sexta-feira, 30 de março de 2012

Golpe de abril, interpretação constitucional e bravatas




É claro que ainda hoje temos temos reflexos condicionados a esse passado imbuído de ilegalidades, impressos no DNA de nossa justiça

29/03/2012


João Vicente Goulart

Abril está chegando e com ele o dia primeiro.
Há quarenta e oito anos Brasil sofria um Golpe de Estado inconstitucional dado contra o governo do Presidente João Goulart, eleito e confirmado na presidência por duas vezes; na eleição presidencial de 1960 na qual foi eleito vice de Jânio, pois também se votava em vice e em 1963 quando é confirmado pelo plebiscito o retorno do presidencialismo.
Não é bravata; o golpe foi no dia 1° de abril, mas no começo vitorioso os militares que o chamaram de “revolução”, transferiram a data para o dia 31 de março, pois não queriam comemorar o fiasco da derrubada constitucional no dia dos bobos.
Instalaram então uma república de ditadores sem votos na qual para assumir a magistratura máxima da Nação era preciso ter estrelas, não o do sufrágio universal do voto, não as estrelas da intelectualidade, do saber, da capacidade, da integridade ou as estrelas emergidas da vontade soberana do povo; eram sim as estrelas das armas.
Não bastava aos tiranos terem uma ou duas estrelas, eram necessárias quatro e às vezes oito emprestadas de algum general irmão de armas. Quanto mais prepotência dos quartéis, mais opressão contra a cidadania e o povo civil.
Violaram a Constituição, baixaram atos institucionais, cancelaram o “habeas corpus” e no AI-5 os próprios ministros mandaram ás favas os preceitos morais e éticos, assim como os constitucionais, fechando o Congresso Nacional e instalando a república da continência.
Vários magistrados foram nomeados por essa “república” da continência, da ilegalidade e da prepotência.
É claro que ainda hoje temos temos reflexos condicionados a esse passado imbuído de ilegalidades, impressos no DNA de nossa justiça, pois ela não foi ainda peneirada do arbítrio do período em que nossa Constituição foi colocada de joelhos diante da ditadura, expandida aos três poderes da Nação brasileira.
Recentemente divulgaram-se notícias que militares da reserva, preparam uma “festa” em desafio a nossa Presidenta Dilma Rousseff, no Clube Militar como se ela não fosse a comandante em chefe das forças armadas brasileiras com 52.000.000 de votos que a tornaram chefe da Nação.
Tudo isto, festa bravata e provocação serão amanhã no Clube Militar.
È a bravata da insubordinação, mesmo de pijamas, daqueles que temem em última instância serem desmascarados pela Comissão da Verdade que colocará uma luz no esclarecimento da verdade histórica das perseguições e crimes de outrora, quando a vida humana era decidida pelo oficial de dia se desaparecia , vivia ou morria.
Não vamos entrar no jogo dessas bravatas, nesse dia do golpe nada temos a comemorar e sim ainda chorar os companheiros que ficaram pelo caminho na difícil luta da redemocratização do país. São tristes recordações e por isso temos que refletir, pedir serenidade, no avanço da democracia, justiça na medida da legalidade e dos preceitos constitucionais.
Temos que entender a Comissão da Verdade não como um instrumento de punição a quem quer que seja, mas sim como uma etapa nova na construção da história brasileira. Não mais daqui para frente serão violados os Direitos Humanos no Brasil em nome da “segurança nacional”. Esta sim uma bravata jurídica a serviço da Ditadura em nosso país.
As novas gerações tem a obrigação de conhecer esta história. Nós a obrigação de transmiti-la.
Temos ainda que entender a diferença constitucional da lei de Anistia que foi julgada pelo STF; entre conhecer os fatos e os torturadores que poderemos através da Comissão da Verdade trazê-los á tona, ao conhecimento público, mas sabendo que a punição dos mesmos nos é vetada por força desta lei já apreciada pelo nosso “Supremo”.
Mas dialeticamente falando; quando conseguimos acabar com este conceito de “segurança nacional”, começamos agora, seguidamente na mídia ouvir o conceito de “segurança jurídica”.
Recentemente o ex-ministro da justiça Reale Júnior em entrevista ao jornal Estado de São Paulo comentou que a ‘tentativa’ do Ministério Público Federal em punir agentes do Estado que cometeram crimes de sequestro e ocultação de cadáveres sob alegação de que seriam crimes contínuos e permanentes, não vingariam, como no caso do major Curió. Disse ainda que dar andamento a essa ideia significaria uma imensa “insegurança jurídica”. Afirma que a lei 9.140 que criou a Comissão de Anistia estabelece em seu artigo primeiro que “se reconhece para todos os efeitos legais a morte das pessoas desaparecidas”. Alega que existe a impossibilidade jurídica para ir adiante, e que a “ideia”, significa criar insegurança jurídica, imensa diz ainda. Diz que o tema foi legitimado pela emenda constitucional que convocou a Assembleia Nacional Constituinte e já foi analisada pelo STF. Ou seja, nesta matéria a inflexibilidade do STF é notória e o país deve se ater aos preceitos constitucionais interpretados pelos seus magistrados superiores.
Ora, vejamos então dois recentes julgamentos do nosso Superior Tribunal Federal.
Em 7 de março foi julgada ilegal a criação do ICMBio (Instituto Chico Mendes), mas o STF sob o risco de anular 560 medidas provisórias voltou atrás na sua decisão. Por 7 votos a 2 “Supremo” votou atrás, pois a manutenção da ilegalidade poderia gerar “insegurança jurídica” no país.
Agora recentemente no dia 15 de março o mesmo STF, após 52 anos, que o Ministério Publico Federal pedia a nulidade de contratos de doação de terras pelo então Estado do Mato Grosso a 20 empresas colonizadoras, meio século depois este Tribunal Superior, constatou que o processo é inconstitucional e nulo. Oito ministros concordaram que o Estado e as empresas cometeram uma ilegalidade, no entanto cinco deles votaram pela manutenção dos contratos levando em conta a situação dos assentados. Afirmou ainda o ministro Fux; “-é preciso preservar a dignidade humana daqueles povoados que estão lá há 60 anos”.
O Golpe de Estado vai fazer brevemente 50 anos. “Não caberia também a pergunta: -”... e a dignidade daqueles que estão mortos, assassinados, e desaparecidos de suas famílias, por culpa do Estado, não merecem também Sr. Ministro a mesma dignidade daqueles assentados dos povoados?
Pelo que sabemos a dignidade é um conceito unívoco, ela não é uma coisa para uns e outra coisa para outros.
Ou será que ela depende conceitual, constitucional e politicamente dos intolerantes do passado regados a festas do Clube Militar?
Não estaríamos agora em nome da “segurança-insegurança jurídica” criando um limbo “llegal-ilegal” em matéria de jurisprudência dos Direitos Humanos no Brasil?
Estaria nosso “Supremo” interpretando politicamente a questão da lei da Anistia?
Seriam dúbios os preceitos desta lei diante da “insegurança jurídica”?
Em fim, sabemos o quanto este país conviveu com os “atos institucionais” e quanto os poderes da Nação foram com eles coniventes. Com a ditadura inclusive.
O dia 1° de abril está chegando.
Não faremos festa nem partiremos rumo ao revanchismo.
A “festa” do Clube Militar, se não é bravata e provocação é no mínimo uma conspiraçãozinha neo esclerosada.
Os 52.000.000 de votos da Presidenta Dilma, as estrelas verdadeiras desta Nação, lhe deram o equilíbrio necessário para não entrar no jogo dos saudosistas do Golpe. Deixem eles fazerem a festa dos pijamas de bolinhas e pantufas.
O Brasil continuará na reflexão do caminho democrático, da prática da liberdade e da legalidade constitucional.
Existiu um Golpe de Estado sim!
Existiram mártires sim!
Eles pertencem à história do Brasil.
Pertencem á verdade da Pátria.
Não pertencem ao Clube Militar.

