sábado, 28 de abril de 2012

Por que o Brasil precisa das cotas

Políticas anti-discriminatórias vão muito além de reparar injustiças. Libertam país de laços que nos prendem a segregação, violência e privilégios
Por Luiz Felipe de Alencastro*
A importância histórica de certos fatos não é compreendida de imediato pelos que os testemunham. A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), que ontem derrotou, por onze votos a zero, a tentativa de anular as cotas para negros nas universidades é, provavelmente, um deles – por pelo menos dois motivos.
Primeiro, a rapidez com que foram superadas as visões mais preconceituosas sobre o tema. Há cerca de cinco anos, quando as políticas de reserva de vagas começaram a ser adotadas, um coro de condenações e desprezo erguia-se contra elas, na velha mídia – e não só lá. Nos jornais e TVs, “intelectuais” como Ali Kamel e Demétrio Magnoli tinham todo espaço para afirmar que as novas medidas iriam introduzir… racismo e discriminação no Brasil! A oposição espalhava-se pela classe média e a agressividade contra as cotas atingia (embora minoritária) as próprias universidades públicas. Em muito pouco tempo, porém, estas manifestações de superficialidade e histeria foram se dissipando. O conjunto de fatores que provocou a mudança inclui os expressivos resultados acadêmicos alcançados pelos cotistas, a emergência das periferias como sujeito social e político ativo e influente e o declínio dos antigos “formadores de opinião” – classe média e mídia conservadoras em primeiro lugar.
O segundo motivo é analisado em detalhes, no texto abaixo, por um mestre. Autor, entre outros, de O Trato dos Viventes e Introdução ao Brasil – um banquete nos trópicos, organizador do segundo volume da História da Vida Privada no BrasilLuiz Felipe Alencastro é um dos autores brilhantes da historiografia brasileira contemporânea. Um dos focos de seus estudos são, precisamente, as relações entre Brasil e África e como elas marcaram o país, desde a Colônia até o presente.
Em março de 2010, Alencastro foi convidado a depor, numa das audiências públicas que o STF promoveu sobre as cotas. Sintética, erudita e elegante, sua intervenção destaca dois aspectos cruciais: a) A discriminação dos afrodescendentes está na raiz de fenômenos que deformam nossa sociedade até hoje – entre eles, impunidade, violência policial e negação dos direitos e da cidadania; b) Os avanços materiais e culturais vividos no século XX não foram capazes de superar esta nódoa. Um século depois de abolida a escravidão, as estatísticas demonstram que o abismo de desigualdade entre brancos e negros não se fecha por si mesmo.
Uma terceira conclusão, natural, é negar o fatalismo. Os seres humanos não estão condenados a se submeter às heranças que infelicitam seu presente, nem a esperar que forças mágicas (o mercado?) as corrijam. É possível construir agora as políticas das transformação. As cotas são um caminho real. Os que as negam o fazem sob argumentos risíveis, que disfarçam muito mal a defesa de seus privilégios. A transcrição do depoimento de Alencastro vem a seguir. (A.M.)
No presente ano de 2010, os brasileiros afro-descendentes, os cidadãos que se auto-definem como pretos e pardos no recenseamento nacional, passam a formar a maioria da população do país. A partir de agora, na conceituação consolidada em décadas de pesquisas e de análises metodológicas do IBGE, mais da metade dos brasileiros são negros.
Esta mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado, sobre quem somos e de onde viemos, e traz também desafios para o nosso futuro.
Minha fala tentará juntar os dois aspectos do problema, partindo de um  resumo histórico para chegar à atualidade e ao julgamento que nos ocupa. Os  ensinamentos sobre nosso passado, referem-se à densa presença da população negra na formação do povo brasileiro. Todos nós sabemos que esta presença originou-se e desenvolveu-se na violência. Contudo, a extensão e o impacto do escravismo não tem sido suficientemente sublinhada.  A petição inicial de ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, semelhante a Ação Direta de Inconstitucionalidade, ver Wikipedia] apresentada pelo DEM a esta Corte fala genericamente sobre “o racismo e a opção pela escravidão negra” (pp. 37-40), sem considerar a especificidade do escravismo em nosso país.
Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor – perto de 560 mil africanos – ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlântico.[1] No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.
Durante estes três séculos, vieram para este lado do Atlântico milhões de africanos que, em meio à miséria e ao sofrimento, tiveram coragem e esperança para constituir as famílias e as culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro. Arrancados para sempre de suas famílias, de sua aldeia, de seu continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros e, em seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os trouxeram acorrentados em navios arvorando o auriverde pendão de nossa terra, como narram estrofes menos lembradas do poema de Castro Alves.
No século XIX, o Império do Brasil aparece ainda como a única nação independente que praticava o tráfico negreiro em larga escala. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados internacionais que a Inglaterra teceu no Atlântico. [2]
O tratado anglo-português de 1818 vetava o tráfico no norte do equador. Na sequência do tratado anglo-brasileiro de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831, proibiu a totalidade do comércio atlântico de africanos no Brasil.
Entretanto, 50 mil africanos oriundos do norte do Equador são ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710 mil indivíduos, vindos de todas as partes da África, são trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino. Ora, da mesma forma que o tratado de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no país após a proibição. Em consequência, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do “Código Criminal”, de 1830, que punia o ato de “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade”. A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da África. Tais penalidades são reiteradas no artigo 4° da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei Eusébio de Queirós que acabou definitivamente com o tráfico negreiro.
Porém, na década de 1850, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de sequestro, mas deixou livre curso ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.[3] De golpe, os 760 mil africanos desembarcados até 1856, e a totalidade de seus descendentes, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888[4]. Para que não estourassem rebeliões de escravos e de gente ilegalmente escravizada, para que a ilegalidade da posse de cada senhor, de cada sequestrador, não se transformasse em insegurança coletiva dos proprietários, de seus sócios e credores, abalando todo o país, era preciso que vigorasse um conluio geral, um pacto implícito em favor da violação da lei. Um pacto fundado nos “interesses coletivos da sociedade”, como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco.
O tema subjaz aos debates da época. O próprio Joaquim Nabuco, que está sendo homenageado neste ano do centenário de sua morte, escrevia com todas as letras em “O Abolicionismo” (1883): “Durante cinquenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa”[5].
Tal “tribunal escrupuloso” jamais instaurou-se nas cortes judiciárias, nem tampouco na historiografia do país. Tirante as ações impetradas por um certo número de advogados e magistrados abolicionistas, o assunto permaneceu encoberto na época e foi praticamente ignorado pelas gerações seguintes.
Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático: ao arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 – e todos os seus descendentes – foram mantidos na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda, primeiro e sobretudo ilegal. Como escrevi, tenho para mim que este pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.[6]
Firmava-se duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.
Outra deformidade gerada pelos “males que a escravidão criou”, para retomar uma expressão de Joaquim Nabuco, refere-se à violência policial.
Para expor o assunto, volto ao século XIX, abordando um ponto da história do direito penal que os ministros desta Corte conhecem bem e que peço a permissão para relembrar.
Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao state building, à organização das instituições nacionais. Houve, assim, uma modernização do escravismo para adequá-lo ao direito positivo e às novas normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e as liberdades públicas. Entre as múltiplas contradições engendradas por esta situação, uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena prisão?
Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois tempos. Primeiro, a  Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a extinção das punições físicas constantes nas aplicações penais portuguesas. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”; a Constituição também prescrevia: “as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”.
Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.
Num segundo tempo, o Código Criminal de 1830 tratou especificamente da prisão dos escravos, os quais representavam uma forte proporção de habitantes do Império. No seu artigo 60, o Código reatualiza a pena de tortura. “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de 50”. Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema.
Longe de restringir-se ao campo, a escravidão também se arraigava nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110 mil escravos entre seus 266 mil habitantes, reunindo a maior concentração urbana de escravos da época moderna. Neste quadro social, a questão da segurança pública e da criminalidade assumia um viés específico.[7] De maneira mais eficaz que a prisão, o terror, a ameaça do açoite em público, servia para intimidar os escravos.
