os modelos tecnocientíficos da realidade virtual correspondem ao que de verdade parece real e não é real, ao que potencialmente é real e na hora da verdade resulta não ser real… O fenômeno se dá na dívida externa, na dívida pública, e na dívida hipotecária, todas impagáveis, mas que permitem criar auges econômicos fictícios, possuir propriedades que de antemão vão se perder e permitem às corporações e complexos fazer negócios e política. O fenômeno também se repite nas guerras virtuais contra o terrorismo e o narcotráfico que distraem das guerras reais da globalização e recolonização. Em suas versões político0militares corresponde a modelos de corrupção e cooptação de indivíduos, grupos e colectividades de vítimas famintas. Nas guerras e politicas virtuais pela “liberdade” os cenários virtuais têm sido  amplamente aplicados. Aplicaram-se também nos processos de globalização, primeiro com as técnicas contrainsurgentes, dpois com as técnicas de colonização e recolonização urbano-rural.
21. A ciência mais avançada na opinião da maioria dos gerentes da globalização é a chamada “ciência da tomada de decisões”, uma das ramas na que recibem generosos subsídios e estímulos dos grupos e centros de pesquisa. Sua área privilegiada é a que se ocupa de refinar a tomada de decisões para a maximização de benefícios e para a diminuição dos riscos, tanto no campo econômico, como no campo político-militar. Combinaa com a velha política de “pão e porrete”, ou com a psicologia de Skinner para a domesticação de animais e humanos, ou com os preceitos de Teodoro Roosevelt para a dominação dos povos com “bananas e garrotes”, mais do que um rigor científico, indica quão forte se sente o mundo das corporações e dos complexos militares-empresariais para impor sua política e dominação e acumulação.
22. Por outra parte, um tipo de conhecimentos científicos que se pensaria que está longe de ser aplicado pelo capital corporativo é o dos sistemas cosmológicos que Prigoginne chamou “disipativos”. Trata-se de sistemas que para continuar existindo insumem energia e matéria de seus contextos e jogam neles os detritos e resíduos. No reino das analogias, característico das novas ciências, o fenômeno é um símil perfeito das diferentes formas de colonialismo e sobre tudo do neocolonialismo transnacional. É verdade, os símis acordam a imaginação científica dos modelos e cenários da geopolítica.
23. Com respeito aos sistemas da matéria e da vida, muitos mostram obedecer a processos entrópicos e neguemtrópicos, ou a “lutas” antisistémias e de defesa do sistema. É o caso dos sistemas em fase de transição ao caos ou em fase de emergência do caos, de desestruturação por bifurcações sucessivas que não podem ser contidas, ou de estruturação crescente com “fractais” ou formações, que são semelhantes a escalas cada vez maiores; ou o caso das redes e “dendritas” ou “condutores” de neuronios que se tornam órgãos mais e mais complexos e eficientes. É o caso também do corpo humano com os anticorpos positivos que o defendem junto com o baso, e os anticorpos negativos que atacam os defensores, os confundem e chegam a destruí-los, destruindo assim o organismo. Todo esse tipo de sistemas, aparentemente desligados da prática, têm aplicação analógica para destruir o inimigo ou a vítima, e como nos casos anteriores podem reaparecer numa epistemologia funcional ao sistema, grata ao sistema, e que por princípio oculta de si mesma sua própria historicidade como sistema que necessariamente tem um principio e um fim. A “negação” cognitiva –descoberta por Freud nas suas pesquisas psicoanalíticas- manifesta-se ainda com mais clareza em relação às forças dominantes de sistemas que mostram características terminais, como é o caso do capitalismo, segundo tem comprovado, entre outros, Immanuel Wallernstein, um dos mais connotados pesquisadores das ciências sociais.

Segunda-parte
24. Se repararmos no conjunto destas novas técnicas de organização e as considerarmos como sistemas de unidades ou “coletivos” que se enlaçam e interatuam para atingir objetivos, reconhecemos um fato no qual temos prestado menos atenção da que merece. Neoliberalismo e globalização têm gerado uma colosal reestruturação do capitalismo, da dominação e da acumulação, que dizem respeito às lutas dos trabalhadores e dos povos.