João Vicente Goulart

quinta-feira, 29 de março de 2012

Questões de distribuição da riqueza social: Engels, sobre Dühring



280312_engelsDiário Liberdade - [Thomas Riggins, Countercurrents] 26 de março de 2012. “E o senhor Dühring se auto-homenageia, ele mesmo, ao preocupar-se tão comoventemente, numa mistura de inocência de pomba e astúcia de cobra, com o mais-consumo moderado dos Dührings do futuro.” Engels,Anti-Dühring, III-4, “A Distribuição”, p. 298

No penúltimo capítulo de Anti-Dühring, Engels discute as noções de Dühring, sobre como o produto social será distribuído no “socialitarismo” dühringuiano: Anti-Dühring, Parte III, cap. 4[2].
A primeira coisa a lembrar, da discussão prévia sobre “produção” é que Dühring nada vê de errado no modo capitalista de produzir; e o sistema de comunas pelo qual ele organizaria a sociedade preservava esse modo de produzir. O grande mal a ser superado estava no modo de distribuir, na distribuição.
Engels jamais suspeitaria que futuros “socialistas” de tradição marxista continuariam às voltas com os mesmos conceitos (que Engels chamava de “alquimias sociais”), quase 150 anos, no século 21, quando as “alquimias sociais” atenderiam pelo nome de “socialismo de mercado”.
Dühring trata a distribuição como independente da produção. Uma vez produzido o produto social, o que se faria mediante a observância das necessárias leis operatórias da produção capitalista, o produto poderia ser distribuído por um ato de vontade, de modo que assim se faria “justiça universal”. Seria possível porque, numa comuna, todos devem trabalhar e consumir baseados em que todas as formas de trabalho teriam valor igual. Esse sistema prevaleceria tanto dentro de cada comuna como nas relações entre as comunas. Além disso, o valor de troca estaria ligado ao valor de metais preciosos. Esse sistema seria um passo além das “noções enevoadas” de pensadores como Marx.
Vejamos então no que deu essa “justiça universal”. Acompanhando Engels, tomemos uma comuna modelo de 100 trabalhadores, que trabalham 8h/dia e produzem, cada um, mercadorias no valor de $100 ou um total de $10.000 em produtos. Digamos que trabalhem 250 dias/ano, com produção anual de $2,5 milhões. O modelo de “justiça universal” de Dühring exige que cada trabalhador receba o exato valor de seu trabalho, que seria 250 x $100 = $25 mil/ano. A comuna lhe paga todo o valor que ele cria, portanto, como diz Engels, ao final de um ano ou de um século ou de mil séculos, “a comuna continua tão pobre como no começo”. Não há acumulação possível nesse sistema. Os indivíduos conseguem acumular, porque um trabalhador sempre pode se autoprivar de algo e não gastar todo seu dinheiro num dado período de tempo, mas a sociedade não consegue acumular para qualquer expansão econômica nem para executar qualquer tipo de programa social.
E esse não é o único problema da comuna de Dühring. O fato de os trabalhadores todos receberem salário idêntico implica que um trabalhador solteiro sempre terá mais dinheiro para economizar que um trabalhador que tenha de sustentar família numerosa. Gradualmente, ressurgirão os ricos e os pobres, e, eventualmente, todos os problemas da sociedade capitalista. Não há leis ou regras ou regulações capazes de deter essa tendência, como exige a “justiça universal” de Dühring, dado que os trabalhadores também teriam o direito de fazer o que bem entendessem com o próprio dinheiro.
E, dado que o dinheiro seria a “encarnação social” do trabalho humano, e operaria pelas leis da economia capitalista, tanto na comuna dühringuiana como no mundo circundante, Engels concluiu que todas as regulações e leis que Dühring conceba para controlar o dinheiro “serão sempre tão impotentes contra ele quanto são impotentes contra a tabuada ou a composição química da água”.[3]
O sistema de Dühring não se mantém sobre as próprias pernas, porque ele, não Marx e outros socialistas, vivem sob o fascínio de “noções enevoadas”. Dühring absolutamente não entende as condições básicas de operação do sistema capitalista. Não foi o único, nos dias de Engels, a pretender explicar a economia sem realmente entender o que se passa no mundo – fenômeno tão rampante hoje, no século 21, quanto foi no século 19. Por isso, nesse ponto da polêmica contra Dühring, Engels faz uma pausa, para dar uma aula aos trabalhadores, de Introdução à Economia para o 1º ano do ginásio.
Para Engels, a economia capitalista baseia-se na produção de mercadorias e o único valor que o capitalismo considera é o valor da mercadoria. Dizer que determinada mercadoria tem tal valor é dizer quatro coisas sobre ela: (1) que tem um valor de uso (serve para alguma função socialmente reconhecida); (2) que foi produzida privadamente [num exemplo de modelo simples de capitalismo, não numa economia complexa nem no capitalismo de estado]; (3) que é produto de trabalho individual, mas “inconscientemente e involuntariamente” também é um produto social que contém trabalho humano em geral, avaliado mediante troca; e (4) o valor do trabalho social contido naquela mercadoria é avaliado por outra mercadoria.
Engels dá o exemplo de um relógio que tenha o mesmo valor que alguns metros de pano, digamos “50 shillings”.
Isso significa, apenas, que se mobilizou a mesma quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para fazer o relógio e para fazer aqueles metros de pano. Dado que não vivemos numa sociedade de trocas, desenvolveu-se uma mercadoria especial, usada para aferir os valores sociais relativos de todas as mercadorias, umas em relação às outras – e a essa mercadoria chamou-se dinheiro.
A expressão “valor relativo” é importante. Não se pode determinar o “valor absoluto” de todas as mercadorias – i.e., calcular o exato valor da força de trabalho usada para criar cada mercadoria. Isso, por causa da complexidade do sistema capitalista e das variações do custo do trabalho e do tempo de trabalho de fábrica para fábrica, de local para local. Com o tempo, todos esses fatores foram-se organizando e as mercadorias passaram refletir seus respectivos valores relativos, a quantidade relativa de tempo de trabalho socialmente necessário para criá-las, que passou a ser expressa em quantidades de dinheiro. Os preços são reflexo do valor relativo, não do valor absoluto, e podem flutuar muitíssimo em torno do valor real das mercadorias –, mas ao longo do tempo, acabam por refletir os valores reais que subjazem nos preços, mas de um modo relativo.