Oficializada até o final do Império, esta prática punitiva estendeu-se às camadas desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto com a privatização da justiça efetuada no campo pelos fazendeiros, tais procedimentos travaram o advento de uma política de segurança pública fundada nos princípios da liberdade individual e dos direitos humanos.
Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta diretamente o estatuto da cidadania.
É sabido que nas eleições censitárias de dois graus ocorrendo no Império, até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros e mulatos alforriados, podiam ser votantes, isto é, eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de 2° grau (cerca de 20 mil homens, em 1870), os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado. Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava criar um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos. Gerou-se um estatuto de infra-cidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos analfabetos brasileiros, brancos e negros, foi atingido.[8] Mas a exclusão política foi mais impactante na população negra, onde o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente bem mais altas do que entre os brancos.[9]
Pelos motivos apontados acima, os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema político de nosso país. Nascidas no século XIX, a partir da impunidade garantida aos proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da violência e das torturas infligidas aos escravos e da infra-cidadania reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro.
Por isso, agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afrobrasileiros – hoje majoritários no seio da população – consolidará nossa democracia.
Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica, como foi o caso, em boa medida, nos memoráveis julgamentos desta Corte sobre a demarcação das terras indígenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação. Tais são os desafios que as cotas raciais universitárias colocam ao nosso presente e ao nosso futuro.
Atacando as cotas universitárias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto 3 o seguinte título “o perigo da importação de modelos : os exemplos de Ruanda e dos Estados Unidos da América” (pps. 41-43). Trata-se de uma comparação absurda no primeiro caso e inepta no segundo.
Qual o paralelo entre o Brasil e Ruanda, que alcançou a independência apenas em 1962 e viu-se envolvido, desde 1990, numa conflagração generalizada que os especialistas denominam a “primeira guerra mundial africana”, implicando também o Burundi, Uganda, Angola, o Congo Kinsasha e o Zimbábue, e que culminou, em 1994, com o genocídio de quase 1 milhão de tutsis e milhares de hutus ruandenses ?
Na comparação com os Estados Unidos, a alegação é inepta por duas razões. Primeiro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo e servem de exemplo a instituições que consolidaram o sistema político no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF – vosso STF – são calcados no modelo americano. Não há nada de “perigoso” na importação de práticas americanas que possam reforçar nossa democracia. A segunda razão da inépcia reside no fato de que o movimento negro e a defesa dos direitos dos ex-escravos e afrodescendentes tem, como ficou dito acima, raízes profundas na história nacional. Desde o século XIX, magistrados e advogados brancos e negros têm tido um papel fundamental nesta reivindicações.
Assim, ao contrário do que se tem dito e escrito, a discussão relançada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades raciais é muito mais o resultado da atualização das estatísticas sociais brasileiras, num contexto de lutas democráticas contra a ditadura, do que uma propalada “americanização” do debate sobre a discriminação racial em nosso país. Aliás, foram estas mesmas circunstâncias que suscitaram, na mesma época, os questionamentos sobre a distribuição da renda no quadro do alegado “milagre econômico”. Havia, até a realização da primeira PNAD incluindo o critério cor, em 1976, um grande desconhecimento sobre a evolução demográfica e social dos afrodescendentes.
De fato, no Censo de 1950, as estatísticas sobre cor eram limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no Censo de 1970 elas eram inexistentes. Este longo período de eclipse estatística facilitou a difusão da  ideologia da “democracia racial brasileira”, que apregoava de inexistência de discriminação racial no país. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999 e os Censos de 1980, 1991 e 2000, incluíram o critério cor. Constatou-se, então, que no decurso de três décadas, a desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais urbanizada, mais educada e com muito maior renda do que em 1940 e 1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial tinha um caráter estrutural que não se reduzia com progresso econômico e social do país. Daí o adensamento das reivindicações da comunidade negra, apoiadas por vários partidos políticos e por boa parte dos movimentos sociais.
Nesta perspectiva, cabe lembrar que a democracia, a prática democrática, consiste num processo dinâmico, reformado e completado ao longo das décadas pelos legisladores brasileiros, em resposta às aspirações da sociedade e às iniciativas de países pioneiros. Foi somente em 1932 –  ainda assim, com as conhecidas restrições suprimidas em 1946 – que o voto feminino instaurou-se no Brasil. Na época, os setores tradicionalistas alegaram que a capacitação política das mulheres iria dividir as famílias e perturbar a tranquilidade de nação. Pouco a pouco, normas consensuais que impediam a plena cidadania e a realização profissional das mulheres foram sendo reduzidas, segundo o preceito, aplicável também na questão racial, de que se deve tratar de maneira desigual o problema gerado por uma situação desigual.
Para além do caso da política de cotas da UNB, o que está em pauta neste julgamento são, a meu ver, duas questões essenciais.
A primeira é a seguinte: malgrado a inexistência de um quadro legal discriminatório a população afrobrasileira é discriminada nos dias de hoje?
A resposta está retratada nas creches, nas ruas, nas escolas, nas universidades, nas cadeias, nos laudos dos IMLs de todo o Brasil. Não me cabe aqui entrar na análise de estatísticas raciais, sociais e econômicas que serão abordadas por diversos especialistas no âmbito desta Audiência Pública. Observo, entretanto, que a ADPF apresentada pelo DEM, na parte intitulada “A manipulação dos indicadores sociais envolvendo a raça” (pp. 54-59), alinha algumas cifras e cita como única fonte analítica, o livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como é sabido, não é versado no estudo das estatísticas do IBGE, do IPEA, da ONU e das incontáveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que demonstram, maciçamente, a existência de discriminação racial no Brasil.
Dai decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois tempos.  O sistema de promoção social posto em prática desde o final da escravidão poderá eliminar as desigualdades que cercam os afrobrasileiros? A expansão do sistema de bolsas e de cotas pelo critério social provocará uma redução destas desigualdades?
Os dados das PNAD organizados pelo IPEA mostram, ao contrário, que as disparidades se mantém ao longo da última década. Mais ainda, a entrada no ensino superior exacerba a desigualdade racial no Brasil.
Dessa forma, no ensino fundamental (de 7 a 14 anos), a diferença entre brancos e negros começou a diminuir a partir de 1999 e em 2008 a taxa de frequência entre os dois grupos é praticamente a mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente. No ensino médio (de 15 a 17 anos) há uma diferença quase constante desde entre 1992 e 2008. Neste último ano, foram registrados 61,0% de alunos brancos e 42,0% de alunos negros desta mesma faixa etária. Porém, no ensino superior a diferença entre os dois grupos se escancara. Em 2008, nas faixas etárias de brancos maiores de 18 anos de idade, havia 20,5% de estudantes universitários e nas faixas etárias de negros maiores de 18 anos, só 7,7% de estudantes universitários.[10] Patenteia-se que o acesso ao ensino superior constitui um gargalo incontornável para a ascensão social dos negros brasileiros.
Por todas estas razões, reafirmo minha adesão ao sistema de cotas raciais aplicado pela Universidade de Brasília.
Penso que seria uma simplificação apresentar a discussão sobre as cotas raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o governo e a oposição ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito de 1993, sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem atravessa as linhas partidárias e ideológicas. Aliás, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
Como deixei claro, utilizei vários estudos do IPEA para embasar meus argumentos. Ora, tanto o presidente do IPEA no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o professor Roberto Borges Martins, como o presidente do IPEA no segundo governo Lula, o professor Márcio Porchman, colegas por quem tenho respeito e admiração, coordenaram  vários estudos sobre a discriminação racial no Brasil nos dias de hoje e são ambos favoráveis às políticas afirmativas e às políticas de cotas raciais.
A existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo num ano de eleições, a um debate menos ideologizado, onde os argumentos de uns e de outros possam ser analisados a fim de contribuir para a  superação da desigualdade racial que pesa sobre os negros e a democracia brasileira.
* Luís Felipe Alencastro é Cientista Político e Historiador, Professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne

