sábado, 14 de abril de 2012

Na França, Mélenchon consolida um novo discurso de esquerda



Por Antônio Martins
Ao invés da crítica genérica ao capitalismo, propostas concretas sobre democracia direta, radicalização da economia solidária e novas instituições internacionais
A menos de duas semanas das eleições presidenciais francesas (primeiro turno em 22/4), o candidato da Frente de Esquerda, Jean Luc Mélenchon, mantém tendência a crescimento nas pesquisas (com 15% dos votos, na média das sondagens), parece firme no terceiro posto (ultrapassando Marine Le Pen, da extrema direita, e François Bayrou, de centro) e continua a realizar as maiores manifestações da campanha (reuniu 70 mil pessoas em Toulouse, na quinta-feira, e prepara um ato de igual força, em Marselha).
Tão surpreendente quanto este desempenho (revertendo anos de declínio da esquerda institucional), porém, é o discurso que o candidato parece consolidar a cada novo comício. A fala de Toulouse, por exemplo (vídeo acima e íntegra, em português, ao final do post), merece ser examinada com atenção. Mélenchon não se limita à mera denúncia dos males do capitalismo (o que é comum nas correntes à esquerda do Partido Socialista francês) nem pretende se diferenciar apenas por suas propostas táticas.
Sua principal proposta é a refundação da República, por meio de uma Assembleia Constituinte. Nesta, a sociedade definiria as “regras de vida comum” necessárias para fazer frente ao conjunto de crises que o planeta atravessa. Para evitar que a ideia seja qualificada como devaneio, o próprio Mélenchon reconhece que ela não faz parte da agenda política atual. Mas lembra que a inovação política faz parte, há séculos, da história e das tradições da França…
A ideia de uma nova República vai além da retórica. O candidato da Frente de Esquerda concretiza-a num conjunto de medidas que guardam muita relação, por exemplo, com os temas debatidos nos Fóruns Sociais Mundiais. Diante da crise da representação, fala em democracia direta e em pacifismo (quer submeter a plebiscito a participação de seu país na OTAN, a aliança militar comandada pelos EUA, e o tratado de livre comércio entre União Europeia e EUA, que deverá entrar em vigor a partir de 2017). Sugere conferir, aos assalariados, o direito de veto sobre decisões estratégicas de suas empresas que representem ameaça a direitos sociais e ao meio ambiente. Reivindica, também, o direito de preempção, pelo qual os trabalhadores de uma empresa colocada à venda teriam preferência automática, podendo assumir seu controle de forma cooperativa.
Além disso, está cada vez mais incisivo nas críticas às posições xenófobas e ao presidente Nicolas Sarkozy. Em Toulouse, afirmou que não vê a França como país Ocidental, mas mestiço e pluricontinental (devido à sua presença territorial na América do Sul, Polinésia, Caribe e Nova Caledônia). Também retrucou Sarkozy, para quem seu programa tem custos “irrealistas”. Invertendo o discurso, indagou ao presidente: “qual o custo da ignorância que o senhor disseminou, cortando empregos de professores? Qual é o custo da saúde perdida, quando os pobres não encontram meios para se tratar? Qual é o custo de 564 pessoas que todos os anos morrem no trabalho? O maior tempo de trabalho, antes da aposentadoria? A prisão de menores? Peço-lhe contas, eu, por essa sociedade absurda”.
Mélenchon sabe que dificilmente irá ao segundo turno — e que, na hipótese mais provável, apoiará François Hollande, do Partido Socialista, contra Sarkozy. Por isso, preocupa-se em construir uma mobilização que não se esgote em 22 de abril. Frisa sempre que as eleições são apenas “a primeira etapa de uma grande insurreição cidadã”. Se tal discurso, que contraria as velhas noções de “realismo político”, está mobilizando multidões e dando credibilidade e consistência ao candidato, talvez seja hora de compreender que algo está mudando (para muito melhor) na consciência das sociedades e dos eleitorados.
A seguir, o discurso de Toulouse, traduzido pela Rede Vila Vudu
[Apresentadora] Nosso encontro hoje em Toulouse é multilocal. A Place du Capitole está lotada, completamente lotada. A Place Wilson, com dois telões, está lotada. As ruas adjacentes estão lotadas. Essa noite, somos 70 mil pessoas, para acolher Jean-Luc Mélenchon, candidato da Frente de Esquerda, à presidência da França.