Engels oferece um exemplo, da química de seu tempo. Diz que os pesos atômicos absolutos dos elementos eram desconhecidos; então os cientistas usaram o hidrogênio como “1” e expressaram os pesos atômicos relativos dos outros elementos como se fossem múltiplos do hidrogênio. É como elevar “ouro” [ou o que se use como dinheiro] ao nível de mercadoria absoluta, equivalente geral de todas as demais mercadorias” e usá-lo para medir o valor relativo do trabalho humano (social) contido nas mercadorias.
Também é importante entender a expressão “trabalho social”. Não é o trabalho individual cru que determina o valor de uma mercadoria. O que dá às mercadorias o valor que tenham é a quantidade de trabalho que numa dada sociedade é necessário para produzir cada mercadoria – a quantidade socialmente necessária de tempo de trabalho. Pelo menos, isso é “valor”, como expresso numa sociedade capitalista.
Numa sociedade comunista, o “valor” não será expresso assim. Uma sociedade comunista terá economia planejada e os trabalhadores conhecerão o valor da força de trabalho que devotarão para produzir os produtos de que a sociedade necessita. O “dinheiro” não será necessário para aferir esse valor.
Engels observa que o que restará, numa sociedade comunista, do “conceito político-econômico de valor” será que os trabalhadores/planejadores terão conhecimento “dos efeitos úteis dos diversos objetos de uso entre eles e das quantidades de trabalho necessárias para produzi-los, ao tomar decisões sobre a produção.”
A noção de “valor” é a pedra inaugural de uma economia baseada na mercadoria e, diz Engels, “contém o germe, não só do dinheiro, mas também de todas as formas mais desenvolvidos da produção e da troca de mercadorias”.
O fato de que essa troca acontece mediada pelo dinheiro, e considerando a complexidade da produção (i.e., que em alguns campos pode estar envolvido mais ou menos do trabalho socialmente necessário), "admite a possibilidade de que a troca jamais aconteça; ou de que, pelo menos, não se realize o valor certo.” Isso é especialmente verdade quando a mercadoria é a própria força de trabalho que, como qualquer mercadoria, tem seu valor determinado pela quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas também pode ser forçada a trabalhar por períodos mais longos que o tempo socialmente necessário para que se reproduza.
No instante em que o dinheiro é inventado no interior de uma sociedade que produza, sobretudo, mercadorias, vemos logo esse seu “primeiro e mais essencial efeito”: a mercadorização de todos os aspectos da sociedade na qual, rapidamente, todas as relações começam a ser convertidas em relações de dinheiro, baseadas em interesses individuais privados. Engels menciona a dissolução do sistema de preparo do solo entre os camponeses indianos e o mesmo processo entre camponeses russos e suas comunidades. Inspirados em Marx, bem se poderia dizer “Privatizem, privatizem! Como se privatização fosse Deus, o Evangelho, o Papa e a igreja!”
Voltemos a Dühring e sua turma. Não se pode falar com algum sentido sobre “valor do trabalho” e como cuidar para que o trabalhador receba “todo o valor”, como faz Dühring ao expor seu sistema de comunas. Se se mede o valor das mercadorias pelo trabalho nelas contido, não se pode falar, nos mesmos termos, sobre o valor do trabalho. Engels diz que o mesmo acontece com o peso.
Pode-se medir o quanto pesa uma mercadoria, numa balança, pelo peso; mas não se pode falar em peso do peso. O que Dühring e outros tentam fazer é medir o “valor” do trabalho, pelos produtos produzidos (quando, de fato, é preciso medir pelo tempo) e, em seguida, pensam que fazer operar o socialismo é cuidar para que “o pleno resultado do trabalho” seja pago ao trabalhador. Isso significa que todo o valor que a classe trabalhadora cria é devolvido em termos de cada indivíduo receber todo o valor que criou.
Aí, é claro, nada sobra para os capitalistas. Dühring não vê que “a função mais progressista da sociedade” é a acumulação social. Por isso, aliás, os marxistas tanto prezam o Fundo Geral de Consumo [orig. General Consumption Fund (GCF)]. Os trabalhadores não recebem de volta 100% do valor que criaram. O ‘estado’ ou seja qual for o arranjo social que o substitua, toma uma parte do valor criado e o guarda no Fundo Geral de Consumo, o qual o dispersa para toda a sociedade (subsídios para aluguéis e alimento, atendimento à saúde, educação pública, manutenção e reparo de máquinas etc.) A classe trabalhadora recebe, assim, o valor que cria, tanto coletivamente como individualmente. O sistema dühringiano acabaria estagnado e viria abaixo – é nonsense econômico.
Por fim, Engels observa que a lei do valor é a “lei fundamental” da produção de mercadorias e, assim, também do capitalismo – “a mais alta forma” de produzir mercadoria. A lei do valor afirma que mercadorias criadas por trabalho social igual são iguais entre si – quer dizer, são mutuamente intercambiáveis. Em nossos dias, como nos dias de Engels, o único modo de manter válida essa lei, no capitalismo, “é considerá-la cegamente, como lei da natureza, inerente às coisas e às relações, e independente do desejo ou da ação dos produtores.”
E Dühring apela exatamente a essa lei, quando sonha com criar comunas onde trabalho igual seja trocado por trabalho igual baseado em seu “princípio universal de justiça”. Pensa que seja possível preservar relações econômicas capitalistas, e abolir os abusos aos quais essas relações levam. Nesse sentido, parece Proudhon, que também queria “abolir as consequências reais da lei do valor, pelos meios mais fantásticos.”
Engels fecha seu capítulo comparando a busca de Dühring por uma nova sociedade baseada em suas ideias de distribuições justas, à busca do Don Quixote pelo elmo de Mambrino que, bem examinado, nunca passou de uma bacia de barbeiro.