[1].Ver o Database da Universidade de Harvard acessível no sítio
[2]. Demonstrando um grande desconhecimento da história pátria e superficialidade em sua argumentação, a petição do DEM afirma na página 35: “Por que não direcionamos a Portugal e à Inglaterra a indenização a ser devida aos afrodescendentes, já que foram os portugueses e os ingleses quem organizaram o tráfico de escravos e a escravidão no Brasil?”. Como é amplamente conhecido, os ingleses não tiveram participação no escravismo brasileiro, visto que o tráfico negreiro constituía-se como um monopólio português, com ativa participação brasileira no século XIX. Bem ao contrário, por razões que não cabe desenvolver neste texto, a Inglaterra teve um papel decisivo na extinção do tráfico negreiro para o Brasil
[3]. A. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico, Jurídico, Social (1867), Vozes, Petrópolis, R.J., 1976, 2 vols. , v. 1, pp. 201-222. Numa mensagem confidencial ao presidente da província de São Paulo, em 1854, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, invoca “os interesses coletivos da sociedade”, para não aplicar a lei de 1831, prevendo a liberdade dos africanos introduzidos após esta data, Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império (1897-1899), Topbooks, Rio de Janeiro, 1997, 2 vols., v. 1, p. 229, n. 6
[4] . Beatriz G. Mamigonian, comunicação no seminário do Centre d’Études du Brésil et de l’Atlantique Sud, Université de Paris IV Sorbonne, 21/11/2006; D.Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Oxford University Press, Oxford, U.K. 1989, appendix A, pp. 234-244.
[5] . Joaquim Nabuco, O Abolicionismo (1883), ed. Vozes, Petrópolis, R.J., 1977, pp 115-120, 189. Quinze anos depois, confirmando a importância primordial do tráfico de africanos  e da na reprodução desterritorializada da produção escravista, Nabuco afirma que foi mais fácil abolir a escravidão em 1888, do que fazer cumprir a lei de 1831, id., Um Estadista do Império (1897-1899), Rio de Janeiro, Topbooks,1997, 2 vols., v. 1, p. 228.
[6] . L.F. de Alencastro, “A desmemória e o recalque do crime na política brasileira”, in Adauto Novaes,O Esquecimento da Política, Agir Editora, Rio de Janeiro, 2007, pp. 321-334.
[7] . Luiz Felipe de Alencastro, “Proletários e Escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro 1850-1870”, in Novos Estudos Cebrap, n. 21, 1988, pp. 30-56;
[8] . Elza Berquó e L.F. de Alencastro, “A Emergência do Voto Negro”, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, nº33, 1992, pp.77-88.
[9] . O censo de 1980 mostrava que o índice de indivíduos maiores de cinco anos “sem instrução ou com menos de 1 ano de instrução” era de 47,3% entre os pretos, 47,6% entre os pardos e 25,1% entre os brancos. A desproporção reduziu-se em seguida, mas não tem se modificado nos últimos 20 anos. Segundo as PNADs, em 1992, verificava-se que na população maior de 15 anos, os brancos analfabetos representavam 4,0% e os negros 6,1%, em 2008 as taxas eram, respectivamente de 6,5% e 8,3%. O aumento das taxas de analfabetos provém, em boa parte, do fato que a partir de 2004, as PNADs passa a incorporar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas,Roraima, Pará e Amapá. Dados extraídos das tabelas do IPEA.
[10] . Dados fornecidos pelo pesquisador do IPEA, Mario Lisboa Theodoro, que também participa desta Audiência Pública.


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Aumento da tarifa do transporte urbano: protestos e subsídios

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Por Leonardo M. de Mesentier

