sábado, 26 de maio de 2012

Além do bem e do mal na cidade sitiada



Por Luiz Eduardo Soares

A retórica ufanista e o moralismo simplificador do bem contra o mal, ainda comum na mídia, sobretudo carioca, não ajudam a entender a unidade de fundo entre crime e polícia, cuja lógica explica o drama da insegurança no Rio de Janeiro. O que se ganha na demagogia política dos símbolos, perde-se em acuidade analítica.


Em 1997, dois representantes colombianos do cartel de Cali vieram ao Rio de Janeiro para um encontro clandestino com dois empresários atuantes no comércio de cocaína — um brasileiro, outro sul-africano. O objetivo era avaliar as perspectivas desse ramo de negócios na cidade. Vieram estimulados pelo reconhecimento de que o mercado dava sinais de prosperidade e seu futuro parecia promissor, sobretudo face ao aumento do poder de consumo da classe média, nos novos tempos de estabilização e crescimento inaugurados pelo Plano Real. Calcularam custos e benefícios, e, finalmente, desistiram. Concluiram que seria inviável organizar uma estrutura de distribuição economicamente racional, em grande escala, à semelhança da rede que funcionava na Europa, abastecida por transporte marítimo, via Inglaterra. O obstáculo no Rio era o faccionalismo dos grupos armados, cuja irracionalidade era agravada pelo envolvimento policial. Tudo isso gerava instabilidade e imprevisibilidade: péssimo ambiente para investimentos. Passaram uma noite no antigo templo da prostituição turística carioca, a boate Help, e voltaram para casa, frustrados e exauridos — por motivos diferentes.

O episódio ilustra um aspecto frequentemente negligenciado: o modelo de organização e operação do tráfico de drogas no Rio sempre foi irracional e tenderia a tornar-se insustentável. É muito caro manter controle armado e ostensivo sobre territórios e populações, dividindo lucros com policiais. Exercer esse controle exige a organização de equipes numerosas, disciplinadas, hierarquizadas, dispostas a assumir riscos extremos. Os benefícios podem ser obtidos com muito menos gastos e riscos, quando se opera com estruturas leves, adotando-se vendas por delivery ou por agentes nômades, circulando em áreas selecionadas — como ocorre nas grandes cidades dos países centrais.

As UPPs — ótimo programa, sem dúvida necessário —, ao sepultarem o antigo regime, induzem, paradoxalmente, a modernização da economia do tráfico. Não o digo para criticar o programa, vale sublinhar, mas para analisar suas condições de possibilidade, seus efeitos e suas perspectivas futuras. Até porque essa modernização, considerando-se a inviabilidade de extinguir o negócio das drogas, será benéfica, reduzindo as armas em circulação e a violência, além do despotismo a que são submetidas tantas comunidades.

O modelo tradicional do tráfico é fruto de uma história bastante peculiar e não o resultado de um plano de negócios ou de um projeto “político”. A geografia social da cidade já situava, nos anos 1960 e 70, enclaves de pobreza, as favelas, no coração de zonas afluentes. O abandono das áreas pobres por parte do Estado favorecia seu uso como depósito de mercadorias ilegais e esconderijo para os operadores do tráfico no varejo. A contiguidade espacial permitia que os consumidores das camadas médias fossem alcançados sem dificuldades. Graças à aliança com segmentos policiais, a venda de drogas acabou por estabelecer-se nas próprias favelas, em pontos de venda fixos, as “bocas”, de conhecimento público. Inaugurava-se, assim, uma das únicas experiências duradouras de comércio sedentário e varejista de produtos ilícitos em zonas urbanas do mundo industrializado. Observe-se que desde sua origem o sistema dependia, naquilo que tinha de singular e distintivo, da participação policial.

Para garantir a continuidade dos negócios, tornou-se necessário proteger a “boca”, assegurando o livre trânsito de mercadorias e clientes. As armas, o recrutamento de equipes, sua organização à moda militar e o treinamento adequado converteram-se em vantagens competitivas. A consequência inevitável foi o controle de territórios e populações, exercido pela combinação perversa entre a intimidação pela força e a subordinação de tipo clientelista — padrão já incorporado à cultura local por décadas de tutela política.

Choques de interesses, disputas de poder e caprichos histórico-biográficos ensejaram a formação de três polos agregadores e antagônicos, em cujas órbitas passaram a gravitar os grupos de traficantes. Ordenavam-se, portanto, as rivalidades, fortalecendo-se, simultaneamente, a coesão interna de cada comando e as respectivas identidades. A relevância prioritária do armamento impôs-se nesse contexto, gerando uma curiosa e nefasta autonomização da economia das armas, cujo resultado foi a existência de mais armas e mais poderosas do que seria necessário para o uso rotineiro. O estoque excessivo de armas — ao instaurar uma capacidade “produtiva” ociosa — animou o desenvolvimento de práticas de aluguel e leasing, entre outras, em condições baratas e acessíveis, o que terminou por universalizar o emprego da arma de fogo, inclusive na prática de crimes menores contra o patrimônio, tradicionalmente perpetrados sem esse recurso — convertendo-os em potenciais crimes contra a vida e, por essa mediação, reproduzindo em escala ampliada a espiral da violência. Lembremo-nos que o Bope, em meados da década de 1990, deixou de aceitar rendição e fazer prisioneiros, o que também contribuiu para que traficantes intensificassem o investimento em armas e na cooptação de militares para a formação de seus quadros.

As histórias da crescente ingovernabilidade policial e do tráfico articulam-se, desde a origem. Não podem ser compreendidas separadamente. Nunca houve tráfico de armas e drogas, no Rio, dada sua natureza sedentária e territorializada, sem ativa participação de segmentos policiais, os quais se emancipavam do controle institucional, social e governamental, em função de vários fatores, entre os quais o modelo policial legado pela ditadura, refratário à governança racional, legalista e democrática.

Nesse contexto, as UPPs, retomando experiências anteriores (os mutirões pela paz, em 1999, e os GPAEs, entre 2000 e 2002), constituem um caminho mais do que promissor, indispensável. Elas substituem as incursões bélicas em que morriam suspeitos, inocentes das comunidades e policiais, sem que nada mudasse. Sua novidade: a provisão nas favelas do serviço público, que é a segurança, 24 horas, nos moldes oferecidos aos bairros nobres, isto é, com respeito às leis e aos direitos humanos. Nada de mais. Entretanto, decisivo, uma vez que a presença policial constante e legalista impede o controle do território por parte de grupos armados e permite que o Estado atue, cumprindo seu dever nas áreas de saúde, educação, saneamento, urbanização, transporte, etc.

Qual o desafio? Transformar o programa em política pública, ou seja, dotá-lo de universalidade e sustentabilidade, o que exige o envolvimento do conjunto das instituições policiais em sua aplicação. No Rio, não há esta hipótese, tal o nível de comprometimento das polícias com o tráfico, as milícias e a criminalidade em geral. Portanto, sem a refundação das polícias não haverá futuro para as UPPs. Elas se limitarão a intervenções tópicas, insuficientes para mudar o panorama geral da segurança pública e continuarão a conviver com nichos policiais, milicianos ou não, que têm sido fonte de violência e não instrumentos da ordem cidadã e democrática. No Rio, é preciso exorcizar a retórica tão patética quanto mascaradora do bem contra o mal e inscrever a mudança das polícias no centro da agenda pública.

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Luiz Eduardo Soares é antropólogo e autor, entre outros, de Justiça (Nova Fronteira, 2011). Foi secretário nacional de Segurança Pública (2003).



Fonte: O Estado de S. Paulo, 20 nov. 2011.



sexta-feira, 25 de maio de 2012

Brasileiro, consumidor irresponsável?