[Mélenchon.] Boa noite, saúdo vocês, todos e todas que vieram, acorrendo ao apelo que lançamos. Saludo también a vosotros de España que han venido. Con respecto también a la gloriosa bandera de la Republica! [em espanhol]. Aí está, a força que se reúne, que se estende, que se afirma. E convoco-os a fazê-la crescer ainda mais, até o encontro na noite das eleições, fim da primeira etapa de nossa insurreição cidadã.
Peço-lhes que continuem a construir adiante, essa grande força, coerente politicamente, educada, disciplinada pelo livre consentimento, de adesão a um programa, não a uma pessoa. Porque é o que propomos ao país. Para superar o desafio que teremos de superar contra todos que se reunirão contra o movimento que o povo francês empreenderá, será preciso que cada um, cada uma, saiba o seu lugar, o seu posto de combate, o trabalho que lhe caberá fazer, para levar pela mão, pelo espírito, pelo coração, o vizinho, a vizinha, todos percorrendo o caminho necessário para fazer o que tem de ser feito.
Meus amigos, estamos no mês Germinal [2]. Os botões já se abrem e já há promessas de frutos. Assim também a nossa palavra, saindo já do inverno gelado da política, volta voando, para dar a cada um, a cada uma, novas razões para viver e ter esperanças. Essa palavra é “partilha”. Partilha, partilha. Partilhar. Partilha da riqueza, do planejamento ecológico, cidadania, fraternidade, amor, interesse pelo que tombou, para que se levante, pelo que nada tem, que seja ajudado.
Essa palavra, partilha, é como a chave que abre as cadeias nas quais está presa a própria razão de viver. Ela não se confunde com as abjetas contabilidades a que somos obrigados todos os dias, para decidir se nos alimentamos, ou se moramos, ou se pagamos a conta de energia elétrica.
Aqui está, Sr. Sarkozy, nossa resposta. O senhor disse que não compartilha nenhum dos meus entusiasmos ou engajamentos. É verdade. Não somos do mesmo clã. Não somos a mesma França.
O senhor diz, falando afinal a um Mélenchon que faz cada dia mais pressão, que bastam dois dias, para pôr por terra cinco anos de esforços. Não são cinco anos de esforços. São cinco anos de fracassos, cinco anos de recuo. Cinco anos de grosseria, de vulgaridade. De rebaixamento da pátria. Ao senhor que, todos os dias, vem pedir-nos contas, e que novamente nos pede agora, calculando “por alto” o que “custaria” nosso programa, que quer dar a cada um os meios para viver a vida com dignidade e tranquilidade.
Agora, sou eu que lhe pede contas: qual é o custo da infelicidade que se dissemina, e o custo da ignorância que o senhor disseminou a mancheias, cortando empregos de professores? Qual é o custo da saúde perdida, quando os pobres não encontram meios para se tratar? Qual é o custo 564 pessoas que todos os anos morrem no trabalho? Qual o custo dos 43 mil mutilados para sempre no trabalho? Qual o custo da a primeira infância esquecida? O maior tempo de trabalho, antes da aposentadoria? A prisão de menores. Peço-lhe contas, eu, por essa sociedade absurda. Peço-lhe contas, por ter feito com que a expectativa de vida já diminua, nos países desenvolvidos, depois de anos de aumento constante.
Peço-lhe contas, eu, por ter posto em risco o primeiro direito, que a gloriosa revolução de 1789 consagrou, acima de todos os outros direitos: o direito à existência. Ah, não! Viver não é passar a vida sobrevivendo.
Não se pode viver feliz num oceano de infelicidade. Não se pode viver feliz, se há um milhão de pobres, um milhão sem moradia digna, na 5ª potência do mundo. Não se pode viver com medo do amanhã, como é o caso de dez milhões de trabalhadores precários.
Aí está, e confesso: nosso programa não é realista, mesmo, para os seus padrões contábeis, Sr. Sarkozy! Mas é realista, para os nossos padrões. E nosso padrão chama-se O Direito de Viver!