O sistema de transporte é fundamental para o dinamismo das cidades, porque a vantagem da vida urbana decorre da possibilidade de contato entre atividades e pessoas. Essa possibilidade de contato permite o desenvolvimento da divisão social do trabalho; permite também que as empresas encontrem trabalhadores para contratar e mercado para seus produtos; que as famílias tenham acesso a bens e serviços variados; e apresenta como resultado mais geral efeitos de produtividade e bem estar.
Como não é possível colocar todas as atividades juntas no mesmo lugar, o limite físico para proximidade é compensado pelo sistema de transporte. Assim, os processos de circulação nas cidades, à semelhança da circulação sanguínea, são os responsáveis pela vascularização do tecido urbano. A vitalidade da cidade depende dessa circulação; depende, portanto, do sistema de transporte.
Para o conjunto da cidade, quanto mais rápidos e baratos os deslocamentos, maiores e mais fáceis serão as interações entre as atividades produtivas, famílias e pessoas. É inquestionável que se numa cidade, onde o deslocamento no transito se faz a 20km/h, se conseguisse elevar essa velocidade para 40km/h, haveria uma enorme economia em combustível, de mão de obra e uma redução no tempo real de produção de todos os produtos, com reflexos positivos na produtividade geral das empresas e no bem estar das famílias naquela cidade.
Consequentemente, um sistema de transporte mais eficiente e mais barato leva a uma maior produtividade urbana e maiores efeitos de bem estar na cidade. Assim, um sistema de transporte barato e eficiente é essencial. Considerando que a maior parte e a parte mais dinâmica da economia do país estão nas metrópoles e grandes cidades, então a questão dos transportes é decisiva também para o país.
Dentro do sistema de transporte urbano, o sistema de transporte coletivo público ocupa um lugar de destaque. Na medida em que, com o crescimento das cidades, os deslocamentos a longas distâncias tornaram-se uma imposição da vida urbana, o sistema de transporte coletivo público tornou-se essencial: se todos se deslocassem usando automóveis as metrópoles e grandes cidades se tornariam inviáveis de tão lentas.
Todas as reflexões contemporâneas apontam a expansão do sistema de transportes coletivos públicos como um caminho para as cidades, seja pelos benefícios à produtividade urbana, seja por razões ambientais, seja pelos ganhos de bem estar coletivos que podem ser alcançados, como redução dos desgastes nos deslocamentos diários, favorecimento da sociabilidade urbana e tantos outros que podem ser proporcionados pelo sistema de transporte coletivo público.
Transporte insatisfatório e tarifas caras além de inibir os deslocamentos dos usuários do transporte coletivo público, induz as camadas de maior renda a usar o transporte particular, o automóvel. O resultado é o aumento dos congestionamentos de trânsito. Mas o congestionamento também piora o deslocamento dos ônibus e do transporte de carga nas cidades, com perda geral de capacidade de circulação, queda da produtividade urbana, piora nas condições de bem estar nas cidades e maior dano ao meio ambiente.
Há uma inquestionável contradição entre o interesse das empresas concessionárias de transporte público em obter lucro máximo e reduzir custos com a qualidade dos serviços e, por outro lado, o interesse das cidades em menores tarifas na melhor qualidade possível do transporte coletivo público.
Como os transportes coletivos públicos são concessões de serviços públicos e não se submetem as situações de concorrência, como as outras mercadorias, a qualidade do serviço prestado é fiscalizada e os preços dos transportes coletivos públicos são preços administrados pelo Poder Público; quer dizer, para que haja aumento de preços esse aumento tem que ser aprovado pelos órgãos de regulação do Estado.
A perspectiva então deveria ser a de que a interferência das diferentes esferas do Poder Público se desse no sentido de um controle de preços e melhoria da qualidade do serviço, para o benéfico das cidades. O que, no entanto, não vem acontecendo.
Entre as razões que explicam essa incapacidade generalizada do Poder Público de enfrentamento da questão do sistema de transportes, não pode ser descartada da consideração a capacidade que as empresas de transporte tem de exercer pressão sobre o sistema político. Ainda que concessionárias de serviços públicos não possam fazer doações de campanha, as empresas que são donas das empresas concessionárias podem fazer essas doações eleitorais. Em muitos casos, estão nessa situação bancos e grandes empreiteiras de obras públicas, que são importantes doadoras de campanha. Os “doadores eleitorais” tem significativa capacidade de pressão sobre todo o sistema político e, consequentemente, sobre a fiscalização e os preços administrados pelo Estado.
Deste modo, no caso brasileiro, as tarifas dos transportes coletivo público tem aumentado, expressivamente, acima da inflação e os preços dos transportes elevam os indicadores de inflação o que pressiona os preços dos transportes, constituindo um circulo vicioso que se realimenta.
No Rio de Janeiro, após a privatização, barcas, metrô e trens tiveram reajustes nos preços das passagens que, além de compensar a inflação, adicionaram ao valor da tarifa aumentos superiores a 150% acima da inflação; e os ônibus acompanharam para manter a relação entre as tarifas dos diferentes modais de transporte. Para ilustrar vale dizer que alguns cálculos indicam que, com o mais recente aumento, o valor da tarifa adotado para as barcas entre o Rio de Janeiro e Niterói, torna o custo de deslocamento nas barcas mais caro que um passeio em cruzeiro marítimo, seja considerando o custo por quilometro ou por tempo de deslocamento.
As consequências sociais desses sucessivos aumentos vão desde o aumento da população vivendo em condições de rua – pois para uma parte dos cidadãos, o peso da tarifa no orçamento familiar torna inviável o deslocamento diário, ficando restrito aos fins de semana o retorno para casa e ao convívio com a família – até o aumento dos protestos dos movimentos sociais em relação aos custos das tarifas e a qualidade dos serviços oferecidos.
No último ano há noticias de protestos contra aumento de tarifas de transporte em São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em Belo Horizonte, Vitória, Florianópolis, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza, Teresina, São Luis, Belém, Manaus, Macapá, Boa Vista, Rio Branco, Porto Velho, Goiânia, Corumbá, Campo Grande, Tocantins; e ainda Joinvile, Uberlândia, Passo Fundo, Sete Lagoas, Timon e possivelmente mais outras.
Fica mais fácil ainda compreender essa insatisfação quando se considera que a maior causa de perda do poder de compra dos salários tem sido o aumento do preço das tarifas urbanas. Na proporção em que as tarifas aumentam mais que os salários, as dificuldades ao deslocamento alcançam uma parcela cada vez maior dos trabalhadores, a insatisfação social com os transportes aumenta e ganha relevância política. A solução encontrada pelo Poder Público para enfrentar a combinação de serviços ruins com os sucessivos aumentos das tarifas, tem sido a geração de diferentes formas de subsídios ao sistema de transporte: do vale transporte ao bilhete único.
O subsidio é uma de redistribuição de riqueza onde o Estado atua como árbitro, deslocando a riqueza de um setor da economia para outro, dizendo quem vai ganhar e quem vai perder. No caso dos transportes, o Estado, através de impostos, coleta renda de todas as famílias e empresas para o subsídio que viabiliza o preço da tarifa e a demanda efetiva dos serviços oferecidos pelas empresas de transporte garantindo, portanto, o volume e a taxa de lucro dessas empresas.
Um liberal honesto diria que o subsídio é o pior veneno da economia, porque o subsídio distorce os mecanismos de mercado que impulsionam as empresas na busca por eficiência. Para os liberais os subsídios retiram recursos das empresas eficientes para alimentar as incompetentes. Um republicano sincero diria que o subsídio é um absurdo porque significa usar dinheiro público para financiar o lucro privado de uma empresa específica.
De ponto de vista de um ou de outro, o que se pode dizer é que o sistema formado por preços administrados, subsídios às tarifas dos transportes coletivos públicos e doações privadas para campanhas eleitorais pode se tornar um saco sem fundo, capaz gerar imprevisíveis distorções e danos à economia das metrópoles e grandes cidades brasileiras.



Retirado do blog “A cidade e o mundo”:


Leonardo Mesentier é arquiteto, doutor em Planejamento Urbano e Regional com diversos artigos publicados em livros e periódicos científicos sobre desenvolvimento urbano e patrimônio histórico-cultural.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Aculturação pela fé



Por Douglas Naegele

A fé, sempre foi e sempre será, sob nosso ponto de vista, a maior força de convencimento da humanidade. Usada como arma de dominação e aculturação levou ao fim inúmeras seitas, cultos e religiões primitivas. Portanto, podemos afirmar que, muitas vezes onde as armas convencionais não penetraram, a fonte inesgotável de consolo e amor fez porto e assegurou a criação de um novo mercado de consumo e fornecimento de mão-de-obra barata, e até escrava. Os nativos brasileiros, os africanos escravizados, e outras tantas civilizações, são prova irrefutável dessa prática.