Surpresa: pesquisa internacional revela que, ao contrário do que se pensava, população está propensa a pesar origem dos produtos, nas decisões de compra
Por Daniela Frabasile
Marcante em muitos países da Europa, a noção de consumo responsável é vista às vezes como muito sofisticada para os brasileiros. O senso comum sugere que boa parte dos europeus estão dispostos a pagar mais por produtos que não agridem nem os direito sociais, nem a natureza – mas a lógica no chamado “terceiro mundo” é mais primária. Aqui, a maioria – que pode, pela primeira vez, consumir mais que o indispensável – não estaria preocupada com as consequências sócio-ambientais de suas compras.
Estas opiniões precisam, agora, ser melhor avaliadas. Acaba de ser lançado o relatório Biodiversity Barometer 2012. Produzindo pela União pelo Biocomércio Ético, uma entidade internacional, ele avalia periodicamente hábitos de consumo em países de diversos graus de desenvolvimento econômico. Neste ano, os consumidores da França, Alemanha, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos foram comparados aos do Brasil, Índia e Peru. Os resultados são surpreendentes. Pela primeira vez essa pesquisa procurou os consumidores brasileiros.
Segundo a pesquisa, os consumidores dos oito países acreditam que preservar a biodiversidade e garantir uma economia sustentável é responsabilidade principalmente do governo, em segundo lugar das empresas, e depois dos próprios consumidores. Pelos dados, 75% dos entrevistados acreditam que o setor privado tem um papel importante no desenvolvimento de uma economia sustentável.
Além disso, a pesquisa também mostra as diferenças entre as populações de cada país. Ao serem indagados sobre se já ouviram falar de desenvolvimento sustentável, 95% dos consumidores brasileiros responderam que sim. Nesse quesito, o Brasil fica atrás apenas da França, com 96% de respostas afirmativas. Logo atrás do Brasil, aparece a Suíça (92% de respostas afirmativas). Alemanha e Reino Unido aparecem abaixo (com 81% e 77%, respectivamente). Nos Estados Unidos, 64% dos consumidores já ouviram falar em desenvolvimento sustentável, à frente apenas de Índia (com 52%) e Peru (49%).
Por outro lado, o barômetro também mostra que existe uma diferença entre estar familiarizado com o termo e entendê-lo realmente. Quando a pergunta é sobre biodiversidade, 97% dos brasileiros entrevistados já ouviram falar, porém apenas 48% definiram o termo corretamente, e 22% de forma parcialmente correta.
Nos Estados Unidos, apenas 53% dos entrevistados sabiam do que se trata o termo, sendo que 21% dos consumidores definiram o termo corretamente. Dentre os países onde a pesquisa foi feita, a Índia foi onde os consumidores menos sabiam sobre biodiversidade: apenas 19% já ouviram o termo, e 0,4% soube definir corretamente.
Sobre como as pessoas aprenderam a definição de biodiversidade, o meio mais importante foram programas de televisão e documentários. Depois desse meio, o aprendizado fica a cargo de artigos em jornais e revistas, e abaixo disso, escolas e universidades. No Brasil, as propagandas são a segunda principal fonte de informação sobre biodiversidade, sendo que somando todos os países, as propagandas aparecem em quinto lugar.
Na questão do consumo, os dados mostram que 94% dos consumidores brasileiros dizem procurar comprar cosméticos que usam ingredientes naturais, acima dos 85% que aparecem na soma de todos os países. 84% dos brasileiros afirmam que prestam atenção às certificações ambientais e éticas, quando o total dos países aparece com 74%; e 87% dos brasileiros dizem se importar com a procedência dos ingredientes em cosméticos, o total nos países é de 69%.
Outro dado importante que pode orientar as empresas é que 78% dos entrevistados afirmam que as empresas certificadas por organizações independentes têm maior credibilidade frente ao consumidor.
Os consumidores também alegam querer mais informações sobre a origem dos ingredientes naturais presentes nos produtos. Dos consumidores brasileiros, 94% mostram interesse em saber mais sobre os recursos e obtenção das matérias-primas.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Egípcios vão às urnas para escolher o novo presidente; conheça os candidatos


Indecisos na histórica eleição egípcia podem chegar a 40%. Eleições começam nesta quarta
23/05/2012
Sandro Fernandes,
do Opera Mundi


Seção eleitoral no Cairo - Foto: Sandro Fernandes
Quinze meses após as revoltas que puseram fim aos 20 anos do governo de Hosni Mubarak, os egípcios vão às urnas nesta quarta-feira (23/05) para escolher o novo presidente do país, terminando assim o período de transição de um governo militar para um governo civil. O processo eleitoral continua na quinta-feira, das 8h às 20h, no horário local.
O Egito é o país mais populoso do mundo árabe e mais de 50 milhões de pessoas devem comparecer às seções eleitorais nestes dois dias de votação. O voto no país não é obrigatório e esta é a segunda eleição com mais de um candidato na história contemporânea do Egito. Em 2005, Mubarak foi reeleito como presidente, mas o resultado foi contestado por observadores devido a alegações de fraudes por todo o país.
Os resultados dos votos dos egípcios que residem no exterior já foram divulgados e apontam uma larga vantagem para o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohammad Mursi, graças ao apoio massivo dos eleitores residentes na Arábia Saudita. Na França, o candidato Hamdin Sabbahi foi o vencedor, enquanto no Brasil houve um empate entre Aboul Foutoh e Hamdin Sabbahi.
Apesar de não haver no Egito centros de pesquisa independentes de intenção de votos, os analistas afirmam que a percentagem de indecisos pode chegar a 40%.
Nenhum dos 12 candidatos deve conseguir a maioria absoluta neste primeiro turno, o que levará a eleição a uma segunda etapa, a ser realizada nos dias 16 e 17 de junho. Alguns grupos afirmaram que caso seu candidato não passe para o segundo turno, mais manifestações serão organizadas na Praça Tahrir. A nomeação do presidente eleito está prevista para o dia 21 de junho.
Os doze candidatos estão sendo classificados em três grupos – feloul (membros do antigo governo), islamitas e independentes. Conheça abaixo os doze candidatos:
Feloul (antigo governo)
Amr Moussa
Amr Moussa foi secretário-geral da Liga Árabe e ministro de Relações Exteriores do Egito durante 10 anos, mas agora tenta se distanciar da imagem de ex-aliado de Mubarak e se apresenta como “um liberal que acredita na justiça social”.

Moussa diz que sua prioridade como presidente será “colocar o Egito no caminho certo”, além de reformar os três poderes do Estado. É um dos favoritos na corrida presidencial. “Uma economia livre é o melhor sistema econômico, desde que haja também justiça social”, afirma Moussa. “Pequenas e médias empresas são a espinha dorsal da economia egípcia”, completa.
O candidato apóia o reconhecimento do Estado de Israel e também a criação de um Estado Palestino.
Ahmed Shafiq
Ahmed Shafiq foi o último primeiro-ministro de Mubarak e sua candidatura provocou reações diversas entre a população. Muitos o associam ao antigo governo, mas seus defensores dizem que Shafiq sempre foi uma voz da oposição no governo de Mubarak. Sua campanha ressalta o fato de ter sido ministro da aviação civil durante nove anos, o qualificando assim como “o único candidato presidencial com uma bem-sucedida experiência administrativa”.