[1] Thomas Riggins é editor associado da revista Political Affairs (http://www.politicalaffairs.net/) e colaborador da revista People's World  (http://www.peoplesworld.org/), ambas online.
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores [NTs].
[2] ENGELS, Friederich, Anti-Dühring [publicado na revista Vorwärts, de 3/1/1877 a 7/7/1878]. Parte do livro é acessível em português (e detalhes da tradução), em http://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/index.htm. O capítulo aqui comentado (Parte III, Socialismo; cap. IV, Distribuição), infelizmente, não aparece traduzido lá. Pode ser lido em espanhol, em http://www.ucm.es/info/bas/es/marx-eng/78ad/78AD304.htm  [NTs].
[3] “O dinheiro impõe a forma de mercadoria e arrasta ao mercado até objetos produzidos para consumo próprio direto. Assim, a forma mercadoria e o dinheiro irrompem até no interior doméstico das comunidades diretamente associadas para produzir, e quebram, um depois do outro, os laços comunitários e fazem explodir a comunidade num monte de produtores privados” (Engels, Anti-Dühring, III-4, p. 308) [Nts].

quarta-feira, 28 de março de 2012

Como tantos previram que aconteceria fracassou a tentativa de ‘trocar o regime’ de Assad



Há cerca de dois, três meses, o sucesso pareceu próximo, quando a oposição tomou alguns bairros de cidades importantes

28/03/2012

Patrick Cockburn, Counterpunch
do Coletivo de Tradutores Vudu

“A Síria não cairá. (...) A ideia de o governo Barack Obama dos EUA dizer a Assad que faça as malas e “vá-se da Síria” já nasceu morta, desde o primeiro vagido. E se Assad ficar onde está? O que fará Washington? Fará chover sobre ele os aviões-robôs tripulados a distância, até destruir Assad, Damasco, Aleppo, grande parte da Síria... sob o pretexto de que teria “responsabilidade de proteger”?!” 
Pepe Escobar, “A Síria não cairá”12/8/2011


“Bashar al-Assad não sairá. Não, pelo menos, agora. Não, provavelmente, por um longo tempo. Os jornais do Oriente Médio estão cheios de histórias sobre se Assad vive ou não seu “momento Benghazi” – matérias quase invariavelmente enviadas prontas de Washington ou Londres ou Paris. – 
Poucos na Região entendem como é possível que o ocidente veja tão mal e entenda tão pouco.”



Fracassou a tentativa, que durou um ano inteiro, de ‘trocar o regime’ do presidente Bashar al-Assad. Há cerca de dois, três meses, o sucesso pareceu próximo, quando a oposição tomou alguns bairros de cidades importantes, como Homs e Deir el-Zour. Falava-se até de “zonas aéreas de exclusão” e intervenção militar.

Implantaram-se sanções econômicas severas contra a já precária economia síria. Dia após dia, jornais e televisões só faziam repetir que a pressão aumentava sobre Assad, e que estaria próxima a hora de trocar o governo em Damasco.

Nada disso aconteceu. Não acontecerá à Síria o que já aconteceu à Líbia. A mais recente ação internacional foi da União Europeia, que passou a negar à esposa de Assad, Asma, e à mãe dela, o direito de viajar por países da EU (mas Asma, que é cidadã britânica, continua podendo entrar e sair da Grã-Bretanha). Nada poderia ser mais eloquente. 

O secretário do Exterior, William Hague, diz que assim aumenta a pressão sobre o governo sírio, mas, de fato, só mostra que não tem meios para pressionar Assad. Impedir Asma de ir às comprar em Paris ou Roma – supondo que ela algum dia tenha manifestado tais desejos – só mostra o quanto os EUA, a EU e seus aliados no Oriente Médio estão sem alternativas, no que tenha a ver com Damasco.

“Ninguém está discutindo operações militares” – disse o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon, semana passada. O Exército Síria Livre, da oposição a Assad, perdeu as bases que conquistara na cidade de Homs, na província de Idlib, ao norte, e, mais recentemente, também em Deir el-Zour, no leste. Na 3ª-feira passada, soldados sírios, com apoio de blindados, chegaram, vindos dos quatro lados, a Deir el-Zour, que fica a cerca de 100 km da fronteira com o Iraque, obrigando as milícias da oposição a escafeder-se e procurar abrigo em casas e apartamentos, depois de rápida troca de tiros. Com isso, tornou-se ainda mais difícil para o ocidente infiltrar armas pela fronteira iraquiana, a partir da província de Anbar, predominantemente sunita. O rápido avanço do exército sírio, ali, contrastou com o sítio que a oposição manteve, durante quase um mês, ao distrito de Baba Amr em Homs, durante o qual morreram centenas de pessoas e grande parte das construções ficaram reduzidas a ruínas. Arábia Saudita e Qatar divulgaram festivamente que estavam armando a oposição síria. Hoje, já não há sinais de que estejam fazendo isso.