Já em ocasiões anteriores, o capitalismo tinha se reestruturado para aumentar seu poder e lucro. Mas as restruturações atuais são diferentes das anteriores. As anteriores serviram, desde o século XIX, para aumentar as divisões da classe operária no processo de organização e luta. As políticas emergentes nos inícios do capitalismo industrial passaram da criação da chamada “aristocracia operária” –que se afastou do “proletariado pobre”-, à formação dos “setores médios”, e de amplas camadas de “trabalhadores de colarinho branco” frente aos de “colarinho azul”, e frente aos que nem camisa tinham, frente aos “descamisados”, como são chamados na Argentina.
As políticas de estratificação e mobilidade social foram aplicadas em larga escala. Se desde finais do século XIX a mudança de escala ou estratificação social aumentou em alguns países de Europa Ocidental, aumentou ainda mais, e num maior número de países, depois da Segunda Guerra Mundial. Nos países centrais o “Welfare State” (o “Estado Social” [“Estado de Bem-estar”]) e o “New Deal” (o “Novo pacto”), e nos países periféricos o “Nacionalismo revolucionário”, a “descolonização” formal e o “desenvolvimentismo”. Às velhas divisões dos trabalhadores acrescentaram-se novas divisões por estratos e setores com uma maioria que ficou desregulada e continuou sem direitos sociais e nem cidadãos efetivos (e a falsa esperança de alcançá-los com “o desenvolvimento”), e com uma minoria relativa que contava com organizações e políticas públicas , e com a regulação jurídica dos direitos de se unir, de pressionar e negociar. O resultado buscado e não buscado, esperado e inesperado dessa política foi a proliferação simultânea dos “condenados da terra”, dos trabalhadores e povos “marginalizados” e “excluídos”, dos jornaleiros desterrados e “indocumentados”. Desde então até hoje, todos esses “marginalizados do desenvolvimento”, excluidos e superexplorados constituem a imensa maioria dos trabalhadores do mundo.
25. Com a globalização e o neoliberalismo de finais do século XX e início do século XXI veio um novo controle dos dos trabalhadores. O novo controle incluiu os trabalhadores dos países centrais e todos os trabalhadores organizados para privá-los dos seus direitos e políticas públicas e “desregulá-los”. Ao mesmo tempo, o capital corporativo entrou no processo para forjar uma nova “organização de sistemas autorregulados” ao seu serviço, que mudaram ainda mais, tanto a luta de classes como a luta dos povos por sua Independência.
Ao crescimento das empresas transnacionais acrescentou-se a consolidação das forças de mando e de impulso à integração dos verdadeiros “complexos empresariais-militare-mediáticos e políticos”. Com eles, o capital corporativo aperfeiçoou suas políticas de cooptação e repressão, e também as de escamoteio, por meio das chamadas “encobertas”, entre as quais destaca-se a “terceirização” de trabalhadores através de fábricas de trabalhadores superexplorados. Essas fábricas são conhecidas em inglês como “sweat shops” ou “fábricas sudadeiro”. O que seus patrões fazem é sob sua própria responsabilidade. De suas ações desumanas e inclusive criminosas, não são responsáveis, nem em apariência e nem legalmente, as megaempresas que, ao comprar seus produtos a preços muito mais baixos do que teriam que pagar aos seus assalariados, ficam com o excedente que consiguem os exploradores.
26. As novas políticas permitiram ao capital corporativo tirar as principais faculdades soberanas dos Estados, até dispor de um novo tipo de Estado privatizado cujos chefes de governo façam da “competitividade”, da “eficácia”, da “eficiência” e da “gobernanza” sua principal tarefa: atrair os capitais com excenções de tributos, com subsídios, com aplicação do orçamento para fortalecer suas infraestruturas, com desregulação dos trabalhadores, com políticas de “deixar fazer, deixar passar” ou de “lavado de dinheiro” que contribuuem sem o menor obstáculo para a compra-venda e o tráfico de armas e drogas. Seus beneficiários contribuem por sua vez com a recolonização de regiões e países por meio da terceirizada cooperação do “crime organizado”.