Conflitos iniciais

No Brasil, como em todo o globo terrestre, antes da chegada dos europeus, os povos nativos mantinham sua cultura própria, bem como seguiam rituais totêmicos ancestrais. A dominação européia os fez, pela força das armas e da fé, abandonar sistematicamente suas origens. Os povos africanos escravizados, chegados posteriormente, sofreram a mesma intervenção. Entretanto, a prática dos rituais ancestrais, tanto nativos, quanto africanos, resistiu a todas as tentativas de extermínio, pois até mesmo os afro-descendentes que se cristianizaram, através da conversão forçada, ou não, mantinham singela relação com os deuses ancestrais. Tanto que nasce dessa relação, somada às praticas dos cultos totêmicos dos nativos brasileiros, o sincretismo entre os deuses ancestrais e o panteão de santos católico-romanos.
O candomblé, apesar de duramente combatido, assim como os cultos sincréticos (umbanda, quimbanda, macumba e xangô), sobreviveu e, de certo modo, se fortaleceu. Tanto o é que, na soma de inúmeras personificações divinizadas, os orixás, por fim, se tornaram unânimes nos terreiros em todo o território brasileiro. Sendo assim, os rituais ancestrais africanos que eram comuns nas senzalas, eram mais livremente praticados nos quilombos, sendo de conhecimento de todos os afro-descendentes escravizados, com isso, ao menos podemos suspeitar, e talvez até afirmar, que, os fugitivos do cativeiro, mesmo cristianizados, tendo como destino os quilombos, poderiam esperar o conforto espiritual de seus deuses ancestrais, os orixás.
Ao longo do tempo, séculos a fio, comunidades afro-descendentes se constituíram nas encostas dos morros e em alguns casos fixaram-se nas periferias. Primeiramente como quilombos (nas encostas dos morros), depois, acrescidas de famílias brancas e miscigenadas, pobres e desabrigadas pelos interesses dos mais abastados, transformaram-se no que ficou conhecido com o nome de “favelas”. Tais comunidades, invariavelmente, comportavam em suas vielas um terreiro de candomblé, ou da sincrética umbanda, quando não dois ou três desses templos. Apesar do culto aos deuses ancestrais, a Igreja Católica, através do processo de aculturação, acabou por se fixar também nessas comunidades, nem tanto pela solicitação dos moradores, mas pela imposição e a perseguição às seitas afro-brasileiras.
No final do século XIX, as denominações protestantes desembarcaram no Brasil, em número expressivo. Sem encontrar eco junto às classes mais abastadas, profundamente arraigadas às crenças católicas, elas acabam por atingir um público originário, em sua maioria, das classes trabalhadoras. Operários de origem européia, pequenos comerciantes (ingleses e estadunidenses), agricultores (principalmente alemães), profissionais liberais e trabalhadores autônomos formarão o núcleo desenvolvedor que irradiará as idéias protestantes no solo brasileiro. Os primeiros adeptos fora do círculo de fiéis originais foram os vizinhos e empregados, mas principalmente esses últimos. Moradores de comunidades de pouco poder aquisitivo, ou das periferias, os empregados convertidos transmitem a “verdade” protestante aos seus amigos, parentes e vizinhos. E deste modo as denominações reformadas espalham-se por estas comunidades e periferias, sem, contudo, causarem um grande impacto na freqüência da Igreja Católica ou dos terreiros.

Convencimento

Conservadoras, as igrejas cristãs, tanto católicas quanto reformadas, mantinham-se fiéis ao poder vigente. Fato esse que não se repetia necessariamente entre os cultos de origem africana e sincretistas, por serem combatidos pelas autoridades. Teoricamente, o país era, desde a Proclamação da República, laico. Todavia, a perseguição imposta aos terreiros de candomblé e de umbanda, baseava-se na suposição de que estes eram freqüentados por “capoeiras”, prostitutas e “marginais de toda espécie”, o que, obviamente, era verdade, mesmo porque eram nas favelas e na periferia que os marginalizados encontravam abrigo. Isso não quer dizer, necessariamente, que famílias de trabalhadores não freqüentassem os terreiros, muito ao contrário. A grande maioria das famílias residentes nestas comunidades mantinha o que podemos chamar de “vida dupla”, ou dupla devoção. Portanto, durante as noites de segunda a sexta-feira dedicava a fé ao culto dos orixás, caboclos e guias, e aos domingos faziam suas preces nas igrejas católicas. . Fato marcante, expoente do sincretismo brasileiro, estava no batismo do recém-nascido, pois até mesmo os mais fervorosos devotos, incluindo aí os babalorixás e “pais-de-santos”, insistiam na prática cristã do batismo.
Nesse esteio, sob os auspiciosos olhos da lei, o batuque das senzalas, agora dando o ritmo dos terreiros, dá a luz a uma efervescente vida cultural, festas e reuniões sociais aconteciam nos mesmos lugares dos cultos de origem africana. E é dessa raiz que nasce o samba, o qual também será perseguido pelas mesmas acusações que cabiam aos terreiros de candomblé e de umbanda. E da força do samba, brotam as Escolas de Samba que, mantendo uma estreita afinidade com os terreiros, serão em pouco tempo catalisadoras de toda a vida cultural e social dessas comunidades.
Todavia, num processo que levaria décadas para se finalizar, as favelas e as comunidades periféricas, redutos naturais do samba e dos cultos de origem africana e sincréticos, dariam espaço ao mais lento e gradativo processo de aculturação sofrida por um setor de uma sociedade que desenvolveu seu próprio meio de expressão religioso e cultural.
Na segunda metade do século XX, mais precisamente na década de 1960, as comunidades foram invadidas com a massificação dos ritmos estrangeiros que inundaram as rádios populares. Esses ritmos passaram a dividir o gosto das camadas menos favorecidas de nossa sociedade, principalmente da juventude, já influenciada de certa forma pelo imaginário hollywoodiano do cinema. Coincidentemente, foi no ano de 1960, que o pastor Robert McAlister, passou a ministrar cultos pelo rádio, onde pregava abertamente a cura espiritual e financeira, que ele associava a possessão dos demônios, nascia em território brasileiro o gérmen da Teologia da Prosperidade. Era o início da era dos pastores eletrônicos, que ganharia os lares nacionais nas décadas seguites. Em 1968, McAlister, publica um folheto intitulado: “Mãe-de-Santo: História e testemunho de Georgina Aragão dos Santos Franco - a verdade sobre o candomblé e a umbanda”, em que contava a trajetória de D. Georgina, dos cultos afro-brasileiros até à conversão ao cristianismo neo-pentecostal de McAlister.
As Escolas de Samba, que funcionavam como pólo aglutinador de cultura e vida social das comunidades periféricas e das favelas, desde a década de 1960, acolheram dentro de seus quadros de associados pessoas oriundas da classe média e que devido ao melhor poder aquisitivo adquiriam as melhores fantasias e os melhores lugares nas “rodas-de-samba”. Contudo, para a mocidade herdeira das tradições do terreiro, da capoeira e do samba, tais heranças não traziam mais maiores significações. Um afastamento, não percebido, ocorreria sem que os próprios envolvidos se dessem conta, e em pouquíssimo tempo, as tradições seriam consideradas coisas velhas e ultrapassadas. 
Na virada da década de 1970 para a de 1980, os herdeiros do samba, da capoeira e dos atabaques dos terreiros, abandonam, gradativamente, suas heranças e aproximam-se do ideal de consumo levado massiçamente às rádios pelos ritmos estrangeiros e aos televisores, que se tornavam cada vez mais populares, pelos seriados enlatados. Os pais dessa geração, não encontrando mais conforto nas missas dominicais, nem nos cultos ancestrais, migram para a nova visão de relacionamento com Deus propiciado pelas igrejas neo-pentecostais que fizeram assento nas comunidades.
As denominações cristãs tradicionais que fincaram bandeira nas favelas e comunidades periféricas, incluindo a Igreja Católica, vivam um acordo tácito com os terreiros e entre si, onde cada uma das orientações religiosas, mesmo com todas as possíveis afrontas, mantinham-se fora dos caminhos umas das outras. No entanto, já não respondiam mais ao anseio dos fiéis e foram perdendo espaço para o novo tipo de igreja, que além de pelejar contra o Diabo, no mundo espiritual, expulsava-o ao vivo e a cores na televisão!
Rompidos com Robert McAlister, três dos seus mais prodigiosos pregadores, fundaram suas próprias denominações. Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares, seu cunhado, em 1977, fundam a Igreja Universal do Reino de Deus. Pouco depois, Romildo, agora auto-cognominado R.R.Soares, rompe com Macedo e cria sua própria denominação, a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980). Miguel Ângelo da Silva Ferreira, considerado por muitos como o sucessor de McAlister dentro da Igreja Pentecostal de Nova Vida, em 1984, funda a Igreja Cristo Vive. Num brevíssimo espaço de tempo as novas denominações invadem as casas através dos televisores e atraem um impressionante número de fiéis dispostos a darem tudo o que têm para conseguirem a “prosperidade”, expulsando os “demônios da ruína financeira” de suas vidas.
Desenvolvendo-se lado a lado com tudo isso outro fenômeno cresce e atinge, como já dissemos acima, a parcela mais vulnerável de uma sociedade, sua mocidade, que influenciada pelos novos ritmos e pela novidade dos videoclipes sexistas, nos quais, invariavelmente, apareciam membros de gangues armados, cercados de mulheres vulgares e muito dinheiro, com letras que exaltavam o crime, a violência, e o assassinato de policiais. Era um estímulo à “vida bandida” e à cooptação pelas “organizações criminosas” que tomaram as favelas e as comunidades periféricas desassistidas pelas autoridades estatais. Era o que a mídia chamaria de “Poder Paralelo”, que se formava e passaria a ditar as normas de condutas em grande parte dessas comunidades, exercendo o papel do Estado ausente.