Os panfletos da campanha destacam que Shafiq é o “candidato de decisões revolucionárias” porque ele pediu que governadores regionais mudassem o nome das ruas do país e colocassem o nome de ativistas revolucionários mortos durante a primavera egípcia, além de ter congelado bens de figuras importantes do antigo governo. Shafiq é um dos favoritos neste primeiro turno.
Husam Khayrallah
Candidato do Partido da Paz Democrática. Sem chance reais de passar para o segundo turno, Khayrallah serviu o exército como pára-quedista e depois fez parte da Inteligência General durante quase 20 anos. Desconhecido para a maioria dos eleitores.
Abdallah al-Ashal
Abdallah al-Ashal é professor de Direito Internacional na Universidade Americana no Cairo e um ex-ministro adjunto das Relações Exteriores.
Também sem chances reais de passar ao segundo-turno, AL-Ashal diz que sua prioridade é “defender os interesses nacionais e proteger a revolução”.
Islamitas
Abdul Moneim Aboul Fotouh

Aboul Fotouh foi membro da Irmandade Muçulmana durante muito tempo, mas em maio de 2011 foi expulso do movimento ao anunciar que queria concorrer à presidência. Conhecido por suas ideias liberais, Fotouh apoiou as revoltas de janeiro de 2011 e pediu que o Ocidente não temesse um golpe islâmico.
No seu programa político, enumera quatro aspirações principais: promover a liberdade no Egito, fortalecer a educação e a pesquisa científica, abrir as portas para o investimento estrangeiro no país e promover o valor da justiça. Fotouh é um dos favoritos.
Mohammad Mursi

Mohammad Mursi é o líder do Partido Liberdade e Justiça, braço político da Irmandade Muçulmana. Aparece nas pesquisas com menos de 10% das intenções de voto, mas analistas políticas afirmam que Mursi tem chances reais de passar ao segundo turno porque as pesquisas não refletem com exatidão as intenções de voto no Egito. A Irmandade Muçulmana ainda é o único movimento político conhecido em todo o país e este pode ser um diferencial nas urnas.


Muhammad Salim al-Awwa
Al-Awwa é um pensador islâmico, advogado, apoiado pelo partido centrista Al-Wasat. O candidato diz em sua plataforma que quer “ajudar os pobres a superarem a pobreza”. E apóia a liberdade irrestrita para as pequenas empresas, além da eliminação da burocracia governamental. Al-Awwa não tem chances de passar ao segundo-turno, segundo as pesquisas.

Independentes
Hamdin Sabbahi
Hamdin Sabbahi é o co-fundador do partido al-Karamah, que apóia a ideologia nacionalista do nasserismo. É conhecido por sua ferrenha oposição ao antigo governo, fortes posições anti-Israel e de apoio à questão palestina. Ele descreveu Israel como "um estado hostil expansionista, racista, que não quer a paz". Alguns analistas afirmam que Sabbahi pode ser uma surpresa neste primeiro-turno.





Khalid Ali
É o mais jovem dos candidatos e um proeminente militante de esquerda. É advogado trabalhista e luta pela defesa dos direitos humanos. Sem chances reais de passar ao segundo turno, de acordo com as pesquisas.
Hisham al-Bastawisi
Hisham al-Bastawisi é retratado como um herói nacional do movimento de independência do poder judiciário. É conhecido pela oposição ao antigo regime durante as eleições parlamentares de 2005, marcadas por inúmeros casos de fraude, mas as chances de ir ao segundo-turno são nulas.
Abu al-Izz al-Hariri
Al-Hariri é membro do parlamento, socialista e ativista trabalhista. Em 1976, ele se tornou o mais jovem ministro do Egito. Foi preso cinco vezes na era Sadat por causa de seu ativismo trabalhista e sua oposição aos acordos de Camp David de 1978.
Hariri foi um dos membros fundadores do Partido da Aliança Socialista Popular, o primeiro partido de esquerda legalizado após a revolução do Egito, mas não tem chances de passar ao segundo-turno.
Mahmud Hussam
Hussam se formou na Academia de Polícia em 1958 e ocupou vários cargos policiais. Pesquisas indicam que não tem apoio popular.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