Também, “sob seu próprio risco”, o “crime organizado” coopera com as corporações “extrativistas” e de manufatura para suministrar mão de obra barata e trabalhadores completamente desrregulados, muitos deles em condição de novos escravos ou semi-escravos de fato, com homens, mulheres e crianças que os governos dão por “desaparecidos”. Grupos “paramilitares” e “crime organizado” praticam a política de imigração dos países industrializados que já não necessitam mais trabalhadores informais dos que têm. Adiantam-se a suas polícias de migração e aos seus guardas de fronteira e lhes poupam o trabalho de rejeitá-los ou eliminá-los, reduzindo-os por meio de polítics de genocídio e escravização. As vítimas são em parte contabilizadas e classificadas pelas próprias instituições das Nações Unidas.
27. A nova categoria dos governos privatizados faz dos seus presidentes um novo tipo de gerentes que mostram ser bons governantes por sua capacidade de atrair capitais corporativos e de aplicar as políticas de “decrecimento”, “desinformação”, “desconhecimento” e “deseducação” com que o capital corporativo dominante consegue eliminar competidores nos países endividados e impide que surjam novos competidores com alta capacidade tecnológica, ou classes médias com jovens insubmissos e bem preparados. A política da ignorância universal é aplicada com uma variante principal: nos países centrais e mais avançados de Europa, Estados Unidos e Canadá com uma crescente privatização das escolas e universiades, complementada com o endividamento por toda a vida dos estudantes pobres, que queiram estudar, e com a transmissão de uma mentalidade e orientação tecnocrática e empresarial que se aplicam na docência e na pesquisa. Com respeito aos países em desenvolvimento sujeitos ao Banco Central Europeu ou ao Banco Mundal dominado pelos Estados Unidos, a política da ignorância vai desde o fechamento leegal de escolas e universidades até sua autodestruição e ocupação pelas forças públicas. A política da ignorância inclui todos os níveis de educação e pesquisa científica, tecnológica e humanista, entre variações focalizadas.
28. Os presidentes-gerentes e demais governantes mental e materialmente privatizados abandonam, com o apoio dos “acionistas” e da burocracia dos “complexos militares-políticos-empresariais e mediáticos” os antigos projetos de Civilização, Progresso, Desenvolvimento. É claro que abandonam também os antigos projetos da democracia do povo com o povo e para o povo, e de justiça e liberdade que num tempo passado proclamaram alguns dos mais importantes “founding fathers” [“pais fundadores”], como Lincoln.
29. O “emagrecimento” do Estado para bem da “Sociedade Civil” e os direitos humanos, o processo globalizador soma, de fato, o triunfo que propuso o neoconservador Daniel Bell sobre “as obsoletas lutas ideológias” que tem sido substituidas por curiosas lutas de partidos com diferentes legendas e com posições muito parecidas nos quais se apoiam as contrarreformas neoliberais, ou guardam silêncio sobre elas deixando que povos e trabalhadores paguem os custos da crise que enriquece sem recato as arcas dos poderosos.
30. O discurso público perde seu significado prático. O direito, a moral, o humanismo, a democracia, o socialismo, a pátria, os “direitos humanos” contêm significados e sobreentendidos retóricos, só emocionais para os poderosos. A crítica e a pressão perdem significado: os aludidos “fazem de conta que não ouvem”, e não ouvem. Só resta o que Cardoza Aragão chamava de “direito à reclamação”. Na Sociedade e no Estado predomina o individualismo, com “amáveis mendicantes”, e às vezes com agressivos “grupos de pressão e interesse” e com “tribos políticas”cujos membros se mostram desejosos de ser designados para cargos eletivos que são obtidos sob um novo tipo de golpes de Estado institucionais, e são fonte de múltiplos negócios para quem financia os milhonários gastos das “eleições populares”. Nos golpes de Estado institucioanis, o exército limita-se a fortalecer os atos ilegais e ilegítimos, uma vez que são declarados perfeitamente legais e legítimos pelas autoridades nacionais e pelos chefes de Estado do projeto globalizador. A globalização abrange assim a “democracia ocidental” e fortalece com a legitimidade diplomática e “a comunidade internacional” os novos golpes à “liberdade de sufrágio”.