A Nova Estrutura

A grande massa de jovens que tomam a atitude de se unirem ao dito “crime organizado”, são em sua maioria, advindos não de famílias desestruturadas pelas drogas ou pelo crime como se pode pensar a princípio, mas são de famílias, de conformação comum, pai, mãe, irmãos, com pouca ou nenhuma instrução, em que o pai “provedor” não recebe o suficiente para dar à família o “conforto” mínimo “necessário”, para os padrões de consumo impostos pelos videoclipes e ostentados pelos “olheiros”, “soldados”, “vapores” e “gerentes” do tráfico.
A oferta de trabalho no “exército do tráfico”, muitas das vezes melhor remunerado que uma profissão sem exigência mínima de escolaridade, fez muitos meninos e meninas das comunidades sonharem em cerrar fileiras com a força impositiva que se assenhoreava dessas localidades. Soma-se a isso, o “respeito” causado pela exibição de forte armamento e a “autoridade” exercida pela hierarquia do tráfico. “Fama, poder e dinheiro” formam a tríade de aliciamento que servirá como pilar das facções criminosas chamadas pela mídia de “Poder Paralelo”.
Ao som do miscigenado “funk”, mistura do batuque afro dos terreiros e da música “Black” estadunidense, recheado por letras enaltecendo os feitos das facções criminosas e de seus líderes, posteriormente conhecido como “Proibidão”, ou apregoando a vulgaridade feminina, uma geração inteira cresce nas vielas. Em contrapartida, a desilusão com as denominações tradicionais, em todos os campos religiosos, levam os pais dessa mesma mocidade em busca de soluções imediatas para seus problemas, como as oferecidas pelas denominações neo-pentecostais. O que irá acontecer paulatinamente é uma migração religiosa jamais vista até então. Cristãos católicos e protestantes de denominações tradicionais, bem como, praticantes e freqüentadores das “tendas espíritas”, claramente motivados pela necessidade econômica, “viram casaca” e convertem-se às denominações neo-pentecostais. Líderes espirituais, ou seja, babalorixás, ialorixás, “pais e mães-de-santos”, surpreendendo até seus fiéis abandonam seus “guias” e orixás para tornarem-se “ovelhas” de um rebanho sedento por milagres financeiros, disposto a doar tudo para receber uma migalha de benção.
No auge dessa onda migratória, incontáveis pequenas denominações brotam nas vielas das comunidades de baixa-renda e favelas. Uma enxurrada de “assembléias de Deus” espraia-se e onde quer que houvesse gente faminta de consolo, uma nova “casa de Deus” surgia.  A década de 1990, período em que a ideologia política e econômica neoliberal toma as rédeas do país, serviu de palco para o que podemos chamar de uma grande inversão de valores, ao menos, nos dois aspectos aqui abordados, o cultural e o religioso.

Conclusão

Motivadas por aquilo que lhes era proposto pelas igrejas neo-pentecostais, ou seja, nova relação com Deus, na qual o fiel tem o “direito” de exigir que Deus lhes abençoe em todos os campos de suas vidas, com maior ênfase na vida financeira. Segundo essa corrente do pensamento teológico, se a vida do crente, em algum momento não estiver plena, isso significa que há uma presença demoníaca “amarrando-a”, com o consentimento de Deus, a fim de que o fiel seja provado em sua devoção ao divino, fazendo um sacrifício, obviamente financeiro, o fiel dá de bom grado o que pode e o que não pode, a fim de sensibilizar a Deus para suas necessidades imediatas. Esse ato de fé cria de imediato as condições para que o crente exija de Deus seus direitos.
Essa nova relação fez com o número de adeptos das denominações neo-pentecostais crescesse ao ponto de fazer com que correntes da antiga teologia pentecostal se “adequassem” e usassem dos mesmos artifícios estratégicos de crescimento apregoados pelas novas denominações. A maior e mais significativa ruptura se deu dentro do seio das Assembléias de Deus, com a saída do Pr. Silas Malafaia das hordas da setuagenária Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil (CGADB), justamente por sua ligação, não somente com as denominações neo-pentecostais, mas principalmente pela adesão total e completa às idéias da Teologia da Prosperidade.
A prosperidade, ou seja, a necessidade econômico-financeira, por fim, suplantou a tradição ancestral mantida desde os tempos coloniais. Os terreiros que haviam sobrevivido às perseguições da Igreja Católica durante os anos da colônia, do Brasil Imperial e dois terços do século XX, sucumbiram à aculturação da fé.
Obviamente, os criadores da Teologia da Prosperidade e seus disseminadores, sequer por algum instante, imaginaram o estrago que suas ideias causariam. Nesse sentido, o terreno propício para a implantação de uma ideologia política e econômica conhecida como “neoliberalismo, ao menos no Brasil, pode ter se iniciado, entre tantos outros fatores sócio-econômicos, também, pela absorção de uma nova fé estrangeira, em que novas tradições e releituras de outras desbancaram os orixás e introduziram um “deus” estimulador da ganância e do individualismo.