O que saiu errado, para os que pregavam rápida ‘troca de regime’ na Síria? De modo geral, pode-se dizer que superestimaram a própria capacidade, e levaram demasiadamente a sério a própria propaganda. 

Desde janeiro, tudo que fizeram foi louvado em todo o mundo como justa intervenção militar internacional, ou como convincente possibilidade de vir a ser isso. Mas deixou de ser qualquer coisa semelhante a isso, a partir de 4/2/2012, quando Rússia e China vetaram resolução do Conselho de Segurança da ONU apoiada pela Liga Árabe que conclamava Assad a deixar o poder. 

A experiência de EUA, EU, OTAN e estados árabes do Golfo, na derrubada de Muammar Gaddafi acabou por ser má conselheira, quando se tratou da Síria.

Isso, precisamente, é o que revolucionários e contrarrevolucionários vêm aprendendo ao longo dos séculos. O que dá resultados num local é muitas vezes receita de desastre, em outro. E há também o problema da interpretação errônea do foi feito na Líbia.

Quem assista à rede de televisão al-Jazeera terá a impressão de uma heroica milícia rebelde derrubou um tirano. De fato, a vitória militar na Líbia só foi possível graças aos ataques aéreos da OTAN. As milícias armadas locais, na Líbia, nunca passaram de frágil força de ocupação, que só aparecia depois que os ataques aéreos abriam caminho (a mesma receita que foi aplicada no Afeganistão em 2001 e no Kurdistão iraquiano em 2003).

Na Síria, as condições sempre foram completamente diferentes. O regime tem um núcleo radical apoiado na comunidade alawita. Tem exército forte e bem organizado, tem forças de segurança. Praticamente não houve deserções nem nos altos níveis nem nos escalões inferiores do exército sírio. As forças que apoiam Assad entenderam que teriam de lutar até o fim e estavam preparadas para resistir contra quem se interpusesse no caminho. Sanções econômicas não preocuparam o regime, porque ditaduras têm pleno controle dos recursos, mesmo quando reduzidos em quantidade. Com o prolongamento dos confrontos, Assad perdeu, cedo, o apoio de grande parte da comunidade empresarial síria. 

Atualmente, a militarização do conflito já não ameaça gravemente o regime, no estágio em que está; é fator irritante, embora isso possa mudar caso a oposição faça, para o futuro, uma opção pela guerra de guerrilhas.

No início do segundo semestre do ano passado, parecia que Assad enfrentava a mais poderosa coalizão internacional jamais vista. Incluía Arábia Saudita e Qatar, EUA, União Europeia e Turquia. O que se viu logo depois é que todos esses eram a favor de fazer-se algo em nome da democracia e de derrubar Assad... desde que algum outro fizesse (fosse lá o que fosse). Falou-se muito sobre “paraísos seguros” que estariam sendo criados nas fronteiras de Jordânia e Turquia. Mas nem Jordânia nem Turquia mostraram sinais de entusiasmo para qualquer tipo de ação que, imediatamente depois, levaria a conflito armado direto contra a Síria. O rei Abdullah da Jordânia chegou a dizer que nada tinha contra os tais “paraísos seguros”, desde que se mantivessem bem longe da Jordânia. A Turquia refreou seus ardores democráticos anti-Assad logo que percebeu que acabaria envolvida num conflito regional entre xiitas e sunitas que levaria o Irã a atacar a Turquia, se preciso fosse, para defender seu aliado sírio.

A oposição síria fez o que pôde para dar ao mundo a impressão de que o que fora feito na Líbia poderia ser reaplicado na Síria. Hoje estão sendo criticados pelas divisões internas, pela falta de comando; talvez não tivessem outra alternativa, além de tentar o que tentaram. (...) 

A militarização do conflito e a sectarização crescente favoreceram o regime de Assad, contra qualquer aspiração democrática legítima que a oposição acalentasse. E a sectarização não enfraquece só a oposição síria: ela também ajuda a enfraquecer a coalizão internacional contra Assad. 

Em ano de eleições presidenciais, os eleitores norte-americanos não se preocupam muito com quem governe a Síria; mas preocupam-se muito com a al-Qaeda.

Um dos motes de campanha de Barack Obama na campanha presidencial será apresentar-se como presidente cujo governo matou Osama bin Laden e manteve-se sempre focado, diferente do governo Bush, em vingar o ataque do 11/9. A Casa Branca não quer que a al-Qaeda dê sinais de vida. Por isso anda nervosa com o papel que aquela organização vai ganhando dentro da oposição a Assad, na Síria. 

Semana passada, por exemplo, um grupo inspirado na al-Qaeda e que se autodenominou Al-Nusra Front to Protect the Levant [Frente Al-Nusra para Proteger o Levante] declarou-se responsável por dois ataques de suicidas-bomba em Damasco, em que morreram mais de vinte pessoas. “O regime sírio tem de parar de massacrar os sunitas, ou pagará pelo pecado dos alawitas” – disse a Frente Al-Nusra em declaração distribuída em vídeo. – “O que virá será mais amargo e doloroso, se Deus for servido”. 

O regime sírio não cairá, se não houver mudança radical no equilíbrio de forças. A indicação do ex-secretário da ONU Kofi Annan, como enviado da ONU e Liga Árabe para negociar a paz, nunca passou de manobra ocidental para esconder o fracasso da oposição a Assad e de seus aliados ocidentais.


* Epígrafes acrescentadas pelos tradutores [NTs].

terça-feira, 27 de março de 2012

Venezuela: revolução na saúde pública


260312_saudeAvante! - [Pedro Campos] Se alguma revolução se deu na Venezuela desde 1999 ela foi, sem dúvida alguma, no campo da saúde pública.