Terceira Parte. 
31. En tais condições, acentua-se uma crise que inclui a economia, a cultura, a política, a segurança, a sociedade, a ecologia, a paz. Incrementam-se as cooptações, as corrupções e as repressoes não apenas individuais, mas coletivas. As lutas dos partidos políticos perdem sentido com o alinhamento de todos à mesma política lobalizadora e neoliberal. A lógica do “menos ruim” ou do “menosruinismo”, que frequentemente não carece de fundamento, continua sendo praticada em condições cada vez piores.
32. Ao mesmo tempo, as forças neoliberais e globalizadoras ampliam a margem do que não é negociável. Como bons governantes da globalização mostram o que lhes é exigido: mostram que “sabem tomar decisões perante os perigos”, que é “a mais recente arte de governar”. Enfrentam riscos ao sustentar e ampliar firmemente o não negociável, uma vez que “o não negociável” corresponde a uma nova expressão da ditadura do capital.
33. Nesta situação, os conhecimentos científicos não estimulados ou tácita e abertamente proibidos passam a ser “conhecimentos perseguidos”, como faz pouco tempo assinalou, em Estados Unidos mesmo, o presidente da “Academy for the Advancement of Science”.
34. Também aperfeiçoam-se os falsos apoios aos movimentos sociais rebeldes com “marines” ou soldados locais que os defendem em nome da liberdade. E, ao mesmo tempo em que se grita “liberdade”, amplia-se a legalização de políticas de privatização e depredação.
35. Coloca-se na pauta daquilo que é legal conveniente aquilo que antes se criminalizaa sem direito positivo que o respaldasse e agora realiza-se “com todo direito”. Assim, aumentam os espaços legais da “mão de obra” desrregulada, e a escravização do trabalho de uma mão de obra universalmente desrregulada.
36. Aplicam-se modelos de corrupção de eleitores e de rebeldes, de bases de apoio a governos e estados em resistência. Montam-se cenários da realidade virtual em países inteiros com homens de carne e osso, com armas de alto calibre e com vítimas incontáveis de feridos, mortos, desaparecidos, despojados e escravizados.
37. Políticas contra os trabalhadores e os povos que antes só se praticavam no “Sul” aplicam-se no “Norte”, como na Espanha, na Grécia, na Itália.
38. Estimulam-se fobias raciais e religiosas, como as que hoje se aplicam aos musulmanos como antes se aplicaram contra os judeus.
39. Aumentam abertamente os processos de recolonização e de intervenção aérea, terrestre e marítima, como em Líbia. Ou as ocupações que com a desculpa de ajuda humanitária são realizadas, como em Haïti.
40. Aumentam as guerras bem armadas entre o Norte e o Sul de países como em Sudão.
41. Continuam as guerras de asédio e cerco de Rússia e China, e as que destroem  países inteiros, como Palestina, Irak e Síria.
42. Aumenta a exploração de minério a céu aberto.
43. Continuam os fatores antropogênicos que determinam o esquentamento global.
44. Extendem-se e aprofundam-se as políticas de decrescimento.
45. Aumenta o desemprego tecnológico e o desemprego por eliminação do setor público de saúde, educação, moradia, produção e distribuição de bens e serviços de primeira necessidade para a população de baixos ingressos.
46. As políticas de “austeridade” e de “ajuste orçamentário” combinam-se com as de subsídios bilhonários para salvar as corporações e os bancos de curiosas crises em que obtêm imensos lucros.
47. Emerge novamente o mundo com um franco confronto entre bloques de Oriente e Ocidente.
48. Os processos de destruição-recuperação são substituidos pelos de destruição de países e apropriação de energéticos e de outros recursos extractivos para os que se constroi a infraestrutura necessária.
49. A extrema direita ocupa um espaço cada vez mais amplo com algumas combinações nas quais, a partir da direita, procura-se “cuidar” a classe média, como nos EUA, onde o democrata Obama se desloca para a direita com algumas concessões sociais e o Republicano Romney reelabora essa rara espécie de anglo-fascismo com democracia e sem soberania do povo, na esperança de ganhar na próxima oportunidade.