Douglas Naegele é teólogo e psicanalista, responsável pelo site: Douglas Naegele: Psicanálise e Teologia - Um olhar junguiano (www.douglasnaegele.com)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 de Abril 1974 - Revolução dos Cravos

Ficheiro:25 de Abril sempre Henrique Matos.jpg

Revolução dos Cravos é o nome dado ao golpe de estadomilitar que derrubou, num só dia, sem grande resistência das forças leais ao governo - que cederam perante a revolta das forças armadas - o regime político que vigorava emPortugal desde1926. O levantamento, também conhecido pelos portuguesescomo 25 de Abril, foi conduzido em 1974 pelos oficiais intermédios da hierarquia militar (oMFA), na sua maior parte capitães que tinham participado na Guerra Colonial. Considera-se, em termos gerais, que esta revolução trouxe a liberdade ao povo português (denominando-se "Dia da Liberdade" o feriado instituído em Portugal para comemorar a revolução).

Antecedentes 

Na sequência do golpe militar de 28 de Maio de 1926, foi implementado em Portugal um regime autoritário de inspiração fascista. Com a Constituição de 1933 o regime é remodelado, auto-denominando-se Estado Novo e Oliveira Salazar passou a controlar o país, não mais abandonando o poder até 1968, quando este lhe foi retirado por incapacidade, na sequência de uma queda em que sofreu lesões cerebrais. Foi substituído por Marcelo Caetano que dirigiu o país até ser deposto no 25 de Abril de 1974.

Sob o governo do Estado Novo, Portugal foi sempre considerado uma ditadura, quer pela oposição, quer pelos observadores estrangeiros quer mesmo pelos próprios dirigentes do regime.

Formalmente, existiam eleições, mas estas foram sempre contestadas pela oposição, que sempre acusaram o governo de fraude eleitoral e de desrespeito pelo dever de imparcialidade.

O Estado Novo possuía uma polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), uma evolução da ex-PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), mais tarde DGS (Direcção-Geral de Segurança), que perseguiria os opositores do regime.

De acordo com a visão da história dos ideólogos do regime, o país manteve uma política que considerava a manutenção das colónias do "Ultramar", numa altura em que alguns países europeus iniciavam os seus processos de alienação progressiva das suas colónias. Apesar da contestação nos fóruns mundiais, como na ONU, Portugal manteve uma política de força, tendo sido obrigado, a partir do início dos anos 60, a defender militarmente as colónias contra os grupos independentistas em Angola, Guiné e Moçambique.

Economicamente, o regime manteve uma política de condicionamento industrial que resultava no monopólio do mercado português por parte de alguns grupos industriais e financeiros (a acusação de plutocracia é frequente). O país permaneceu pobre até à década de 1960, o que estimulou a emigração. Notou-se, contudo, um desenvolvimento económico a partir desta década.

Chaimite no Largo do Carmo, soldados na Baixa de Lisboa durante a Revolução dos cravos em 1974



Nos inícios dos anos 1970 o regime autoritário do Estado Novo continuava a pesar sob Portugal. O seu fundador, António Oliveira Salazar, foi destituído em 1968 por incapacidade e veio a falecer em 1970, sendo substituído por Marcelo Caetano na direcção do regime.


Qualquer tentativa de reforma política foi impedida pela própria inércia do regime e pelo poder da sua polícia política (PIDE). O regime exilava-se, envelhecido num mundo ocidental em plena efervescência social e intelectual de finais de década de 60, obrigando Portugal a defender pelas forças das armas o Império Português, instalado no imaginário dos ideólogos do regime.

Para tal, o país viu-se obrigado a investir grandes esforços numa guerra colonial de pacificação, atitude que contrastava com o resto das potências coloniais que tratavam de assegurar-se da saída do continente africano da forma mais conveniente.

O contexto internacional não era favorável ao regime salazarista/marcelista.


Com o auge da Guerra Fria, as nações dos blocos Capitalista e Comunista apoiaram e financiaram as guerrilhas das colónias portuguesas, numa tentativa de as atrair para a influência americana ou soviética. A intransigência do regime e mesmo o desejo de muitos colonos de continuarem sob o domínio português, atrasaram o processo de descolonização por quase 20 anos, no caso de Angola e Moçambique.


Ao contrário de outras Potências Coloniais Europeias, Portugal mantinha laços fortes e duradoros com as suas colónias africanas. Para muitos portugueses um Império Colonial era necessário para um poder e influência contínuos. Contrastando com Inglaterra e França, os colonizadores portugueses casaram e constituíram família entre os colonos nativos.


Apesar das constantes objecções em forúns nacionais, como a ONU, Portugal manteve as suas colónias como parte integral de Portugal, sentindo-se portanto obrigado a defendê-las militarmente de grupos armados de influência comunista, particularmente após a anexação unilateral e forçada dos inclaves portugueses de Goa, Damão e Diu, em 1961.


Em quase todas as colónias portuguesas africanas – Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde – surgiram movimentos independentistas, que acabaram por se manifestar sob a forma de guerrilhas armadas. Excepto no caso da Guiné, estas guerrilhas foram facilmente contidas pelas forças portuguesas, apesar dos diversos embargos ao armamento militar fornecido a Portugal. No entanto, os vários conflitos forçaram Salazar e o seu sucessor Caetano a gastar uma maior parte do orçamento de Estado na administração colonial e despesas militares, sendo que cedo Portugal viu-se um pouco isolado do resto do Mundo.

Após a ascensão de Caetano ao poder, a guerra colonial tornou-se num forte motivo de discussão e num assunto muito focado por parte das forças anti-regime. Muitos estudantes e manifestantes contra a guerra terão sido forçados a abandonar o país para escapar à prisão e tortura.


Economicamente, o regime mantinha a sua política de Corporativismo, o que resultou na concentração da economia portuguesa nas mãos de uma elite de industriais.

No entanto, a economia crescia fortemente, especialmente após 1950 e Portugal foi mesmo co-fundador da EFTA, OCDE e NATO. A Administração das colónias custava a Portugal um aumento percentual anual no seu orçamento e tal contribuíu para o empobrecimento da Economia Portuguesa, pois o dinheiro era desviado de investimentos infraestruturais na metrópole. Até 1960 o país continuou relativamente frágil em termos económicos, o que estimulou a emigração para países em rápido crescimento e de escassa mão-de-obra da Europa Ocidental, como França ou Alemanha principalmente após a Segunda Guerra Mundial.



Para muitos o Governo português estava envelhecido, sem resposta aparente para um mundo em grande mudança cultural e intelectual.

A guerra colonial gerou conflitos entre a sociedade civil e militar, tudo isto ao mesmo tempo que a fraca economia portuguesa gerava uma forte emigração.