Poderíamos escrever sobre a educação ou sobre o investimento social, mas dediquemo-nos hoje às políticas de saúde pública para que se possa entender algumas das razões pelas quais a oligarquia criola aposta forte – e sobretudo feio – contra a revolução bolivariana.
"Chávez politizou a saúde quando trouxe os médicos cubanos" é o que vocifera a oposição reacionária para dizer que o país caiu nas mãos "dos castro-comunistas, que são os que realmente mandam na Venezuela".
Esta demonização da administração chavista começou ao mesmo tempo que a oligarquia e o imperialismo suspeitaram que Hugo Chávez tinha chegado ao poder para cumprir com o que tinha prometido: governar para as grandes maiorias mais pobres do país. No enquadramento da Missão Bairro Adentro, a chegada do primeiro contingente de galenos da ilha deu-se em 2002, depois do golpe de estado de abril do mesmo ano.
Por que foi necessário aceitar a ajuda cubana neste campo? Acaso não há médicos na Venezuela? Claro que sim. Só que, historicamente, esses mesmo médicos – uma grande parte deles – entendem o exercício da medicina como uma forma de enriquecimento pessoal e negaram-se sempre a atender a população dos bairros de lata e das pequenas povoações fora de Caracas e outras grandes cidades.
Dito de uma maneira mais crua, foi necessário aceitar a solidariedade do governo cubano no capítulo da saúde – neste momento há cinco mil consultórios populares atendidos por médicos cubanos – porque de outra forma a grande maioria dos venezuelanos pobres e das zonas marginais continuaria a morrer por falta de assistência sanitária. Se somarmos a esta situação o fato de que as faculdades de medicina das universidades tradicionais não se renovaram no tempo, era óbvio que se tornava imperativo fazer algo de diferente.
Uma nova geração de médicos
A partir desta realidade, a revolução bolivariana começou a desenhar novas políticas de saúde, distintas das dos governos anteriores e nas quais se incluía a criação de um novo modelo de atenção sanitária, baseado fundamentalmente na atenção primária em matéria de prevenção e promoção da atenção oportuna das doenças. Impunha-se, também, mudar o perfil de formação dos novos médicos e assim nasceu o programa nacional de formação em medicina integral, que foi aprovado pelo Conselho Nacional de Universidades e confiado a cinco universidades do país.
Isto causou um enorme burburinho e os Médicos Integrais Comunitários foram imediatamente acusados – como já tinha sucedido com os cubanos – de serem "bruxos e xamãs", e a Academia Venezuelana de Medicina afirmou – sem que a mentira fizesse corar os declarantes – que eram formados apenas em três anos. A verdade é que quem quiser consultar o programa de estudos pode facilmente constatar que os novos médicos estudam durante seis anos durante os quais cumprem 14.084 horas presenciais e práticas, o que vem a ser quase o dobro das 8.500 horas que cursam os estudantes de medicina tradicional! Mas isto não impede que profissionais e estudantes reaccionários se manifestem – livremente! – contra os médicos integrais comunitários, acusando-os de falta de preparação científica e escondendo-se detrás de uma falsa preocupação com o que será da saúde dos venezuelanos se forem tratados por uns "incompetentes" aos quais já classificam de futuros réus de má práxis médica.
Um programa académico exigente
Os três primeiros anos de formação são em módulos de atenção primária: prática de manhã e teoria durante a tarde. No terceiro ano, os alunos são enviados para os Centros de Diagnóstico Integral, onde entram em contato com as patologias mais difíceis. Nos anos seguintes ingressam aos hospitais, onde, tal como no caso dos estudantes tradicionais, praticam serviços básicos nas áreas de pediatria, obstetrícia, ginecologia, medicina interna, traumatologia, dermatologia...
Há pouco mais de um mês saiu o primeiro contingente de 8.500 destes médicos, que, além dos tais seis anos, apresentaram uma prova de certificação final – coisa que não sucede nas universidades tradicionais. Nessa prova o candidato a médico deve demonstrar os conhecimentos adquiridos e que tem as competências diagnósticas e terapêuticas suficientes. São médicos "novos", com um profundo compromisso com a Medicina Social.
Fonte: Avante!

segunda-feira, 26 de março de 2012

Para a opinião pública internacional: a verdade sobre a Grécia


250312_mikis2Rebelión - [Tradução do Diário Liberdade] Este chamado foi enviado por Mikis Theodrakis no domingo, dia 12 de fevereiro de 2012, na ocasião da grande manifestação da Praça Sintagma em Atenas, durante o debate parlamentar sobre a adoção do novo Memorando imposto pela Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e o FMI) à Grécia. Quando Theodorakis, 86 anos, e Manolis Glézos, 90 anos, pediram aos policiais (foto) da unidade especial antimobilizações (MAT) para se dirigirem à multidão desde as escadarias do Parlamento, a única resposta destes últimos foi um disparo denso de gases lacrimogêneos que parecia uma tentativa de assassinato. É assim que se tratam neste país “entroikizado” os homens que, no Japão, seriam como “tesouros vivos”.