OS 90 ANOS DOS COMUNISTAS NO BRASIL


Por Eduardo Sá 

Os comunistas fazem parte dos mais antigos partidos políticos em atividade no Brasil. Partidos porque dois deles, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), além do mais recente Partido Popular Socialista (PPS), reivindicam a mesma data de comemoração. Indiscutível é, no entanto, a contribuição dos comunistas na história nacional. Participaram de todas as lutas justas do povo brasileiro durante as últimas nove décadas. Não é à toa que renomadas personalidades da história política e cultural do Brasil foram comunistas ou seus aliados: Jorge Amado, Oscar Niemeyer, Portinari, Caio Prado Júnior, Rachel de Queirós, João Saldanha, Mário Lago, Paulo Freire, Graciliano Ramos, dentre tantos outros.
No dia 25 de março de 1922 nasceu, em Niterói, dando sequência a uma reunião iniciada no Rio de Janeiro, o Partido Comunista do Brasil (PCB). Nove delegados, representando cerca de 73 militantes de diversos estados do Brasil, criaram o partido inspirados nos “21 pontos de Moscou”, em referência à Revolução de Outubro, ocorrida em 1917 na Rússia. Os pensamentos de Karl Marx e Friedrich Engels, somados aos métodos de organização de Lênin, líder da revolução russa, nortearam a agremiação.  Representando os operários e camadas populares da sociedade brasileira, os intelectuais e militantes do PCB foram obrigados pelas elites a viver grande parte de sua história na ilegalidade.
O partido surge contribuindo nas lutas políticas e culturais, como a participação expressiva na Semana de Arte Moderna, em 1922. Com a chegada de Luís Carlos Prestes no início de 1930, egresso da famosa Coluna que atravessou o país, os comunistas começam a ter influência no cenário nacional. Figuras lendárias como Astrojildo Pereira e João Amazonas, dentre outros, combateram o Estado Novo de Getúlio Vargas, fizeram campanha pela constituinte em 1946, foram às ruas lutar pelo “O Petróleo é nosso”, agitaram greves nos anos 1950, e, ao se aproximarem das massas, passaram a ter importância nas resoluções históricas da nação. Muitas vitórias e derrotas, como o levante em 1935, ocorreram, em sua maioria, na clandestinidade. Com isso, se tornou a principal organização política de esquerda no Brasil durante anos.
Mas o cenário internacional também refletia no partido, sobretudo os caminhos tomados pela União Soviética e pela China, e foi gerando discórdias no seu Comitê Central. Em 1958 é lançada a famosa Declaração de Março, que aponta, dentre outros elementos, a questão democrática. Em 1962, no dia 18 de fevereiro, o racha no partido se consolida e, de acordo com a interpretação de cada um deles, ocorre a criação de um novo partido ou a refundação da organização. As visões diferenciadas se acentuam com a ditadura militar a partir de 1964, época em que muitas lideranças foram mortas, presas, desaparecidas e exiladas, como Carlos Marighella. A partir desse período o PCdoB, que hoje é base do governo, vem formando novas alianças e o PCB se desintegrando, chegando ambos ao século XXI com nova cara e novos desafios. Em 1992 surge, ainda, o Partido Popular Socialista (PPS), também reivindicando a história original do partido.
Festividades dos partidos
O Rio de Janeiro foi palco das comemorações. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) realizou durante a semana diversas atividades, com debates promovidos em alguns sindicatos, e um ato político na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), local que nos anos de chumbo da última ditadura militar serviu de trincheira à democracia. O PCdoB, por sua vez, fez atividades que acabaram num ato-show no Vivo Rio, uma das casas de show mais caras da cidade. Ambos receberam representantes de partidos comunistas de outros países. E o PPS também não deixou passar em branco, promovendo uma sessão comemorativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal, na qual foi lançado o livro “O PCB-PPS e a Cultura Brasileira: Apontamentos”, do historiador Ivan Alves Filho.
As festas que foram realizadas no Rio de Janeiro traduzem bem as disparidades entre os partidos. O Partidão, como é conhecido o PCB, fez autocríticas, inclusive na televisão em cadeia nacional, aos seus possíveis erros históricos e reflexões sobre seu futuro. Intelectuais debateram estratégias e fizeram retrospectivas, reforçando sua oposição ao atual governo e suas alianças. O auditório da Associação Brasileira de Imprensa ficou lotado. A União da Juventude Comunista (UJC) vem crescendo e se destacando no cenário carioca, sempre participando dos protestos populares, e no caminho para a festa dos 90 anos fez um ato em frente ao Clube Militar, defendendo a Comissão da Verdade e a punição dos torturadores da última ditadura. O evento foi aberto, com refrigerantes e biscoitos para o público, e contou com a participação de diversos movimentos sociais, intelectuais e parlamentares. Marina Santos, da direção nacional do MST, e os parlamentares Paulo Ramos (PDT), Alessandro Molon (PT), Chico Alencar (PSol) e José Maria (PSTU), dentre outros, estiveram presentes.
comunistas-Ivan-Pinheiro-iIvan Pinheiro, secretário geral do PCB, disse a Caros Amigos que seu partido só tem futuro porque tem passado. Ele destacou que a autocrítica e a reflexão dos caminhos a serem tomados são para evitar alguns erros cometidos, porque a história está oferecendo uma boa possibilidade de liderança revolucionária num futuro próximo. Pinheiro ressalta que eles têm o diferencial no discurso sobre alguns temas e vão buscar maior aproximação com as massas para superar algumas dificuldades.
“A história está caminhando para um conflito social e o PCB poder ser uma liderança nesse processo, porque o capitalismo já não tem mais nada a oferecer para a humanidade. Ele só pode ficar mais agressivo, tirar mais direitos e produzir mais guerras. Nossa avaliação é que vai haver um acirramento na luta de classes e partidos que têm a política revolucionária, no sentido de não conciliar, de ser um partido leninista, têm tudo para crescer. Onde a crise é mais dramática, o PBC grego vem crescendo muito, por exemplo. Mas nós temos ainda que construir para poder merecer esse momento que a gente está vivendo”, afirmou o dirigente.
Ambiente bastante diferente foi o da festa do PCdoB, que após o ato político repleto de dirigentes teve show de Martinho da Vila. Sem a presença de movimentos sociais expressivos, representados pela Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), e com uma juventude menos inquieta, a festa foi bastante requintada. Aberto somente para convidados, o evento, com uma orquestra na recepção, foi dividido em camarotes e pista. Nesta, tudo era pago, indo desde água por R$ 5 a espumantes de R$ 200. Mais de 30 pessoas participaram da produção, cujo gasto não foi divulgado, tendo, destacadamente, toda a cúpula da União Nacional dos Estudantes (UNE) em sua composição.
Todos bem vestidos e familiarizados com as atuais autoridades, provavelmente estarão nos quadros políticos no futuro próximo. Representam a corrente União da Juventude Socialista (UJS) no movimento estudantil. Ministros, senadores, governadores e prefeitos foram ao microfone, mediado pelo cantor e pré-candidato a prefeito Netinho (PCdoB-SP). A presidente Dilma e o ex-presidente Lula enviaram um vídeo com saudações ao partido e se fizeram presentes por meio de Gilberto Carvalho e Luiz Dulci, respectivamente. Além dos dirigentes do PCdoB, como Aldo Rebelo e Orlando Silva, a base aliada participou com a presença carioca do senador Marcelo Crivella (PRB), o vice governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) e o prefeito Eduardo Paes (PMDB), e muitos outros. A Internacional Comunista foi tocada para todos no palco.
O presidente do PCdoB, Renato Rebelo, fez longa exposição sobre a história do partido durante o evento. Homenageou comunistas históricos ecomunistas-Renato-Rebelo-i destacou a participação da atual geração do partido. O programa acertado em 2009 define a transição ao socialismo, com a aplicação de um novo projeto nacional de desenvolvimento e anti-imperialista, latifundiário e oligarquista, declarou. Ao final do ato político ele falou a Caros Amigos o que traduz hoje o caráter marxista e revolucionário do partido que, na sua visão, é leal ao governo mas não renuncia à independência.
“O que traduz o caráter marxista e revolucionário do PCdoB hoje é o rumo que ele defende, uma estratégia nossa, ele sabe para onde ir. Por que ele ainda vive 90 anos? Porque enquanto não cumprir o seu objetivo vai existir. Esse é o grande ideal, o socialismo. Mas o caminho para isso você parte da realidade concreta. O curso mais importante e político que a gente pode impulsionar e levar adiante é esse com a vitória de Lula. Eu não posso escolher o que é o ideal para mim na história, o que eu posso é atuar conforme o curso histórico naquilo que eu acho que pode se aproximar dos objetivos maiores que eu defendo”, afirmou.
O mito Luís Carlos Prestes
Como todo mito, Luis Carlos Prestes, o lendário Cavaleiro da Esperança, apelido dado pelo escritor Jorge Amado, é lembrado de várias formas. Sua figura é prestigiada por todos os partidos, mas não há consenso ideológico nem na sua própria família. Prestes foi um ícone do comunismo no Brasil, passou anos estudando na Rússia e ao retornar ao país foi perseguido, preso e exilado. Foi protagonista em grandes acontecimentos históricos no Brasil. Após anos à frente do PCB e de volta à nação, lança a Carta aos Comunistas e pouco depois se desliga do partido. Nesse período o Comitê Central já estava dividido, com impasses estratégicos envolvendo escolhas antes e durante a ditadura militar de 1964. De volta ao país, após a anistia, Prestes passa o fim de sua vida filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Anita Prestes, historiadora e filha de Luís Carlos Prestes com Olga Benário, defende que seu pai já denunciava a essa época a história do reformismo do PCB. No ano passado, ela publicou uma carta à direção do PCdoB externando sua estranheza e indignação com a utilização das imagens de seu pai no programa eleitoral do partido. Ela vai lançar em agosto, pela editora Expressão Popular, o livro “Luís Carlos Prestes: um combate por um partido revolucionário”. Ao participar de uma mesa nas atividades do PCB, demonstrou afinidades com o Partidão mas apontando os erros no passado, principalmente os de conciliação com as classes dominantes.
“Não posso aceitar que se pretenda comprometer a trajetória revolucionária dos meus pais com a política atual do PCdoB, que, certamente, seria energicamente por eles repudiada. Cabe lembrar que, após a anistia de 1979 e o regresso de Luís Carlos Prestes ao Brasil, durante os últimos dez anos de sua vida, ele denunciou repetidamente o oportunismo tanto do PCdoB quanto do PCB, caracterizando a política adotada por esses partidos como reformista e de traição da classe operária”, afirma a historiadora na carta.
O resto da família de Prestes, fruto da relação com Maria Prestes, sua viúva, tem mais proximidade com o PCdoB. São 7 filhos e muitos netos, nenhum deles ligado à política. A matriarca foi homenageada na festa do partido e falou para Caros Amigos que esteve no evento do Partidão e não foi anunciada. “Não tem dissidência nenhuma, todos nós temos o mesmo pensamento e lutamos pelos mesmos objetivos: mudanças dos problemas sociais e a defesa de nossas riquezas. Isso que o partido comunista significa para mim e toda a família. Participei da reforma agrária, o petróleo é nosso, luta contra a bomba atômica, pelo aumento dos salários. Nossa família defende esse mesmo pensamento”, afirmou.
Como as lideranças enxergam as dissidências?
São muitas as contradições que envolvem os partidos comunistas no Brasil. Cada um defende a legitimidade de sua trajetória e de seus personagens à sua maneira. Nas declarações dos dirigentes a seguir isto fica claro, exceto a crítica ao Partido Popular Socialista (PPS). Além dessas, ainda existem outras correntes, como a Corrente Comunista Luís Carlos Prestes. De acordo com Anita Prestes, ao contextualizar as dissidências do partido, o país tem uma tradição histórica de conciliação e essa fragmentação decorre da inexistência de um movimento de massas no Brasil.
“A esquerda no Brasil hoje em dia está extremamente dividida. Existem pessoas de esquerda nas organizações de esquerda. Como o movimento de massas ainda está muito embrionário, também faltam lideranças e uma proposta que realmente consiga levar adiante o processo revolucionário. Ninguém é dono da revolução, pode ser o PCB ou não, vai depender de quem vai mostrar na prática essa capacidade de liderar o movimento popular”, analisou.
De acordo com Ivan Pinheiro, secretário geral do PCB, eles são os únicos herdeiros do Partido Comunista Brasileiro, que foi uma árvore frondosa que rendeu muitos frutos. Sua herança, para ele, não é no sentido cartorial por causa do nome e sim porque assume toda a história do partido. Ele explica que o nascimento de outro partido na década de 60 ocorreu em função da revolução chinesa, com a famosa divergência sino-soviética, período em que nasceram dezenas de partidos no mundo todo.
“Ele teve um nome de Partido Comunista do Brasil, em 1959 passa para Partido Comunista Brasileiro, mas sempre foi PCB. Até alguns anos atrás o PCdoB se orgulhava de ter sido fundado em 1962 para se diferenciar daqueles 40 anos anteriores, ele negava peremptoriamente o Prestes, a União Soviética, etc. O povo não está entendendo, parece que nós somos gêmeos, nascemos no mesmo dia. Mas o PPS, a própria linha política dele mostra que hoje não merece nem dizer que foi o PCB, porque é um partido de direita. O PCdoB a gente respeita, ainda tem comunistas, nós discordamos é da linha política que nós chamamos de oportunista e eleitoreira”, afirmou Pinheiro.
O Partidão foi sumindo e se transformou em PPS, é a visão de Renato Rebelo, presidente do PCdoB. De acordo com o líder do partido, o PCB fez parte de um momento de cisão do movimento comunista no mundo e no Brasil. Em entrevista a Caros Amigos, Rebelo afirma que só o PCdoB tem hoje influência no cenário político nacional e, por isso, valeu sua reorganização.
“Ele jogou seu papel no começo e o PCB que era maior desapareceu porque se transformou em PPS. Hoje o PPS é um partido atrelado aos tucanos, o que restou é um grupo pequeno, uma seita política. Não tem influência no curso político brasileiro. Então, na realidade, o PCB que era maioria minguou e desapareceu. Por isso dizemos que valeu a reorganização. Foi o partido que ficou, enfrentou a ditadura, atraiu para suas fileiras um conjunto de revolucionários sinceros. Ele perdeu praticamente 11 membros da direção nacional, os quadros da AP vieram cobrir esse claro. O PCB não, ao contrário, começou a ter crescentemente dissidências desde o início do golpe militar de 1964. Depois ficou Roberto Freire, que numa atitude de apostasia largou tudo, símbolo, nome”, observou.
PPS
O fundador e atual presidente do PPS, Roberto Freire, defende que seu partido é sucessor do PCB. Ele afirma que no XII Congresso Nacional, em janeiro de 1992, em São Paulo, que foi precedido de intenso debate, 2/3 dos delegados decidiram criar um novo partido. O fim da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, o fim do centralismo democrático, alguns dogmas, o embate entre reforma e revolução, dentre outros temas, desencadearam um processo de desintegração e revisionismo no partido, na sua opinião. Freire acredita que o PPS vai crescer, mas reconhece que o partido vem sofrendo várias derrotas. E atribui esse cenário a um caráter adesista dos políticos brasileiros, pois no Brasil é muito difícil fazer oposição, complementou.
“Desde quando éramos do PCB sempre havia no dia 24 de março essas contradições em relação à data comemorativa e nós resolvemos que herdeiros de 22 são todos os que desejamos ser herdeiros. As homenagens são livres e todos são respeitados. O comunismo não tem perspectiva de futuro, existe a ortodoxia do passado em homenagem à história, mas não tem mais capacidade de fazer história. Toda a concepção que formava o comunismo perde o sentido na atual conjuntura no mundo. Os valores da esquerda prevalecem, mas outros elementos não”, concluiu.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Democracia, representação e participação