Vejam aí, todos os que nos perguntam, o que é esse fenômeno que enche essa praça e outras praças e as ruas em torno: essa é a nossa revolução cidadã, que começou. [Resistência! Resistência!]
Convocamos, nós, essa mobilização, aqui, como na Bastilha, e como faremos também em Marselha, em alguns dias. É uma mesma marcha. E vemos aqui, lá, que vocês respondem ao nosso apelo. Sabemos que vocês responderão, porque já terão passado por esse ‘ensaio geral’, aqui. E amanhã, se eu for eleito, e outra vez os convocar, vocês responderão. Mas, seja quem for o eleito, nada e ninguém, nunca mais, conseguirá meter outra vez no velho leito, o rio que já transbordou.
Convocamos esse 2º Rassemblement para refundar nossa República. Vocês sabem, numa nação política como a nossa – que não se define por uma cor de pele, nem uma religião, sequer por uma única língua – a República é o fundamento da nação, não o contrário. Refundar a República é refundar o próprio povo, repô-lo, lá, como fundamento. É refundar a pátria comum, hoje desfigurada pela desigualdade e os saqueios de todos os tipos.
Queremos que se convoque uma Assembleia Constituinte, cujo primeiro papel será definir a  regra de vida comum.
Já não se pode aceitar que, para enfrentar o desafio gigantesco da catástrofe capitalista que devasta o mundo inteiro e a catástrofe produtivista que ameaça o …. humano. E os poderosos, incapazes de pensar em outro mundo e em outra organização, abandonam os movimentos a eles mesmos e não reconhecem outra lei que não seja a do interesse deles.
Não se pode mais aceitar que a hierarquia das normas, no nosso país ou na Europa, seja dominada pela liberdade de empreender, a concorrência sem regras e a competição de um contra todos.
Exigimos que, na base da hierarquia das leis de nossa sociedade sejam postas a solidariedade e a cooperação.
Não podemos mais aceitar que a liberdade de empreender e o direito de propriedade sejam tornados equivalentes a direitos fundamentais, e que tudo seja subordinado àquela liberdade.
Acreditamos, ao contrário, que é hora de estabelecer a cidadania em tudo, não só na cidade, mas também nas empresas. E, portanto, é hora de reconhecer como direito constitucional o direito de preempção, que garantirá que os trabalhadores, desde que o desejem, possam constituir cooperativas operárias e tornem-se proprietários dos meios de produção.
Queremos que o interesse geral seja mais forte que os interesses particulares e que, desde que a situação o imponha –, porque um interesse fundamental econômico da nação seja afirmado e verificado numa ou outra circunstância –, haja para o governo, quer dizer, para a nação ela própria, um direito de requisição, que impeça que escândalo como o….. nunca mais seja possível, em nosso país.
E que se estabeleça um direito de veto dos assalariados, nas questões relativas ao futuro estratégico de sua empresa empregadora e ao impacto ambiental do que a empresa produza.
Aqui, retomamos o fio que o grande Jaurès teceu para nós, nessa região. A democracia política, nos ensinou ele, expressa-se numa ideia central, ou melhor, numa ideia única: a soberania política do povo.
“Soberania do povo” significa: só obedecer à lei para a qual nós mesmos, cada um, pessoalmente, tenhamos contribuído, pelo nosso voto. Só temos de obedecer a lei, porque ela reconhece e assegura a norma comum, porque ela foi decidida por nós, todos juntos. Eis o que significa “soberania do povo”. Portanto, “soberania popular” é outro nome da liberdade. Vocês não são livres, quando não são soberanos, porque são obrigados a obedecer a leis que lhes são impingidas, porque são decisões decididas longe de vocês e sem vocês.
Relembro aqui o caso de um crime [3] cometido pelo presidente da República [Chirac], que, depois de o povo ter votado “Não” à Constituição [da Europa] em 2005 [4], por 55% dos votos, o presidente mesmo assim negociou outra proposta de tratado de aprovação da Constituição Europeia, em tudo idêntica à primeira, que fez aprovar no Congresso de Versailles [vaias, vaias], com a cumplicidade dos que se abstiveram ou votaram a favor, no referendum.
Peço-lhes contas, eu, e pergunto: onde está nossa liberdade?