Um complô internacional está em andamento, com o objetivo de levar a cabo a destruição de meu país. Os assaltantes começaram em 1975, com o foco na cultura grega moderna, depois continuaram a decomposição de nossa história recente e de nossa identidade nacional e, hoje, tentam nos exterminar fisicamente mediante o desemprego, a fome e a miséria. Se o povo grego não se levanta para pará-los, o risco de desaparecimento da Grécia é bem real. Eu o vejo chegar nos próximos dez anos. O único elemento que vai sobreviver de nosso país é a memória de nossa civilização e de nossas lutas pela liberdade.
Até 2009, a situação econômica da Grécia não tinha nada de muito grave. Os grandes males de nossa economia eram os gastos não moderados para a compra de material de guerra e a corrupção de uma parte do mundo político, financeiro e midiático. Mas uma parte da responsabilidade coube aos Estados estrangeiros, como Alemanha, França, Inglaterra e EUA, que ganharam bilhões de euros às custas de nossa economia nacional, vendendo-nos todos os anos o material de guerra. Esta sangria constante nos devastou e não nos permitiu mais seguir avançando, enquanto era fonte de enriquecimento para outros países. Pode-se dizer o mesmo sobre a corrupção. Por exemplo, a empresa alemã Siemens tinha um setor especial encarregado de corromper os gregos, com a finalidade de posicionar melhor os seus produtos no mercado grego. Deste modo, o povo grego foi vítima deste duo de predadores, alemães e gregos, que se enriqueceram às custas da Grécia.
É evidente que estes dois grandes males poderiam ser evitados se os dirigentes dos dois partidos políticos pró-americanos não estivessem penetrados pela corrupção. Esta riqueza, produto do trabalho do povo grego, foi assim drenada às caixas-fortes dos países estrangeiros. Os políticos tentaram compensar esta fuga do capital recorrendo ao endividamento excessivo que desembocou em uma dívida pública de 300 bilhões de euros, ou seja, 130% do PIB.
Mediante este roubo, os estrangeiros ganharam duplamente: por uma parte, com a venda de armas e de seus produtos e, por outra parte, mediante os interesses da dívida governamental (e não o povo). Como vimos, nos dois casos, o povo grego foi vítima principal. Um só exemplo bastará para convencê-lo: em 1986, Andreas Papandreou tomou emprestado um bilhão de dólares de um banco de um grande país europeu. Os juros deste empréstimo não foram reembolsados até 2010 e se elevaram a 54 bilhões de euros.
No último ano, Juncker declarou que havia notado que a hemorragia financeira massiva da Grécia se devia aos gastos excessivos (e forçados) para a compra de material de guerra - da Alemanha e da França, em particular. E concluiu que estes vendedores nos conduziam a um desastre certeiro. Desgraçadamente, reconheceu que não havia feito nada para contrariar isto, para não prejudicar os interesses dos países amigos!
Em 2008, a grande crise econômica tomou conta da Europa. A economia grega não foi salva. No entanto, o nível de vida que era até este momento suficientemente alto (a Grécia se classificava entre os 30 países mais ricos do mundo), se manteve praticamente sem mudanças, apesar do aumento da dívida pública. A dívida pública não se traduz necessariamente em uma crise econômica. A dívida dos grandes países, tais como os EUA e a Alemanha, é estimada em bilhões de euros. Os fatores determinantes são o crescimento econômico e a produção. Se estes dois fatores são positivos, é possível endividar-se com os grandes bancos a uma taxa de juros inferior a 5% até que a crise tenha passado.
Em novembro de 2009, no momento da chegada de George Papandreou ao poder, estávamos exatamente nesta posição. Para que se compreenda o que o povo grego pensa hoje de sua política desastrosa, cito duas cifras: nas eleições de 2009, o PASOK – o partido de G. Papandreou – obteve 44% dos votos. Hoje, as pesquisas não lhe dão mais que 6%.250312_mikis
Papandreou poderia enfrentar a crise econômica (que refletia a da Europa) com os empréstimos dos bancos estrangeiros a uma taxa habitual, ou seja, inferior a 5%. Se o tivesse feito, nosso país não teria tido problemas. Como estávamos em uma fase de crescimento econômico, nosso nível de vida teria melhorado.
Mas Papandreou já havia planejado sua conspiração contra o povo grego no verão de 2009, quando ele se encontrou secretamente com Strauss-Kahn, com o fim de colocar a Grécia sob a tutela do FMI. Esta revelação foi feita pelo antigo diretor do FMI.
Para chegar lá, o quadro da situação econômica de nosso país teve de ser falsificado, para que os bancos estrangeiros tivessem medo e elevassem as taxas de juros dos empréstimos a aportes proibitivos. Esta operação onerosa começou com o aumento artificial do déficit público de 12% a 15% no ano de 2009 (Andreas Georgiou, presidente do conselho administrativo do Instituto Nacional de Estatística, ELSTAT, decidiu subitamente em 2009, sem pedir acordo nem informar ao seu conselho administrativo, contabilizar no cálculo do déficit público certos organismos e empresas públicas que não tinham sido contabilizados em nenhum outro país europeu antes, exceto na Noruega. O objetivo era fazer subir o déficit da Grécia acima do da Irlanda (14%), para que seja ela a que tenha o papel do elo frágil da Europa. Faz 20 dias, o procurador Pepònis levou perante a justiça Papandreou e Papakonstantinou (ex-ministro de Finanças), para prestarem contas sobre este crime.
Na continuação, Papandreou e seu ministro de Finanças levaram a cabo uma campanha de descrédito durante 5 meses, no transcurso da qual tentaram persuadir os estrangeiros que a Grécia estava como o Titanic, afundando-se, que os gregos eram corruptos, preguiçosos e, pois, incapazes de fazer frente às necessidades do país. Depois de cada uma de suas declarações, as taxas de juros subiram para que a Grécia não pudesse pedir mais emprestado e que passasse por um resgate nossa adesão ao FMI e ao Banco Central Europeu. Na realidade, era o começo de nosso fim.
Em maio de 2010, o ministro de Finanças assinou o famoso Memorando, ou seja, nossa submissão ao nosso credor. Segundo a lei grega, a adoção de um acordo dessas características deve ser submetida ao Parlamento e aprovada por três quintos dos deputados. Bem, o Memorando e a Troika que nos governam funcionam ilegalmente – não somente a respeito da lei grega, mas também do direito europeu.