Quarta Parte.
50. No meio desta grande crise surgem em Nuestra América e na própria América do Norte forças sem precedente. Apresentam-se novas possibilidades, resistências, valores e formas de luta com ênfase na construção de forças.
51. Tanto nas correntes emancipadoras, como no pensamento crítico, alternativo e revolucionário, radical e resistente, com ênfase especial para a construção dos próprios movimentos com a prática dos valores pelos que lutam. À clássica alternativa de “Reforma ou Revolução” acrescenta-se a ideia-força de criar “esse outro mundo possível” nas próprias organizações que lutam por ele. O fenômeno manifesta-se a partir do “26 de Juio” na precursora Ilha de Cuba, passando pelos zapatistas do Sudeste Mexicano, que por mais de vinte anos constroem em seu território o ideal pelo qual lutam, até os povos andinos e os “Ocupa” de Wall Street. Em todos os movimentos por “outro mundo possível” procura-se praticar “a felicidade de uns que não implique no sacrifício de outros”, como definem os novos incas a utopia possível e necessária de nosso tempo. Em todos prevalecem os valores de uma democracia como poder do povo, e como respeito à cultura, à língua, à raça, ao sexo, à idade dos demais.
52. Chegando neste ponto, pareceria fundamental analisar a dialética dos interesses imediatos que se encontram com os hábitos de trabalhar e lutar e com um sentido comum que não se abandona facilmente… Apenas vou apontar o problema. É evidente que a dialética dos interesses imediatos e dos hábitos de pensar e atuar vive crescentes contradições conforme o processo globalizador avança como crise e como guerra, no qual a crise e a guerre adquirem características extremamente violentas e dramáticas na dominação e na acumulação, no poder e no emprego, na insegurança, na educação e na cultura, na política e na sociedade, e no esgotamento dos recursos vitais. Vivir a crise na crise –como na Grécia ou na Espanha- gera mudanças inusitadas de dor e de fúria. Uns tomam a decisão de tirar a própria vida, e outros a de lutar e até dar a vida para vencer o sistema opressor e depredador no qual “a vida não é vida”, e no qual com a decisão de lutar para ganhar luta-se pela firmeza, pela lucidez, pela sagacidade, pela malícia e pela audácia perante o inimigo, e, também, pela consciência do que acontece, das suas causas e remédios; pela informação e a organização e por fortalecer, recuperar e extender o sentido da luta. Crise, decisão e criação histórica parecem acontecer com mais frequencia e fortaleza nas juventudes “sem escola, sem eprego e sem futuro” que se unem mais e mais entre si e com “os de baixo e à esquerda”, como os trabalhadores desrregulados e com os exxcluidos, com os cidadãos traidos, com os povos recolonizados e, agora também, com os desrregulados e colonizados dos próprios países centrais.
Uma crise como essa –que além do mais está rigorosamente documentada- rompe a dialética dos interesses imediatos e elimina o “senso comum” alienado de quem queria seguir lutando como antes, só para recuperar o que antes obtinham como indivíduos, ou como “grupos” ou “partidos” ou “sindicatos de empresa” ou pequenas congregações. Entre tropeços e iluminações redescobrem a velha e nova luta pela emancipação perante opressores e depredadores, hoje reagrupados em redes de acionistas, gerentes e conselhos de corporações, organizações financeiras e complexos empresariais-militares-políticos e mediáticos com suas redes abertas e encobertas de associados, subordinados, terceirizados e mafiosos, com uns como grandes, respetáveis e cultos senhores, e outros como agentes encobertos, criminosos organizados supostamente perseguidos e paramilitares supostamente camponeses, operários e estudantes pobres.