E ainda mais: qual é o sentido dessa próxima eleição, se vocês escondem dos franceses que, se votarem num dos partidos do Tratado de Lisboa, que se preparem para aprovar o próximo tratado Merkel-Sarkozy, seja votando a favor, seja abstendo-se, como já fizeram, pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade?
Onde está nossa liberdade, qual o sentido dessa eleição, se nos anunciam que, seja qual for o resultado, aconteça o que acontecer, em todos os casos, seremos obrigados por acordos internacionais a submeter o orçamento da França à aprovação prévia da Comissão Europeia? Se teremos de submeter todos os nossos empréstimos àquela aprovação prévia?
Por isso digo que, se não há mais liberdade, se não há mais soberania do povo, a insurreição cidadã é dever sagrado da República.
Onde está nossa liberdade, nossa soberania, ante a catilinária, sempre a mesma, mas sem que eles jamais digam, em nenhuma assembleia, em nenhum comício, que, votem como votarem, façam o que façam, todos eles preparam, com seus votos cúmplices, uns com os outros, o que eles mesmos chamam de Grande Mercado Transatlântico 2015, porque o candidato deles, seja qual for, nos unirá para sempre, sem barreiras alfandegárias, sem barreiras jurídicas, aos EUA?
Onde está nossa liberdade, se, dessa vez, elejamos quem for, dos candidatos deles, teremos de admitir que continue o que não queremos que continue – mas nem temos como dizer que não queremos – que continue a privatização dos serviços públicos? Que não queremos que continue a demissão de trabalhadores pobres de outros países europeus, que eles põem a trabalhar aqui a preço vil, desgraça à qual se soma também a deslocalização interna.
Onde está nossa liberdade? Está na urna eleitoral, que, dando o poder à Frente de Esquerda, abolirá todas essas medidas, porque a França não mais as subscreverá.
Onde está nossa liberdade, quando nossa soberania confiscada por nossa implicação num comando militar integrado no interior da OTAN, nos amarra a todas as expedições militares dos EUA que detonam um choque de civilização, que não desejamos?
Por isso, trate-se do Tratado Europeu, ou dessa participação da França que os franceses não desejam, na OTAN, declaramos aqui que esses dois “engajamentos” serão submetidos a referendum popular.
Que os franceses se manifestem: a França deve deixar o Comando Integrado e a própria Aliança Atlântica.
A França, como é de sua tradição e de sua história, deve propor ao mundo uma outra aliança, altermundista, independente dos EUA.
A França deve engajar-se na renovação de organizações internacionais que sejam legítimas aos nossos olhos, não essas que resultam dos G-8, G-20 e de todas essas sinecuras onde os poderosos ordenam ao resto do mundo o que devem sofrer e padecer. Mas, ao contrário, os organismos da ONU renovados pela ação da própria França.
Uma França que não mais praticará essa defesa, de geometria variável, dos direitos do homem, utilizada para ingerências mais que duvidosas.
Uma França que afinal defenderá em todos os cenários e frente a todos, sem jamais ter de baixar os olhos, as causas que nos animam e que fizeram com que nossas revoluções nunca fossem revoluções só para os franceses, mas para a humanidade universal e defenderam os direitos universais do mundo.
Falo aqui, notadamente, da defesa, aqui e na esfera internacional, para que seja reconhecido, na França e em todo o mundo, o direito universal ao aborto, base do direito humano essencial de dispor de si mesmo, para metade da humanidade.
Falo aqui de lutar contra a pena de morte, não só na China, mas também nos EUA.
Lutar ante o mundo inteiro, dizendo, eis aqui os franceses, e propomos o que já propôs o presidente Evo Morales, presidente de esquerda, da Bolívia. A França propõe, como o presidente Morales já propôs, que se crie um Tribunal Internacional que julgue e puna os crimes ecológicos cometidos contra a humanidade.
Não, senhor presidente Sarkozy, diferente do que o senhor declarou ao chegar ao poder, o primeiro perigo não é a confrontação entre o ocidente e o Islã. O primeiro perigo é que a França está convertida em rota de socorro do carro imperial, que é a principal causa de perturbação no mundo.