Por Fernando Perlatto


As últimas décadas testemunharam um processo crescente de crítica às instituições identificadas com a democracia representativa, tomadas como incapazes de responder aos desafios colocados à vida política contemporânea. O enorme fosso a separar representantes e representados vem animando diversas propostas alternativas de democracia — tanto teóricas quanto práticas — que, a despeito das diferenças, têm na ideia de participação sua identidade comum. A percepção do reduzido interesse pelas disputas eleitorais e o consequente baixo comparecimento às urnas, inclusive nas democracias europeias tidas como consolidadas, somada à eclosão de movimentos como os Indignados, que tomaram recentemente as praças espanholas, evidenciam que o modelo democrático hegemônico, consolidado no decorrer do século XX, encontra-se em crise.

Importa reter que a disputa sobre o que é ou dever ser a democracia é intrínseca à própria ideia de democracia. Tomá-la como um modelo fechado e acabado é contrariar sua história e a sua própria definição, que deve ser encarada como um projeto aberto, imperfeito e em permanente reiventar-se. Se no século XIX, no rescaldo das revoluções burguesas que tiveram seu curso no final do XVIII, a reflexão sobre a democracia assumiu feições elitistas, sobretudo como decorrência da perspectiva “demofóbica” que assolava as elites políticas de então, no século XX ela acabou por ganhar características “elitistas”, uma vez que identificada como um modelo exclusivamente institucional [1]. A teoria democrática do século XX — representada principalmente pelos nomes de Joseph Schumpeter (Capitalismo, socialismo e democracia, 1942) e Robert Dahl (Poliarquia, 1971; Um prefácio à teoria democrática, 1985) — assumirá uma concepção restrita de democracia, seja associando-a à luta por poder entre líderes políticos rivais, seja assumindo-a exclusivamente como garantia de competição entre grupos de interesses, com proteção de minorias e de direitos de participação.

Na segunda metade do século XX, propostas de democracia participativa apareceram em diversos contextos, no bojo das críticas formuladas tanto ao Estado de Bem-Estar Social, quanto ao neoliberalismo. De acordo com estas análises, ambos os modelos não conseguiram dar respostas satisfatórias à questão democrática: se por um lado, o Estado de Bem-Estar Social, hegemônico em diversos países entre as décadas de 1930 a 1960, implicou na consolidação de um Estado clientelista sobreposto à sociedade civil, objeto esta de uma ação paternalística por parte de uma burocracia pouco interessada na mobilização de outros segmentos da sociedade, que não aqueles já organizados e controlados “por cima” mediante relações heterônomas (Nobre, 2004), por outro lado, o neoliberalismo, que dominou e ainda domina parte significativa dos países desde o final da década de 1970, focado na capacidade libertadora das forças do mercado, acabou por reforçar valores como o individualismo e a competitividade, se não opostos, ao menos contraditórios com aqueles fundamentais para a construção de uma vida democrática.

Centrados principalmente no aspecto institucional e tendo como horizonte normativo apenas reformas pontuais nos desenhos partidários, os chamados “modelos minimalistas” de democracia mostraram-se e ainda vêm se mostrando incapazes de darem respostas aos desejos e aspirações do homem comum e da sociedade civil organizada. Na busca da superação destes modelos, diferentes autores como Carole Pateman, C. B. Macpherson, Benjamin Barber, Jane Mansbridge e Archon Fung, entre outros, cada qual à sua maneira, defendem propostas de “democracia participativa”, muitos deles influenciados por uma concepção rousseauniana que tem como base de sustentação a ideia de “vontade geral”, segundo a qual a noção mesma de representação deve ser superada por formas de participação direta no sistema político.

Buscando um modelo alternativo, situado entre aquilo que denominou como modelos “liberal” e “republicano”, Jürgen Habermas (2004) buscou desenvolver um terceiro caminho, identificado como modelo “procedimental”, focado na ideia de deliberação. Defendendo pretensões normativas mais fortes do que a democracia liberal — a perspectiva procedimental aposta em uma esfera pública animada, como desejam os republicanos, na qual ocorram processos reais de formação da opinião e da vontade —, porém mais fracas do que o modelo republicano — apostando nas garantias estabelecidas pelo Estado liberal para a institucionalização do processo de decisão, que não deve depender do fato de os cidadãos serem suficientemente ativos ou coletivamente capazes de ação —, Habermas defende que o “assédio” às instituições liberais representativas deva ser estimulado, embora exercido sem a “intenção de conquista”, respeitando-se os limites entre as esferas do sistema político e a esfera pública envolvida no debate.