Três observações ineludíveis:
53. A imensa maioria das populações que se beneficiaram com as políticas do Estado de Bem Estar e que hoje sofrem os prejuiços crescentes do Estado privatizado e recolonizado, neoliberal, têm hábitos de lutar e direitos adquiridos que os levam os levam a se propor o impossível: vltar ao passado Estado de Bem Estar, que além do mais só beneficiou e deu direitos a umaquinta parte da população mundial, ou menos. Muitos dos que se recusam a sacrificar seus interesses imediatos e os de sua família –com razões que não são de maneira alguma desprezíveis- mostram uma grande incapacidade em reconhecer que “o que não é negociável” é pra valer e não é um jeito de dizer das forças que dominam no seu país e no mundo. Não se dão conta que “o que não é negociável” é o que dá um caráter ditatorial aos que dominam e mandam como grandes proprietários ou como soberanos.
54. Se a esperança de retorno ao Estado socialdemocrata ou ao socialismo burocrático ainda subsiste em muitos, é de se esperar que, com o aprofundamento imparável da crise, da desrregulação e do despojo, característicos da recolonização pela força inapelável das corporações e complexos, dada esse aprofundamento determinado pela sua coviça em aumento e imparáveis exigências, os prejuiços que vão gerar em milhares de milhões de vítimas promoverão esse momento histórico e dor e raiva que nas grandes crises da civilização sempre leva a romer, em forma exponencial, os hábitos de luta, e a deixar de lado a lógica dos interesses imediatos. Se isto acontecer, como prevêm as mais rigorosas pesquisas científicas, os novos movimentos sociais, surgidos na época do neoliberalismo e a globalização, e que têm como pioneiros os povos indígenas, e dentre eles, como precursor, o movimento zapatista dos povos maias… é muito provável e desejável que se articulem com os novos movimentos populares encabeçados pela juventude, que em 2011 e 2012 surgiram inclusive nos países centrais, e que enriqueçam com eles o projeto emancipador mais rico na história da humanidade: um projeto de projetos de luta que define as palavras e os conceitos pela organização.
55. O novo movimento histórico pela emancipação e pela vida está num processo criador genuino de organização da liberdade, de organização do pluralismo ideológico e religioso, de organização da justiça social e os direitos humanos de pessoas, trabalhadores, e comunidades; pela organização de direitos que incluam as raças, sexos, homosexuais, grupos de faixa etária, e pela organização de uma democracia e um socialismo que combinem a participação com a representação, e as relações horizontais com as hierárquicas, e todas para fazer que os encarregados e comissionados sejam efetivamente “servidores públicos” e “mandem obedecendo” as instruções gerais deduzidas de uma inter-comunicação permanente com a que resultem e corrijam as linhas gerais de luta, de povos soberanos, capazes de reorganizar e recriar a história que nasce.
56. O discurso que “junta a palavra com a coisa” e a forma mais idônea para lutar contra a “realidade virtual” que escamoteia o futuro realmente a esperar, e faz perder o sentido das lutas realmente existentes com antigos e novos recursos do teatro político. Os conceitos dos novos movimentos não só se definem pelas palavras e os símbolos, mas pela organização ds práticas correspondentes, e dos meios mais idôneos para alcançar o futuro que se quer. As relações desejadas articulam-se e practicam-se. Atinge-se assim esse outro objetivo de “fazer caminho ao andar”.
57. Os conceitos definem-se pela organização, a organização pelos objetivos a serem atingidos, assim como pela comunicaçãopela informação, pelas mnsagens, pelo sentido das mensagens, pelo saber e a experiência em que as mensagens se baseiam, pela precisão, clareza e profundidade com que se transmitem e entendem, pelas medidas em que se aplicam e os novos conhecimentos que resultam da ação prática ou praxis, e que permitem repetir ou reformular o processo com maiores conhecimentos, levando em conta as variações históricas e geográficas concretas às que se refere o sub-comandante Marcos nos seus ensaios epistemológicos. E nesse ponto vem a minha memória essa vivência de um caminhar no barro da Lacandona, no qual sentimos que até o teatro nos conduzia à Realidad , ou o que vivi em 1959 em Cuba, onde o discurso pedagógico conduzia à utopia que se organiza entre contradições.