A França da 6ª República que queremos construir não é uma nação ocidental. Não é, nem pelo seu povo mestiço, nem pelo fato de que a França existe em todos os oceanos do mundo, vive e brilha perto dos cinco continentes: Nova Caledônia, Réunion, Polinésia, Maiote, Caraíbas, a Guiana Francesa, que é a mais longa fronteira francesa, 800km de fronteiras com o Brasil.
Não, a França não é nação ocidental. A França é nação universalista. Somos e queremos ser, porque a história nos legou o primeiro modelo de nação universalista. E vamos em busca de viver à altura desses princípios.
Vocês são convocados para essa grande missão, não para esse miserável blá-blá-blá dos politiqueiros da UNP. Mais uma vez, teremos de ser esse estandarte ardente do qual brilhará outra vez a chama das revoluções, que por contágio, se torna causa comum de todos os povos da Europa.
Já abrimos a brecha. Doravante, não precisamos de conselhos ou autorização de ninguém, porque somos uma força adulta, consciente, disciplinada, educada, politizada.
Abriremos a brecha pela qual passarão nossos irmãos e irmãs da Grécia, para por fim à abjeta ditadura das finanças que saqueou seu país.
Abriremos a brecha pela qual, em outubro próximo, passará também o povo alemão.
Abriremos a brecha no muro da resignação que, por toda a parte pegou o povo pela garganta. E eles nos dizem que somos a ruína! Quando eles organizaram a ruína e hoje, aplicam sua política podre, por toda a parte.
Estamos no mês Germinal. Logo virão os frutos, França, bela e rebelde, chegam o tempo das cerejas [5] e os dias felizes. Viva a França! Viva a República! Viva a República Social!
[1] Este Discurso de Mélenchon , em francês, pode ser assistido a seguir:


 [2]  Germinal é um mês do calendário republicano introduzido durante a Revolução Francesa, primeiro mês da primavera e, por metáfora, do renascimento do mundo. Dá título também a um romance de Émile Zola sobre a revolta operária (Germinal [1885], SP: Companhia das Letras, 2000, 1ª edição, trad. Silvana  Salerno).
[3] Orig. forfaiture. Antes do Novo Código Penal francês, qualquer crime cometido por funcionário público, no exercício de suas funções. O novo Código Penal suprimiu esse tipo de crime específico de funcionário, agente público ou pessoa investida em missão de serviço público, e a ação correspondente passou a constituir circunstância agravante.
[4]  Em 29/5/2005, no governo de Jacques Chirac, os franceses votaram em referendum, se a França aceitaria a proposta apresentada no Parlamento Europeu, de Constituição da União Europeia. A pergunta proposta no referendum foi: “Você aprova o projeto de lei que autoriza a ratificação do tratado que estabelecerá uma Constituição para a Europa?”. 55% dos votantes franceses rejeitaram a ratificação daquela proposta de Constituição Europeia, o que fez da França o primeiro país a rejeitar a proposta, e pôs a França como alvo das pressões de outros países interessados em rápida aprovação. O Partido Socialista dividiu-se naquele referendum: François Hollande liderou a “facção” favorável ao “sim” e Laurent Fabius (de uma tendência de direita, dentro do PSF), a “facção” favorável ao “não”, minoritária. Ante o “não” do referendum, Chirac apareceu com uma “outra versão” para a mesma Constituição Europeia, em tudo semelhante à primeira, cuja aprovação negociou com deputados e senadores. Esse “segunda versão” foi aprovada por deputados e senadores franceses, com os socialistas votando com Chirac. Mélenchon, em 2005, ainda estava no Partido Socialista, do qual se separou em 2008, para criar a Front Gauche.
[5]  Le Temps dês cerises é canção de 1866, versos de Jean-Baptiste Clément, música composta por Antoine Renard em 1868. Pode ser ouvida, cantada por Yves Montand, a seguir:

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Estados Unidos: Aflora o facismo


130412 repressionManuel E. Yepe, tradução do Diário Liberdade - Um perigo potencialmente grave para a cidadania dos EUA se adverte, depois da evidência de que o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos (Homeland Security ou DHS) está adquirindo 450 milhões de balas de ponta oca para serem usadas nos próximos cinco anos.