No Brasil, a discussão quanto à necessidade de ampliar os cânones democráticos para além da representação também vem ganhando força, pelo menos desde o final da década de 1970. As mobilizações que tomaram conta do país a partir deste contexto — da qual participaram, entre outros, segmentos como o “novo sindicalismo”, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), instituições científicas públicas e privadas, assim como movimentos de minorias — foram fundamentais para que instituições vinculadas à democracia participativa emergissem com força e, a despeito da composição majoritariamente conservadora da Assembleia Constituinte, entrassem de maneira destacada no próprio tecido da Constituição de 1988. No processo de transição à democracia, a nossa Carta constitucional logrou consolidar, dentro dos limites da institucionalidade democrática, instrumentos participativos, sem que, para tanto, fosse necessária a supressão dos mecanismos representativos.

As inovações participativas contidas no texto constitucional foram processadas de diversas maneiras, seja mediante a inclusão da possibilidade da realização de referendos eplebiscitos, seja pelo seu desenho descentralizador, que acabou por conferir às administrações municipais recursos e independência política para reestruturar o processo de produção de políticas públicas, possibilitando o fortalecimento de conselhos gestores e a expansão de práticas democratizadoras, como o orçamento participativo (Avritzer, 2010). Além disso, o texto constitucional também institucionalizou novos canais de participação funcional por meio das instituições do Judiciário, recuperando o tema da pedagogia cívica exercida pelo Direito, suas instituições e procedimentos, de modo a ampliar as formas da representação da sociedade civil com vias próprias para chegar à esfera pública (Werneck Vianna, 2008).

Nos últimos anos, outras inovações institucionais buscaram trazer o tema da democracia participativa para o centro da agenda política e teórica do país. A criação em 2003 do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), constituído como espaço que busca debater e, sobretudo, construir consensos entre representantes das entidades classistas de trabalhadores e empresários, além de outros setores da sociedade civil e Governo, e que garantam a efetivação dos temas considerados prioridade da agenda do governo, bem como a expansão das conferências nacionais de políticas públicas nos últimos anos, abrangendo uma enormidade de temas e mobilizando uma gama considerável de participantes, são exemplos concretos de esforços no sentido de repensar o tema da democracia nos dias atuais.

Diante deste breve quadro esboçado acima, que evidencia uma democracia que vem se consolidando nas últimas décadas mediante a combinação de instrumentos representativos e participativos, a pergunta que se faz é: há alguma necessidade de uma reforma política? Será que não atingimos um ponto ótimo, a partir do qual não se faz necessária qualquer intervenção no sistema político? Não estaríamos a caminhar para umfim da história institucional, a partir do qual basta apenas gerir o sistema, aperfeiçoando de forma reduzida os mecanismos garantidores da ordem e deixando que o sistema resolva por si só eventuais problemas? Em suma, há necessidade de mudanças no nosso sistema democrático?

De fato, é inegável e ponto a ser ressaltado que a democracia brasileira vem se expandindo de maneira significativa nos últimos anos. Alternando a experiência de regimes semidemocráticos (1945-1964) com regimes autoritários (1964-1985) e novamente democráticos (desde 1986), nosso sistema político, não obstante recuos e percalços, tem se consolidado tanto do ponto de vista do recrutamento de novos segmentos — a participação do eleitorado saltou de 16,2% da população adulta, em 1945, para 69%, em 2006 —, quanto do ponto de vista institucional (Santos, 2007). Além de ter se mostrado resistente a um processo de impeachment no início da década de 1990 e a escândalos de corrupção que assolaram o país recentemente, as duas últimas décadas, sob a hegemonia de tucanos e petistas, testemunharam o amadurecimento do nosso sistema político e das instituições representativas, que responderam bem aos processos de transição democrática e às crises políticas.

Passados mais de vinte anos da aprovação da Carta de 1988, portanto, podemos dizer que nossa institucionalidade democrática tem se robustecido, assegurando as liberdades individuais e políticas, o estabelecimento de eleições regulares e a prática da alternância de poder, fazendo com que atravessemos um momento de consolidação da rotina democrática. Contudo, é preciso ressaltar que não basta à vida democrática a rotina; nela, também se fazem necessárias a imaginação e a invenção permanentes, sob o risco da democracia se “desencantar” e funcionar como uma espécie de máquina a ser acionada a cada novo processo eleitoral. Uma democracia desencantada é aquela cujas decisões políticas se dão de “cima para baixo”, que funciona amparada apenas em suas instituições e procedimentos, exercida somente no período das eleições e que prescinde até o próximo pleito da participação da sociedade. A linguagem dessa democracia desencantada é o discurso técnico, seja do mercado, seja do Estado, que não organiza nem mobiliza a sociedade e que constrange a emergência do novo, sob o risco deste transtornar a rotina e perturbar as regras do jogo.

Nossa democracia parece, em muitos momentos, padecer desta incapacidade de imaginação e invenção. Se os últimos dezesseis anos de governos tucanos e petistas tiveram o mérito de consolidarem institucionalmente e no senso comum a estabilidade monetária e as políticas sociais como conquistas que não devem ser revogadas, ambos os partidos enfrentam hoje um déficit permanente de criatividade, no sentido de pensar alternativas e possibilidades para a reanimação da vida política do país. Os debates sobre desenvolvimento são centrados exclusivamente nas variáveis mercado e Estado, sendo relegadas a segundo plano propostas para o fortalecimento da esfera pública brasileira.

Não se trata aqui, e é importante ressaltar, de negar a importância desses processos de inclusão para a consolidação da democracia no país. Mas a vida democrática exige mais: exige mobilização da sociedade e o envolvimento da mesma para que as políticas de expansão do mercado e do Estado sejam construídas “por baixo”, com a participação autônoma daqueles diretamente atingidos por elas. Será que nossa imaginação se encerra na discussão de mais inclusão no mercado e/ou mais Estado ou menos Estado? Não seria o caso de perguntarmos: mais inclusão no mercado e mais Estado para quê?

É fundamental que atentemos para o fato de que a sociedade brasileira está se movendo. Ao contrário dos diagnósticos que apontam para a apatia reinante, percebemos uma sociedade que se organiza e se movimenta seja para protestar contra a precariedade das condições de vida e contra baixos salários — como evidenciam as manifestações que ocorreram recentemente nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Jirau e nas mobilizações dos bombeiros no Rio de Janeiro —, seja artisticamente — como testemunham as diversas manifestações culturais, como festas e círculos de forró, música brega, funk, samba, etc., que explodem pelas periferias do país e das grandes cidades —, potencializadas pelas novas ferramentas da internet, como o twitter. Essa movimentação ocorre no âmbito do que tenho chamado de esfera pública subalterna (Perlatto, 2010), mas não alcança a esfera pública institucionalizada pela incapacidade dos partidos políticos de interpretarem suas vontades, desejos e aspirações, organizando-as politicamente.

Encontramos-nos, portanto, diante de uma situação que demanda mudanças capazes de fortalecer os partidos políticos, elos centrais de uma vida democrática pulsante, que, tanto por questões internas — ausência de processos democráticos de deliberação, escolha de dirigentes e candidatos — quanto externas — domínio do Executivo sobre a agenda do Legislativo —, encontram-se fragilizados e pouco acessíveis ao homem comum, com suas aspirações e desejos por mudança. Nesse sentido, é que se faz necessária uma reforma política que fortaleça partidos capazes de contribuírem para a organização e animação da vida popular, de modo que os temas e atores emergentes “de baixo” possam disputar os rumos políticos do país na esfera pública institucionalizada. Esta reforma deve ser capaz de fortalecer e moralizar as instituições e a rotina da democracia representativa — mediante o estabelecimento, por exemplo, do financiamento público das campanhas —, mas deve também se abrir para ampliação das possibilidades da democracia participativa, apostando na sociedade brasileira, fonte do reencantamento permanente da nossa democracia.