Desde então, supondo que nosso caminho até a morte seja representado por uma escada de 20 degraus, recorremos já a metade da mesma. Imagine que o Memorando presenteia aos estrangeiros nossa independência nacional e a propriedade nacional, a saber: nossos portos, nossos aeroportos, a rede de rodovias, a eletricidade, a água, todas as riquezas naturais (no subsolo e submarinhas) etc. Agregue a isto nossos monumentos históricos, como a Acrópoles, Delfos, o Olímpio, Epidauro e outros lugares, uma vez que tenhamos renunciado de fazer valer nossos direitos.
A produção foi paralisada, a taxa de desemprego disparou para 18%, 800.000 comércios fecharam, como também milhares de fábricas e centenas de trabalhadores manuais. Um total de 432.000 empresas quebraram, dezenas de milhares de jovens cientistas deixaram nosso país, que se cobre mais e mais das trevas da Idade Média. Milhares de pessoas que viviam bem até uma data recente, estão agora na busca por alimento no lixo e dormem nas calçadas.
Entretanto, supostamente estamos vivendo graças à generosidade de nossos credores, os bancos europeus e o FMI. De fato, a totalidade do pacote de dezenas de bilhões de euros atirado sobre a Grécia, volta a quem o outorgou, enquanto estamos cada vez mais endividados por causa dos juros insuportáveis. E como é necessário manter funcionando o Estado, os hospitais e as escolas, a Troika sobrecarrega as classes médias e as baixas com taxas exorbitantes que levam diretamente à fome. A última vez que vivemos esta situação de fome generalizada no nosso país foi no início da ocupação alemã, em 1941, com cerca de 300.000 mortes em seis meses somente. Em nossos dias, o espectro de fome volta ao nosso país infortunado e caluniado.
Se pensares que a ocupação alemã nos custou um milhão de mortos e a destruição completa de nosso país, como podemos aceitar, nós os gregos, as ameaças da Sra. Merkel e a intenção dos alemães de nos impor um novo Gauleiter, que desta vez usará uma gravata?
O período da ocupação alemã, de 1941 até outubro de 1944, prova que a Grécia é um país rico e até que ponto os gregos são trabalhadores e conscientes (consciência do dever de liberdade e do amor à pátria).
Quando a SS e a fome mataram um milhão de pessoas e a Wehrmacht destruía nosso país, confiscava toda a produção agrícola e o ouro de nossos bancos, os gregos puderam sobreviver graças à criação do movimento de Solidariedade Nacional e de um exército de resistência que contava com 100.000 combatentes, que fixaram 20 divisões alemãs em nosso país.
Ao mesmo tempo, os gregos sobreviveram não somente graças à sua aplicação no trabalho, mas também, nas condições da ocupação, graças a um grande desenvolvimento da arte grega moderna, em particular no domínio da literatura e da música.
A Grécia elegeu a via do sacrifício pela liberdade e a sobrevivência ao mesmo tempo.
Fomos atacados, respondemos com Solidariedade e Resistência e fomos sobrevivendo. Fazemos agora exatamente a mesma coisa, com a certeza de que o povo grego será finalmente vencedor. Esta mensagem está dirigida à Sra. Merkel e ao Sr. Schäuble, destacando que sigo sendo amigo do povo alemão e um admirador das grandes contribuições à ciência, à filosofia, à arte e à música, em particular. A maior prova destes grandes feitos é o fato de que confiei a totalidade de minha obra musical aos dois editores alemães, Schott e Breitkopf, que contam entre os maiores editores do mundo e minha colaboração com eles é muito amigável.
Ameaçam nos expulsar da Europa. Se não nos querem, devolvemos dez vezes mais; não queremos formar parte da Europa de Merkel-Sarkozy.
Hoje, domingo 12 de fevereiro, eu e Manoles Glezos - o herói que arrancou a suástica da Acrópole, dando sinal da não somente resistência grega, mas também da resistência europeia contra Hitler - nós mesmos nos preparamos para participar de uma manifestação em Atenas. Nossas ruas e nossas praças estarão cheias de milhares de pessoas que manifestarão sua cólera contra o governo da Troika.
Ontem escutei o primeiro ministro/banqueiro dizer, dirigindo-se ao povo grego, que quase chegamos ao fundo do poço. Mas quem nos levou a este ponto em dois anos? São os mesmos que no lugar de estar na prisão, ameaçam os deputados para que votem por um novo Memorando pior que o primeiro, que será aplicado pelas mesmas pessoas que nos levaram a onde estamos. Por que? Porque isso é o que nos obrigam a fazer o FMI e o Eurogrupo, ameaçando-nos no caso de não obedecer, com a quebra... Aqui se representa um teatro absurdo. Os círculos que nos odeiam (gregos e estrangeiros) e que são os únicos responsáveis da situação dramática de nosso país, ameaçam-nos e nos chantageiam para poder prosseguir com sua obra destrutiva, até nossa extinção definitiva.
No transcurso de dois séculos, sobrevivemos em condições muito difíceis. É certo que os gregos não somente sobreviverão, mas poderão reviver, inclusive se somos conduzidos à força ao último degrau da escada que leva à morte.
Atualmente, empenho todas as minhas forças para unir o povo grego. Tento convencê-lo de que a Troika e o FMI não são a única saída. Que há outra solução: mudar o rumo da nação. Girar-nos à Rússia para lograr uma cooperação econômica e a formação de associações que nos ajudariam a valorizar nossas riquezas em termos favoráveis em relação ao interesse nacional.
Proponho não comprar mais material militar dos alemães e dos franceses. Faremos tudo para que a Alemanha nos pague as reparações de guerra devidas. Estas reparações se elevam, com os juros, a 500 bilhões de euros.
A única força capaz de fazer estas mudanças revolucionárias é o povo grego unido em uma frente de Resistência e de Solidariedade para que a Troika seja expulsa do país. Paralelamente, há que considerar como nulos e sem valor todos os atos ilegais (empréstimos, dívidas, juros, impostos, compras de riqueza pública). Evidentemente, os sócios gregos – que já foram condenados no espírito de nosso povo como traidores –, devem ser castigados.
Estou inteiramente confiante deste propósito (a união em uma Frente) e estou persuadido que conseguiremos. Eu tomei as armas contra a ocupação hitleriana. Conheço os calabouços da Gestapo. Fui condenado à morte pelos alemães e milagrosamente sobrevivi. Em 1967, fundei o PAM (Patriotikò Mètopo - Frente Patriótica), a primeira organização de resistência contra a junta militar. Passei para a clandestinidade. Fui detido e preso no “matadouro” da polícia da junta. Finalmente, também sobrevivi.
Hoje, tenho 87 anos, e é muito provável que não estarei mais no dia em que minha amada pátria seja salva. Mas morrerei com a consciência tranquila, porque continuarei a cumprir com o meu dever em relação as meus ideais de liberdade e direito.

Mikis Theodorakis é um famoso compositor grego e resistente ao regime que instaurou a junta dos coronéis.
tlaxcala-int.org, 21 de fevereiro de 2012.
Tradução de Gabriela Blanco para Diário Liberdade