"Para que o Departamento da Homeland Security necessita de 450 milhões de balas de ponta oca?", pergunta um artigo publicado no Activist Post, meio de comunicação alternativo que, à margem da grande imprensa corporativa, se dedica a vigiar e denunciar atos relevantes de excessiva repressão policial.
"Se os Estados Unidos fossem invadido, seria responsabilidade dos militares norte-americanos defender o país, assim, então esse não pode ser o motivo. Para quê são tantas balas se, segundo o senso, os EUA têm apenas 311 milhões de habitantes? Contra quem o DHS pensa em disparar? Há algo que não está nos dizendo", questiona o artigo.
"Pode-se entender que o exército norte-americano ordene essa quantidade de munições – as guerras costumam consumir muitas balas – mas supõe-se que o DHS dispare contra pessoas apenas ocasionalmente. Naturalmente, não faz sentido que necessite tanta munição", diz o trabalho do Activist Post com a assinatura de seu colaborador Michael Snyder.
As balas calibre 40 HTS de ponta oca são utilizadas para combate a pouca distância. Elas expandem a superfície frontal ao primeiro contato com o alvo, e assim impedem seu avanço imediato e quase sempre resultam serem letais, pela amplitude do orifício formado.
O Activist Post publica o texto do contrato entre o fornecedor, a empresa ATK, produtora de armamento e o comprador, o DHS. Além disso, dá conta de outras grandes compras de armamentos que o DHS gerencia, como a aquisição de um arsenal de 175 milhões de cartuchos de balas para fuzis de mesmo calibre que os utilizados pelas forças da OTAN, 5,6 X 45mm.
A publicação recorda que isto ocorre em uma época em que as vendas de armas nos Estados Unidos alcançam níveis astronômicos. Destaca que recentemente o fabricante de armas Sturm, Ruger & Co. anunciou a suspensão temporária até maio, para aceitação de novos pedidos, pois em janeiro e fevereiro deste ano, recebeu pedidos de compras de mais de um milhão de armas de fogo da marca Ruger e atualmente os compromissos firmados para novos fornecimentos ultrapassam sua capacidade de produção, "não obstante os grandes e exitosos esforços feitos para ampliá-la".
Desde que Barack Obama assumiu a presidência dos Estados Unidos, as vendas de armas no país têm crescido a níveis extraordinários, assegura o Activist Post. Mais de 10 milhões de armas de fogo foram vendidas em 2011 e esse número continua crescendo sem parar em 2012, apesar da crise econômica que sofre o país.
A Fundação Nacional de Tiro Desportivo (NSSF- sigla em inglês) anunciou que em janeiro emitiu 920.840 certificados instantâneos de antecedentes criminais para adquirentes de armas, 17,3% mais que no mesmo mês de 2011. Com este, somam 20 os meses consecutivos em que a emissão de tais certificados registra incremento. Ainda que o número de certificações expedidas dê certa medida das vendas, isso não descreve o fenômeno com exatidão, uma vez que alguns certificados são usados para compras múltiplas e algumas transferências e vendas particulares de armas estão isentas destes, o que determina que o número seja maior.
Segundo as pesquisas Gallup, 41% dos norte-americanos dizia possuir uma arma em 2010. Mas quando essa pergunta se formulou em 2011, a proporção havia se elevado a 47%.
E o que está fazendo com que todos queiram comprar armas? , se pergunta o Ativist Post e se responde: Está-se experimentando um incremento do delito enquanto continua o desmoronamento da economia dos EUA. Já se observam invasões violentas de casas em muitas partes da nação. As pessoas estão preocupadas com o rumo que toma o país e querem estar preparadas para a queda.
O problema das gangues nos Estados Unidos é também altamente preocupante. Segundo o FBI existem hoje 1,4 milhões de participantes de gangues nos Estados Unidos, 40% mais que em 2009. Muitas comunidades urbanas foram praticamente tomadas por estas gangues com uso de violência. O cidadão residente nestas comunidades quer estar em condições para enfrentá-las.
Conclui o trabalho reiterando a interrogativa: É verdade que o mundo se faz crescentemente instável, mas sob quais circunstâncias pensa o Homeland Security disparar 450 milhões de balas especiais?


Tradução de Cássia Valéria Marques para o Diário Liberdade

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Para que o Brasil não seja imperialista

Multiplicam-se laços com a África. É possível pensar numa relação descolonizada — ao contrário das mantidas por potências tradicionais e “emergentes”? 