Uma democracia encantada é aquela que está enraizada nas aspirações do homem comum e é alimentada por uma sociedade vibrante e por uma cultura política de participação constante. Esta forma de democracia não se move somente a partir das forças do mercado, como se acreditava na década de 1990, nem se sustenta somente com o robustecimento do Estado, como querem crer setores importantes do atual governo. A democracia encantada encontra sua força na sociedade e pressupõe criatividade, imaginação e invenção, não devendo ser encarada como uma utopia, mas como um processo de construção e experimentação permanente, que permite a todos, inclusive aqueles segmentos não organizados que também se movimentam na esfera pública subalterna, participarem frequentemente das decisões centrais sobre os rumos do país.

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Fernando Perlatto é professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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Notas:

[1] No século XIX, parte significativa do pensamento liberal já considerava inevitável a expansão e consolidação da democracia. Tal percepção pode ser comprovada na obra de Alexis de Tocqueville, A democracia na América, na qual o autor aponta para a inexorabilidade da marcha da igualdade e da liberdade, em um movimento de expansão crescente da democracia pelo mundo. Diante da sua inevitabilidade, os debates se concentram na forma que o sistema democrático deveria assumir. O “medo das massas” que toma grande parte da elite política do final do século XVIII e no decorrer do século XX será central para a associação da democracia exclusivamente com a ideia de representação. Sobre este ponto, ver Miguel (2002).

Bibliografia:

AVRITZER, Leonardo (Org.). (2010), Experiências nacionais de participação social. Belo Horizonte: Cortez Editora.
DAGNINO, Evelina (Org.) (2002), Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.
HABERMAS, Jürgen. (2004), “Três modelos normativos de democracia”. In: A inclusão do outro. Estudos de Teoria Política. São Paulo: Loyola, p.277-92.
MIGUEL, Luis Felipe. (2002), “A democracia domesticada: Bases antidemocráticas do pensamento contemporâneo”. Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 3, p. 483-511.
PERLATTO, Fernando. (2009), A interpretação como exercício normativo: intelectuais, subalternos e a esfera pública brasileira. Dissertação (Mestrado em Sociologia) — Rio de Janeiro, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
SANTOS, Wanderley Guilherme. (2007), O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de Janeiro: Rocco.
VIANNA, Luiz Werneck. (2008), “O Terceiro Poder na Carta de 1988 e a tradição Republicana: mudança e conservação”. In: Oliven, R. G. Ridenti, M. Brandão, G. M. (Org.). A Constituição de 1988 na Vida Brasileira. São Paulo: Hucitec, p. 91-109.




Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

domingo, 20 de maio de 2012

O drama dos seres humanos ilegais — e como interrompê-lo


Shahram Khosravi


Antropólogo iraniano escreve sobre imigrantes, trabalhadores que o capital simultaneamente deseja e exclui. E aposta que controles migratórios podem se tornar obsoletos…

Por Roberto Almeida, no Opera Mundi
Hoje o iraniano Shahram Khosravi é antropólogo, professor da Universidade de Estocolmo. Mas há 30 anos ele era um imigrante sem documentos, pagando contrabandistas para ajudá-lo a fugir de sua terra natal. Ele peregrinou, deixou os dólares da família com policiais corruptos para escapar do serviço militar obrigatório, que o levaria ao front da guerra Irã-Iraque.
Khosravi transformou sua “rica” experiência em livro. ‘Illegal Traveller’ – An Auto-Ethnography of Borders (‘Viajante Ilegal’ – Uma autoetnografia de fronteiras, US$ 27, Amazon.com) é um guia de sobrevivência pelas linhas porosas que dividem o atlas global. “Fronteiras são símbolos e rituais de uma comunidade. Ter controle é mostrar a identidade e legitimidade do Estado”, disse o autor ao Opera Mundi.
Em meio à disputa de deportações entre Brasil e Espanha, que levanta suspiros patrióticos em ambos os lados, sem falar no limbo jurídico em que caíram imigrantes haitianos, que aguardam no Acre e em Rondônia documentação para trabalhar, Khosravi vê tudo como um grande “espetáculo” que prioriza a soberania de um país e se esquece das pessoas.
São palavras de um homem que viveu como “deportável” anos a fio até encontrar asilo político na Suécia, onde vive hoje. “Uma pessoa sem documentos não sabe o que vai acontecer amanhã. Tem medo até de se apaixonar”, contou. Veja a entrevista.
* * *
O sr. é contra fronteiras?
É preciso voltar na história e rever o assunto. Criamos nações-Estado há menos de 200 anos. Não tínhamos esse tipo de fronteiras. É algo criado e, por isso, podemos mudá-las. Não deu certo. Pessoas morrem todos os dias, vivem na miséria por causa das fronteiras que temos hoje. Você poderia dizer que um sistema sem fronteiras é totalmente utópico. Mas se voltarmos no tempo até a década de 1960, por exemplo, ninguém acreditaria se dissesse que um dia não haveria mais controle de fronteiras entre França e Alemanha. Pois hoje não existe mais esse controle. As pessoas atravessam para lá e para cá. E se voltasse 30 anos no tempo, ninguém acreditaria se dissesse que não haveria mais fronteiras entre países do leste europeu e o resto da Europa. Mas hoje as pessoas podem viajar. Quando dizemos que um sistema sem fronteiras é possível, tem gente que ri da nossa cara. Mas nunca se sabe. Quem sabe daqui a 50 anos não teremos mais essas fronteiras que temos hoje?

O sr. é um crítico do modo que a mídia em geral retrata os contrabandistas de pessoas. Por quê?
Acho que muitos jornalistas e políticos têm idéias bastante simplistas sobre contrabandistas de pessoas. É preciso lembrar que eles são produto de uma política dura de fronteiras. Quanto mais fechadas, mais geram contrabandistas.

Pode dar um exemplo?
Nos anos 1980 era muito mais fácil obter visto ou asilo em países europeus. E também era mais fácil ir à Europa ilegalmente. Muita gente era ajudada por primos, irmãos, e foram para a França, Suécia e outros países. Hoje é muito difícil ir para a Europa. É preciso de ajuda profissional de gente que gerencie esse tipo de imigração. É o que digo. Essas políticas criaram um mercado lucrativo para grupos criminosos. Mas é preciso ressaltar que, quando se fala em contrabandistas de pessoas, há muitos atores em questão. Há o agricultor na fronteira entre Irã e Turquia que ajuda pessoas a cruzar por 50 dólares. Ao mesmo tempo há o grupo criminoso que coloca pessoas em uma barca perigosa e manda pelo Mar Mediterrâneo e não está nem aí se elas vão morrer ou não. Todos são chamados de contrabandistas e, por isso, precisamos ter cuidado com essa terminologia. Fato é que tudo isso é parte da criminalização da migração, que cria uma cultura de desconfiança. Todos acreditam que pessoas que foram contrabandeadas não são de confiança, assim como candidatos a asilo, que não são considerados legítimos porque tiveram de pagar para chegar onde chegaram.  Há dois anos um famoso político sueco disse: “deveríamos deportar todos os candidatos a asilo que foram contrabandeados para a Suécia”. Isso é contra todas as convenções de refugiados ou de direitos humanos. Se você é candidato a asilo, não importa se você chegou legal ou ilegalmente.

É possível traçar a origem dessa criminalização?

No início dos anos 1990, as pessoas passaram a discutir imigração em termos de segurança. Antes disso, era discutida em termos de demografia, mobilidade. Mas desde então, vemos uma conexão entre segurança de Estado e imigração. Você cria atos criminosos e cria grupos criminosos, assim como foi com a homossexualidade e com a pobreza, que sofreram punições durante a história. Os sem documentos acabaram de entrar nessa categoria. Eles não apenas não são cidadãos, como são uma ameaça aos cidadãos. Se você olhar historicamente para o que aconteceu com outros grupos marginalizados, você vê similaridades no tratamento dado hoje aos não-documentados.
Isso é algo que acompanha o crescimento econômico? Estou falando aqui especificamente do Brasil, que se tornou um pólo de imigração. Há casos recentes de haitianos sem documentação.
Crescimento econômico tem a ver com mobilidade de capital, commodities e empregos. Mas não com a mobilidade de trabalhadores. Veja que esse crescimento estimula e criminaliza a imigração ao mesmo tempo. O Brasil precisa de trabalhadores de outros países, e isso você também vê no Irã, na Malásia. São países que precisam de mão de obra barata, mas ao mesmo tempo têm de mostrar sua soberania e dizer que controlam as fronteiras. Na Malásia eles deportam gente de vez em quando para o Vietnã, para a Indonésia, mas eles sabem que vão voltar no dia seguinte. No Irã, eles deportam afegãos, que chegam a voltar no mesmo dia. Há demanda pela mão de obra deles. O mesmo acontece no Brasil. O crescimento econômico e o desenvolvimento têm tudo a ver com imigração. Veja, a Europa discute hoje a ajuda econômica para países pobres com o intuito de interromper a migração. Isso é nonsense! Há evidências que mostram que projetos de desenvolvimento na verdade causam imigração.