58. Os novos contingentes que se inscrivirem nos amplos projetos de luta por outro mundo possível e necessário vão enfretnar numerosas contradições entre as que se destaca a que se dá nos próprios governos de resistência ao neoliberalismo e a globalização, à privatização, os que se propõem tanto a resistência como à construção de uma nova organização da sociedade e o poder, diferente do poder e a acumulação. Em qualquer desses casos surgem falsas alternativas, muitas delas dotrinárias e de sonhos passados. Mas a única que poderá assegurar o triunfo da lutapela independência e a democracia, pela justiça, pelo novo socialismo e a maravilhosa liberdade é a que organiza a soberania do povo e seu governo de tal modo que tanto seu governo respete a soberania, como os outros governos se vejam obrigados a respeitar a soberania de povos articulados com seus governos, e de governos articulados com seus povos, uns e outros capazes de impor soluções acordadas face às contradições internas. A sobrevivência de Cuba em meio à catástrofe do socialismo parlamentário e do socialismo burocrático deve-se à imensa organização, de amplo espectro, que compreende o Estado-Povo da pequena ilha bloqueada faz mais de cinquenta anos, único movimento emancipador e criador constante e triunfante.
59. Hoje, é cada vez maior o domínio das novas técnicas de comunicação, informação e organização pelos movimentos do Mundo Árabe, de Grécia e de Espanha, de EUA, dos jovens latino americanos, que de Chile a México, passando pelo Caribe, estão iniciando a luta digital e cibernética por outro mundo possível.
60. E o importante é que às inovações no conhecimento, a comunicação e a organização se junta uma convicção crescente de que a moral é uma arma fundamental de luta para a organização da cooperação, e da solidariedade necessárias para construir “outro mundo possível” e para defender sua construção.
61.  Além de fortalecer as estruturas de solidariedade e a cooperação, a moral de luta unida à redefinição das estruturas para a defesa do projeto alternativo vai preencher um vazio muito descuidado pelos “moralistas”. Face ao ataque de complexos e corporações com “a repressão e a corrupção”, com “o porrete e a cenoura”, o “pau e a voz doce”, os criadores da nova história não apenas vão colocar semper a luta pela segurança, mas também a luta contra a “caridade de guerra” chamada “ação cívica” ou “humanitária” e contra as falsas empatias de quem diz lutar com os povos quando na realidade lutam contra eles. O “sou pobre mais honesto”, e o “prefiro morrer lutando a viver de joelhos” resumem-se no elogio da dignidade que cultivam os povos indígenas.
62. As ciências sociais e quem as combinam com o saber dos povos podem assumir os grandes desafios que a história coloca, e cada um o fará “segundo suas capacidades e possibilidades”. Uns poderão se adentrar na política pedagógica e diagonal, e de vanguardas que constroem vanguardas, que por sua vez constroem outras vanguardias, e mantenham um esforço incesante por se construir e educar a si mesmos. Farão da pedagogia política, enriquecida por Freire e por Fidel, a arte de ensinar os povos a tomar decisões na qual, qualquer que seja a decisão tomada, há riscos a assumir ou consequências a suportar, e na qual, com conhecimento, os pobres pensam e decidem. À política pedagógica é impostergável juntar esse novo tipo de pesquisa nas ciências sociais que leva bem em conta o saber dos povos e que investiga com os povos e os trabalhadores, com eles e entre eles.
63. Em todo caso, todos, como especialistas em ciências sociais, não apenas temos que impulsionar o conhecimento emocional e racional que aumetna a força das vontades emancipadoras. Temos que nos organizar para elaborar um relatório rigoroso, confiável e válido sobre os perigos de destruição do mundo, à qual nos dirigimos inevitavelmente, se seguir predominando o projeto depredador e recolonizador atual do capital corporativo, que entre os riscos que exige assumir a seus governantes vêm pressionando uma e outra vez por impor os de uma guerra de destruição mútua, que, se bem serve para aterrorizar, é também parte de um jogo ditatorial irresponsável. Demonstrar com o máximo rigor e a mais confiável e válida informação a natureza desses perigos, e colocar um caminho de transição a um mundo pós-capitalista pode parecer uma ilusão. Na realidade, constituirá um aporte à vida humana e à liberdade.
- Conferência apresentada na CLACSO “Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales”, noviembre 2012.

*Pablo Gonzalez Casanova é pesquisador social. Ex-reitor da UNAM-México.