Por Oliver Stuenkel, editor de Post-Western World
As potências emergentes estão se mudando para a África. O papel da China no continente é amplamente examinado hoje em dia. O da Índia, ainda é um tema marginal, mas um número crescente de analistas passou a sistematicamente estudá-lo. O Brasil, por sua vez, é o novato, e bastante desconhecido, mas suas atividades suscitam cada vez mais interesse ao redor do mundo. Considerando-se que o Brasil não precisa importar energia nem alimentos (fatores de motivação importantes tanto para a China quanto para a Índia), quais são seus interesses na África?
Além do fato de terem sido ligados pela geografia há milhões de anos (o Brasil e a África formavam o continente único Gondwana, como atestam os formatos dos litorais do Brasil e da África Ocidental), o comércio escravagista transatlântico, abolido em 1888, criou uma conexão cultural forte e irreversível entre a África e o Brasil. Foram levados mais escravos ao Brasil do que a qualquer outro país no hemisfério ocidental, incluindo os Estados Unidos. O Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) estabeleceu as bases para diversificar as parcerias brasileiras após o fim da Guerra Fria, mas foi o Presidente Lula (2003-2010) que fez da África uma prioridade estratégica (como parte de uma estratégia mais ampla para fortalecer a cooperação Sul-Sul). Embora algumas de suas muitas viagens à África possam ter produzido poucos benefícios concretos, os esforços serviram ao objetivo maior de colocar o Brasil na posição de líder do Sul. Mesmo os críticos de Lula admitem hoje que a posição brasileira na África teve um impulso sem precedentes.
O Presidente fez 12 viagens à África e visitou 21 países. Na direção contrária, o Brasil recebeu 47 visitas de reis, presidentes e primeiros-ministros de 27 nações africanas. O então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, fez 67 visitas oficiais a 34 países africanos, durante sua gestão no governo Lula. O Brasil tem, hoje, 37 embaixadas na África, comparadas com as 17 existentes em 2002.
Mas o que pode oferecer o Brasil à África comparado, com outros atores emergentes como a China e a Índia? A primeira coisa que vem à mente é a experiência brasileira em agricultura tropical. A agricultura brasileira não é apenas a mais produtiva do mundo, mas as condições similares de solo e de clima permitiram à empresa nacional de pesquisa agropecuária, Embrapa, ajudar nações africanas a impulsionarem seu desenvolvimento agrícola. Além disso, políticas sociais inovadoras (tais como o programa Bolsa Família) foram replicadas em vários países africanos. O Brasil não é apenas atraente para a África no sentido de ser o único país dos BRICS a ter uma população africana de peso. Também  é a única potência emergente capaz de reduzir a desigualdade socioeconômica no plano doméstico, aumentando, dessa maneira, a estabilidade social.
Nova China?: As similaridades entre as estratégias da Índia e da China na África provavelmente superam as diferenças. Ambas baseiam-se, entre outras coisas, em suas necessidades de assegurar o acesso a commodities, para abastecer sua ascensão. Ambas desejam usar a agricultura africana para garantir a segurança alimentar no plano doméstico. Mas qual é o caso do Brasil? O gigante emergente da América do Sul é frequentemente alinhado com a China e a Índia em questões importantes, tais como a não-intervenção e em sua resistência a uma “abordagem ocidental”, que enfatiza a importância de “boa governança”.
As empresas brasileiras na África buscam distinguir-se de suas contrapartes chinesas, por exemplo, ao empregar e treinar trabalhadores locais. É o caso da Odebrecht, maior empregador privado da Angola, mesmo com a presença de muitas grandes firmas chinesas no país. Não obstante o aumento do comércio brasileiro com a África entre 2000 e 2010, de US$ 4 bilhões para US$ 20 bilhões, sua presença permanece bem menor que a da China (cujo fluxo comercial com a África em 2011 excedeu os US$ 110 bilhões), o que torna difícil fazer comparações mais significativas.
