domingo, 4 de novembro de 2012

Por que nossos estádios estão vazios


Ao copiarem políticas de “modernização” excludente adotadas na Europa, cartolas brasileiros alcançaram estranha proeza. Elitizaram esporte e mantiveram clubes pobres.
Por Irlan Simões
Curitiba, 10/12/2009. Estádio Couto Pereira: Torcedores do Coritiba, entre eles integrantes da torcida Império Alviverde, invadem gramado após término da partida que rebaixou do clube à Serie B do Campeonato Brasileiro. Confusão generalizada e ação desmedida da Policia Militar ocasionaram morte de um torcedor que não participou da invasão. O Coronel Ademar Cunha Sobrinho aponta que valor do ingresso, R$ 5, foi a causa do problema e sugere às presidências dos clubes uma medida que garanta “a elitização do público”.
São Paulo, 13/5/2010. Jornal Lance: J. Hawilla, proprietário da Traffic, um das maiores traders do futebol brasileiro, declara em entrevista: “A turma que vai à geral agora, ficará assistindo só na tevê. É gente que não consome nada, depreda e mata no metrô. Não interessa mais ao futebol. Dá orgulho ver o público pagar R$ 300 pelo ingresso”.
São Paulo, 24/5/2012. Programa Arena SporTV: Em debate sobre o alto preço pago pelos torcedores para frequentar estádios, o jornalista Alberto Helena Jr defende o que classificou como “nova tendência do futebol brasileiro”. Para ele o grande público, a massa, acompanhará aos jogos pela TV, enquanto o estádio terá a dinâmica de um teatro, com público elitizado.
Os casos acima – apenas alguns, entre muitos registrados nos últimos anos – ilustram uma lógica que vem ganhando força no futebol brasileiro. “Cartolas”, atores econômicos que veem no jogo uma fonte de lucros fáceis e comandantes das forças de segurança despreparados têm defendido, juntos, o aumento do preço dos ingressos. Sustentam que a exclusão dos torcedores mais pobres dos estádios seria a única saída viável para o esporte.
Os resultados impressionam. Em 30 de setembro, um domingo ensolarado, o Rio de Janeiro receberia mais uma vez um dos maiores clássicos do mundo. Entrariam em campo o líder do campeonato brasileiro, o Fluminense, um timaço com estrelas de nível internacional, e o seu arqui-rival, o Flamengo, embalado por uma sequência de bons resultados que animava os torcedores a uma arrancada.
O Fla-Flu tinha tudo para ser o grande jogo do ano. Tinha, não fosse um público pífio, de 23 mil torcedores que compareceram ao Engenhão. O velho torcedor rubro-negro ou tricolor provavelmente sentiu que aqueles tempos de plateias que superavam a marca de 100 mil torcedores – cena comum em dias de clássicos – foram-se para sempre.
Até o início da década de 1990, antes das sucessivas reformas que encolheram a capacidade do Maracanã, era possível ver públicos gigantescos, como o que levou mais de 112 mil pagantes em junho de 1995. Ainda em 2009, mais de 78 mil torcedores pagaram ingresso para ver o clássico no Maracanã. Acontece que de lá para cá o valor dos ingressos não parou de crescer.
Fetiche da modernização
É preciso relembrar o processo que arrastou – ou ergueu – o preço dos ingressos nos Brasil, a partir do início da década de 2000. Era o tempo da entrada de grandes investidores nos clubes, um momento que exigia do futebol brasileiro uma “modernização” elitista e excludente. Vislumbrando e idealizando modelos europeus, sem fazer a necessária diferenciação entre os parâmetros de consumo, emprego e renda, o futebol nacional entrou na aventura.
Um dos marcos desse processo foi o Atlético Paranaense. Desenvolvendo uma arrojada engenharia financeira, em contato com a multinacional de material esportivo Kyocera, construiu o que naquele tempo já se chamava de “arena multiuso”, o grande sonho de consumo dos clubes locais.
As arenas já eram realidade nas grandes competições europeias e o Brasil possuía um desejo quase obsessivo por estruturas daquele porte. O Atlético fez a sua. Foi campeão logo depois, quando os mesmos investidores montaram um elenco sem igual na história do clube e venceram o campeonato brasileiro pela primeira e única vez na vida. Era “o” clube, o exemplo que os atores econômicos do futebol brasileiro queriam difundir.
Durou pouco. Passada sua glória efêmera, o Atlético caiu para a segunda divisão e ainda não completou a estrutura da arquibancada da moderna arena, que os torcedores rivais hoje ironizam e qualificam como “semi-estádio”.