Como?
Acontece de várias maneiras. Primeiro, esses Estados estão construindo prédios, barragens, estradas, e isso força as pessoas a se mudarem e, em muitos casos, destrói a economia local. Agricultores são obrigados a procurar trabalhos em grandes cidades ou em outros países. Você vê no México, onde o desenvolvimento econômico trouxe o colapso da produção local, o que levou as pessoas a migrarem para os Estados Unidos. Então por isso não é tão simples quando um político diz que é só mandar dinheiro para interromper os fluxos de migração. Não. Não é assim.

Imigração causa desemprego?
Sim e não. Se você olhar para migrantes sem documentos, não existe competição. As condições de trabalho dos não-documentados requerem uma flexibilidade extrema, que nenhum outro trabalhador legal aceitaria. Você trabalha hoje e não sabe se tem emprego amanhã, o empregador cria suas próprias regras. Não é o mesmo tipo de emprego que os locais aceitariam. Por outro lado, claro que há o impacto da migração em acordos coletivos entre empregadores e empregados, mas acho que esse discurso, acima de tudo, é um mito. Senão não teríamos a situação que temos hoje, com 12 milhões de mexicanos não-documentados nos Estados Unidos. Se não houvesse demanda, esse número não existiria. É preciso lembrar também que o discurso não passa de um jeito de criar sentimentos anti-imigração. Nos anos 1980, por exemplo, lembro de pessoas dizendo que imigrantes vinham à Suécia para tomar empregos. Hoje, eles reclamam que imigrantes vão à Suécia ou outros países e não trabalham! Que vivem à custa de benefícios sociais. Ou seja, se trabalham é um problema. Se não trabalham, também é problema. Aliás, é interessante notar como isso não se trata apenas de emprego, mas de mulheres também. A sexualidade também é um problema. Um tempo atrás diziam que o imigrante tomava empregos e as mulheres suecas. Hoje, eles reclamam que os imigrantes trazem consigo suas mulheres de seus países – Paquistão, Somália, Irã. Isso significa que tudo o que fazem, no final das contas, é um problema.

Então como ele se sustenta? Racismo?
Temos diferentes tipos de sentimentos anti-imigração. O primeiro é falta de informação. Você não sabe quem são as pessoas, não sabe o que fazem, se trabalham ou não, você só tem uma ideia. O que você ouve da mídia alimenta isso, e a solução é informação, claro. Mas há um sentimento anti-imigração ainda mais forte, que não tem a ver com falta de informação, mas com racismo. As pessoas têm bastante informação sobre migração e mesmo assim odeiam migrantes. Isso é outra coisa. Não é cognitivo, é racismo. Por exemplo, não importa se muçulmanos na Europa têm emprego, nem se falam a língua fluentemente, eles são odiados simplesmente por serem muçulmanos.

Nesse sentido, que resultado o sr. vê da Primavera Árabe e a reestruturação de fronteiras depois desses eventos?
Temos visto um aumento no número de migrantes cruzando o Mar Mediterrâneo depois da Primavera Árabe. Ano passado, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), 1.500 pessoas se afogaram no Mediterrâneo a caminho da Europa. Se você olhar para números no passado, eram em torno de 700 ao ano. Mais que dobrou. É evidente que a Primavera Árabe causou mais migrações, agora a pergunta é: quem são essas pessoas? Eles não são líbios ou egípcios, mas sim de países sub-saarianos, como a Somália, que viviam nos países em que ocorreram as revoluções. Com a queda de Muammar Kadafi, há evidências de brutalidade extrema e racismo contra os grupos migrantes. Essas pessoas foram forçadas à escravidão, foram estupradas, foram acusadas de ajudar o regime e foram mortas por causa disso. Essas pessoas não têm escolha a não ser fugir da Líbia. Esse é um caso. Outros grupos, claro, são de pessoas pobres que não têm como viver no Egito, na Tunísia ou na Líbia. Outro ponto é que, com a Primavera Árabe, os acordos de colaboração entre esses países para controle de fronteira desapareceram. Kadafi tinha ótimo relacionamento com o governo de Silvio Berlusconi, na Itália, e tinham controles de fronteira que funcionavam. Agora que Kadafi se foi, o acordo também caiu. As pessoas acham que podem tentar agora, aproveitar a brecha.

Em seu livro, o sr. detalha como deixou o Irã sem documentos. Como é tomar a decisão de migrar? O sr. tinha escolha?
Você sempre tem escolha. Você pode ficar e ser morto, você pode ficar e ser pobre, você pode ficar e ser preso. Claro que você pode fazer isso. Mas quando olha para as opções que tem, acaba se perguntando: devo ir para a guerra ou devo buscar um futuro melhor para meus filhosÉ bastante complexo. Migração é um produto, ela tem todo um processo. E todo mundo faz isso. Suecos fazem! Eles pensam: aqui é muito frio, muito escuro, vou para a Tailândia. Bom, o segundo passo do processo, depois de avaliar o que fazer, é tomar a decisão. Depende do contexto, se é por causa da guerra, da pobreza, se é porque é perigoso ficar. No meu caso, não havia tradição de migração, o que tornou a decisão muito mais difícil. O contexto é bastante importante. História e contexto social vão dizer se a decisão é mais fácil ou difícil.

Qual o sentimento ao tomar a decisão?
Existe um sentimento de culpa. Você deixa seus pais, amigos, família e vai. A sensação é de vergonha. Você pode discutir imigração em termos de culpa e vergonha. Elas são parte do processo de decisão. Muita gente não vai embora por causa disso, não conseguem agüentar a culpa e a vergonha de deixar gente para trás.

O sr. poderia descrever sua experiência nas áreas de imigrantes? Em seu livro, fica clara a extrema desconfiança de tudo e de todos.
Você não pode confiar nas pessoas por causa da deportabilidade. Para esta discussão é preciso trazer o conceito de rede social e imigração, que andam de mãos dadas. Imigração cria redes que a facilitam. Para sobreviver, todos dependem dela para ter casa, para comer, para trabalhar. A primeira coisa é tentar encontrar amigos, gente de seu próprio país, gente na mesma situação que a sua para ajudar. Fazer uma rede de pessoas é crucial. É preciso lembrar, porém, que uma rede étnica não quer dizer que haja solidariedade étnica. Gente de seu país pode te explorar bastante. Mas você não tem escolha. É difícil. Encontrar informação hoje é bem diferente do passado. A internet e os celulares, por exemplo. Aliás, os celulares desempenham um papel crucial para os imigrantes. Os aparelhos são o único canal pelo qual conseguem informação, dizem onde estão e pedem ajuda.

E as polícias de fronteira? O sr. relata diversos casos de corrupção. Como isso funciona?
Conheci vários imigrantes na Ásia que tinham mais medo da polícia e do exército do que de contrabandistas e grupos criminosos, porque eles são corruptos. Vi policiais corruptos que tomam seu dinheiro para você passar. Os contrabandistas não conseguem trabalhar sem essa colaboração nas fronteiras. Eles estão, em muitos casos, envolvidos no contrabando de pessoas. E não estou falando apenas de países pobres, mas em muitos países europeus há casos em que policiais vendem passaportes para contrabandistas. A corrupção está lá. É uma mina de ouro.