Embora a estratégia do Brasil de focar primeiro na África lusófona (Angola e Moçambique, entre outros) seja muitas vezes retratada como astuta, essa pode também ser a maior fraqueza do país. Parece reduzir a necessidade das empresas e do governo brasileiros de se adaptarem a países não lusófonos, contratando funcionários fluentes em inglês, francês e árabe. Quando, em debate aberto, um embaixador brasileiro recentemente indicou as barreiras linguísticas enfrentadas em países como o Sudão ou a Costa do Marfim, os participantes da conversa não puderam deixar de reconhecer quão pouco a China parece se importar com tais fatores limitantes, tendo estabelecido uma forte presença em todos os países, apesar de barreiras linguísticas significativas e da quase completa falta de laços culturais entre a África e a China.
O novo papel como doador de ajuda está relacionado à presença econômica crescente do Brasil no continente africano. Mas tal como outros doadores emergentes, como a Índia e a China, o país busca ir além da interação tradicional entre doadores e receptores, e almeja uma troca entre atores “iguais”, com responsabilidades e benefícios mútuos. Desde 2005, os projetos de desenvolvimento brasileiros são uma parte essencial da estratégia na África. Após um breve período tanto recebendo quando enviando ajuda, os doadores do norte estão agora deixando de fornecer ajuda ao Brasil —  que, tudo indica, já não é mais visto como um país em desenvolvimento.
O Brasil (juntamente com a Índia e a China) se limitará apenas a mudar algumas regras, isto é, a diluir as condicionalidades do regime de ajuda internacional? Ou buscará desfazer alguns dos princípios organizadores mais básicos do atual regime de ajuda ao desenvolvimento? Doadores emergentes terminarão por adotar a posição da OCDE ou, como diz Ikenberry, “veremos as potências emergentes usar seu novo status para seguir visões alternativas da ordem mundial”? Ao tentar entender se doadores emergentes como o Brasil representam um desafio sério ao regime existente de ajuda, um regime que eles frequentemente descrevem como injusto, antiquado e dominado por antigas potências coloniais, a evidência, por enquanto, parece inconclusiva.
O Brasil é ávido por assumir maior responsabilidade em instituições tais como o Banco Mundial, mas rejeita pilares-chaves do regime como a Declaração de Paris sobre a Efetividade da Ajuda. Ao mesmo tempo, assinou a Iniciativa de Doação de Bem Humanitário, ao contrário da maioria dos “doadores emergentes”. É necessário estudar mais a questão para entender melhor qual será a estratégia do Brasil à medida que emerge como um ator importante no regime global de ajuda (incluindo a ajuda humanitária).
Enquanto isso, o país deve procurar superar os obstáculos práticos que impedem os laços Brasil-África de prosperarem. Os investimentos brasileiros na África são altamente concentrados em mineração, petróleo e gás, e infraestrutura, liderados por um número pequeno de grandes atores: Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht, Petrobrás, Queiroz Galvão e Vale. Essas empresas têm acesso direto aos governos e a capacidade de lidar com barreiras burocráticas, ao passo que pequenas e médias empresas são excluídas.
A logística também é importante: há apenas uma conexão aérea direta entre o Brasil e o continente africano (entre São Paulo e Joannesburgo). A maioria dos viajantes brasileiros com destinos na África Central, Ocidental ou Oriental deve primeiro passar por Paris, Frankfurt ou Dubai. Contudo, um voo direto de Lagos a Recife não levaria mais que quatro horas e meia. A decisão do governo de impulsionar sua presença diplomática na África tem ajudado muito as empresas brasileiras com investimentos no continente (uma estratégia que o Brasil estranhamente deixou de seguir na China).
Ao passo que cresça a presença econômica do Brasil na África, a maneira como os africanos veem o Brasil irá, inevitavelmente, mudar. Embora a presença ainda seja muito menor de que a da Índia ou da China, o país precisa tomar cuidado para evitar alguns dos erros cometidos pelos chineses, que correm o risco de enfrentar retrocessos regionais. Há evidências anedóticas de que os brasileiros são benquistos em toda a África. Agora, o desafio é assegurar que, apesar de investimentos cada vez maiores – tais como o acordo de US$ 1 bilhão recentemente assinado pela Vale, para construir uma ferrovia em Malawi para transporte de carvão para Moçambique – o Brasil continue a ser visto como um parceiro, e não como um novo colonizador que busca apenas explorar os recursos continentais africanos.