Ainda assim o clube marcou um período no qual quem investisse na “modernização” sentia-se no direito – apesar da revolta e boicote dos torcedores – de aumentar quanto pudesse o preço dos ingressos. Melhoramos a qualidade e o conforto da Arena da Baixada, a partir de 99, e entendemos que os preços teriam de ser equivalentes”, disse então Mário Petraglia, presidente do clube.

Opção pela elitização
O argumento espalhou-se pelo Brasil. O preço do ingresso deixou de ser uma questão de equilíbrio entre as contas do clube e as contas do torcedor. Tornou-se mera remuneração por um serviço. O próprio torcedor estava sendo ressignificado: agora, bastava que se comportasse como consumidor.
O que se viu, por todo o país, foi a criação de setores especiais, que se diferenciavam da arquibancada (então, ainda presente) por padrões diferenciados de conforto, serviço e, evidentemente, preço dos ingressos.
Foi uma mudança gradual. Primeiro, os setores especiais, com cadeiras de plástico, contrastavam com a aridez do cimento, às vezes custando o dobro. Aos poucos, foram se expandindo, até tomar a totalidade dos estádios. A fase seguinte seria a criação de “setores VIP”, com cadeiras mais confortáveis, agora contrastando com as de plástico… Entre 2004 e o início do campeionato brasileiro de 2012, a inflação oficial (IPCA) foi de 47,97%. Mas o preço dos ingressos aumentou, em média, três vezes mais – 152,06% –, segundo levantamento de O Estado de S.Paulo.
Os “setores populares” simplesmente deixaram de ser populares. Os melhores exemplos desse processo são os estádios São Januário (Vasco da Gama), Beira-Rio (Internacional), Olímpico (Grêmio, agora construindo novo estádio), Morumbi (São Paulo), Vila Belmiro (Santos), Palestra Itália (Palmeiras, em reforma), Barradão (Vitória) e Ilha do Retiro (Sport).
Ameaça ao futebol brasileiro
Que consequências trouxe a “modernização”, dez anos depois? Do ponto de vista social, os números são eloquentes. Entre 2007 e 2011, a média de público nos estádios, durante o campeonato brasileiro, caiu 16% – de 17,5 para 15 mil espectadores. Na disputa deste ano, nova queda abrupta: apenas 12,6 mil pessoas, em média, até a 33ª rodada. O “país do futebol” despencou para 17º do mundo, no ranking dos que mais atraem público a suas arenas. Está atrás dos grandes polos europeus (Alemanha, Inglaterra, Espanha e Itália); mas também de nações com tradição futebolística menos densa (México, Estados Unidos e China); de países com população 25 vezes menor que a nossa (Suíça); e até mesmo da segunda divisão do campeonato inglês…
Mas engana-se quem crê que copiar o futebol europeu teria, ao menos, colocado os clubes nacionais em paridade econômica com os do Velho Continente. A fórmula que alcançou resultados financeiros na Europa baseia-se em ingressos muito caros, para um público elitizado porém numeroso, devido a renda muito mais alta. Implantada mecanicamente ao Brasil, está esvaziando os estádios, sem oferecer aos clubes a mínima condição de se colocarem no patamar dos mais poderosos do mundo.
A tabela abaixo é eloquente. Ela mostra que a renda de estádio alcançada pelos clubes no campeonato brasileiro é 25 vezes inferior à arrecadação anual das equipes italianas, e 40 vezes menor que a dos times ingleses.
Quem assiste pela TV aos jogos dos campeonatos europeus e os compara com os nossos; ou sofre acompanhando as partidas da seleção brasileira tem a sensação desconfortável de que também regredimos do ponto de vista técnico. Para explicar este fenômeno, é preciso investigar múltiplas causas. Mas a elitização é, decerto, um fator destacado. Ao afastar dos estádios quem sempre deu vida a eles; ao transferir para o esporte a lógica de segregação social, a “modernização” pode estar matando a mágica que fez do futebol brasileiro, no século passado, um ícone da cultura nacional e uma expressão de arte apreciada em todo o mundo.

Um comentário:

  1. Isso tem parte? Sim... Mas o problema não se limita apenas a isso.

    De qualquer forma, cabe ressaltar que essa tendência deve se fortalecer mais ainda no pós-copa, com clubes 'dependurados' vivendo como meras 'vacas leiteiras' na mão de cartolas inescrupulosos.

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