Em Fevereiro de 1974, Marcelo Caetano é forçado pela velha guarda do regime a destituir o general António Spínola e os seus apoiantes, quando tentava modificar o curso da política colonial portuguesa, que se revelava demasiado dispendiosa para o país.

Nesse momento, em que são reveladas as divisões existentes no seio da elite do regime, o MFA, movimento secreto, decide levar adiante um golpe de estado.

O movimento nasce secretamente em 1973 da conspiração de alguns oficiais do exército, numa primeira fase unicamente preocupados com questões de carreira militar.

PREPARAÇÃO




A primeira reunião clandestina de capitães foi realizada em Bissau, em 21 de Agosto de 1973. Uma nova reunião, em 9 de Setembro de 1973 no Monte Sobral (Alcáçovas) dá origem ao Movimento das Forças Armadas. No dia 5 de Março de 1974 é aprovado o primeiro documento do movimento: "Os Militares, as Forças Armadas e a Nação". Este documento é posto a circular clandestinamente. No dia 14 de Março o governo demite os generais Spínola e Costa Gomes dos cargos de Vice-Chefe e Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, alegadamente, por estes se terem recusado a participar numa cerimónia de apoio ao regime. No entanto, a verdadeira causa da expulsão dos dois Generais foi o facto do primeiro ter escrito, com a cobertura do segundo, um livro, "Portugal e o Futuro", no qual, pela primeira vez uma alta patente advogava a necessidade de uma solução política para as revoltas separatistas nas colónias e não uma solução militar. No dia 24 de Março a última reunião clandestina decide o derrube do regime pela força.


Movimentações militares durante a Revolução
No dia 24 de Abril de 1974, um grupo de militares comandados por Otelo Saraiva de Carvalho instalou secretamente o posto de comando do movimento golpista no quartel da Pontinha, em Lisboa.



Quartel da Pontinha



Às 22h 55m é transmitida a canção ”E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, pelos Emissores Associados de Lisboa, emitida por Luís Filipe Costa. Este foi um dos sinais previamente combinados pelos golpistas e que desencadeou a tomada de posições da primeira fase do golpe de estado.

O segundo sinal foi dado às 0h20 m, quando foi transmitida a canção ”Grândola Vila Morena“, de José Afonso, pelo programa Limite, da Rádio Renascença , started on April 25, 1974, in , que confirmava o golpe e marcava o início das operações. O locutor de serviço nessa emissão foi Leite de Vasconcelos, jornalista e poeta moçambicano.

O golpe militar do dia 25 de Abril teve a colaboração de vários regimentos militares que desenvolveram uma acção concertada.

No Norte, uma força do CICA 1 liderada pelo Tenente-Coronel Carlos de Azeredo toma o Quartel-General da Região Militar do Porto. Estas forças são reforçadas por forças vindas de Lamego. Forças do BC9 de Viana do Castelo tomam o Aeroporto de Pedras Rubras. Forças do CIOE tomam a RTP e o RCP no Porto. O regime reagiu, e o ministro da Defesa ordenou a forças sedeadas em Braga para avançarem sobre o Porto, no que não foi obedecido, já que estas já tinham aderido ao golpe.



À Escola Prática de Cavalaria, que partiu de Santarém, coube o papel mais importante: a ocupação do Terreiro do Paço. As forças da Escola Prática de Cavalaria eram comandadas pelo então Capitão Salgueiro Maia. O Terreiro do Paço foi ocupado às primeiras horas da manhã.



Salgueiro Maia moveu, mais tarde, parte das suas forças para o Quartel do Carmo onde se encontrava o chefe do governo, Marcello Caetano, que ao final do dia se rendeu, fazendo, contudo, a exigência de entregar o poder ao General António de Spínola, que não fazia parte do MFA, para que o "poder não caísse na rua". Marcello Caetano partiu, depois, para a Madeira, rumo ao exílio no Brasil.





A revolução resultou na morte de 4 pessoas, quando elementos da polícia política (PIDE) dispararam sobre um grupo que se manifestava à porta das suas instalações na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa.

Cravo

O cravo vermelho tornou-se o símbolo da Revolução de Abril de 1974; Com o amanhecer as pessoas começaram a juntar-se nas ruas, solidários com os soldados revoltosos; alguém (existem várias versões, sobre quem terá sido, mas uma delas é que uma florista contratada para levar cravos para a abertura de um hotel, foi vista por um soldado que pôs um cravo na espingarda, e em seguida todos o fizeram), começou a distribuir cravos vermelhos para os soldados, que depressa os colocaram nos canos das espingardas.

Consequências


No dia seguinte, forma-se a Junta de Salvação Nacional, constituída por militares, e que procederá a um governo de transição. O essencial do programa do MFA é, amiúde, resumido no programa dos três D: Democratizar,DescolonizarDesenvolver.


Entre as medidas imediatas da revolução contam-se a extinção da polícia política (PIDE/DGS) e da Censura. Os sindicatos livres e os partidos foram legalizados.


Só a 26 foram libertados os presos políticos, da Prisão de Caxias e de Peniche. Os líderes políticos da oposição no exílio voltaram ao país nos dias seguintes.


Passada uma semana, o 1º de Maio foi celebrado legalmente nas ruas pela primeira vez em muitos anos. Em Lisboa reuniram-se cerca de um milhão de pessoas.


Portugal passou por um período conturbado que durou cerca de 2 anos, comummente referido como PREC (Processo Revolucionário Em Curso), marcado pela luta e perseguição politica entre as facções de esquerda e direita. Foram nacionalizadas as grandes empresas.

Foram igualmente "saneadas" e muitas vezes forçadas ao exílio personalidades que se identificavam com o Estado Novo ou não partilhavam da mesma visão politica que então se estabelecia para o país.


Assembleia Constituinte

No dia 25 de Abril de 1975 realizaram-se as primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, que foram ganhas pelo PS. Na sequência dos trabalhos desta assembleia foi elaborada uma nova Constituição, de forte pendor socialista, e estabelecida uma democracia parlamentar de tipo ocidental. A constituição foi aprovada em 1976 pela maioria dos deputados, abstendo-se apenas o CDS.


Acordos de AlvorA guerra colonial acabou e, durante o PREC, as colónias africanas e Timor-Leste tornaram-se independentes.

O 25 de abril de 1974 continua a dividir a sociedade portuguesa, sobretudo nos estratos mais velhos da população que viveram os acontecimentos, nas facções extremas do espectro político e nas pessoas politicamente mais empenhadas. A análise que se segue refere-se apenas às divisões entre estes estratos sociais.

Existem actualmente dois pontos de vista dominantes na sociedade portuguesa em relação ao 25 de abril.

Quase todos reconhecem, de uma forma ou de outra, que o 25 de abril representou um grande salto no desenvolvimento politico-social do país. Mas as pessoas mais à esquerda do espectro político tendem a pensar que o espírito inicial da revolução se perdeu. O PCP lamenta que a revolução não tenha ido mais longe e que muitas das conquistas da revolução se foram perdendo.

De uma forma geral, ambos os lados lamentam a forma como a descolonização foi feita, enquanto que as pessoas mais à direita lamentam as nacionalizações feitas no periodo imediato ao 25 de abril de 1974 que condicionaram sobremaneira o crescimento de uma economia já então fraca.