segunda-feira, 21 de maio de 2012

Democracia, representação e participação



Por Fernando Perlatto


As últimas décadas testemunharam um processo crescente de crítica às instituições identificadas com a democracia representativa, tomadas como incapazes de responder aos desafios colocados à vida política contemporânea. O enorme fosso a separar representantes e representados vem animando diversas propostas alternativas de democracia — tanto teóricas quanto práticas — que, a despeito das diferenças, têm na ideia de participação sua identidade comum. A percepção do reduzido interesse pelas disputas eleitorais e o consequente baixo comparecimento às urnas, inclusive nas democracias europeias tidas como consolidadas, somada à eclosão de movimentos como os Indignados, que tomaram recentemente as praças espanholas, evidenciam que o modelo democrático hegemônico, consolidado no decorrer do século XX, encontra-se em crise.

Importa reter que a disputa sobre o que é ou dever ser a democracia é intrínseca à própria ideia de democracia. Tomá-la como um modelo fechado e acabado é contrariar sua história e a sua própria definição, que deve ser encarada como um projeto aberto, imperfeito e em permanente reiventar-se. Se no século XIX, no rescaldo das revoluções burguesas que tiveram seu curso no final do XVIII, a reflexão sobre a democracia assumiu feições elitistas, sobretudo como decorrência da perspectiva “demofóbica” que assolava as elites políticas de então, no século XX ela acabou por ganhar características “elitistas”, uma vez que identificada como um modelo exclusivamente institucional [1]. A teoria democrática do século XX — representada principalmente pelos nomes de Joseph Schumpeter (Capitalismo, socialismo e democracia, 1942) e Robert Dahl (Poliarquia, 1971; Um prefácio à teoria democrática, 1985) — assumirá uma concepção restrita de democracia, seja associando-a à luta por poder entre líderes políticos rivais, seja assumindo-a exclusivamente como garantia de competição entre grupos de interesses, com proteção de minorias e de direitos de participação.

Na segunda metade do século XX, propostas de democracia participativa apareceram em diversos contextos, no bojo das críticas formuladas tanto ao Estado de Bem-Estar Social, quanto ao neoliberalismo. De acordo com estas análises, ambos os modelos não conseguiram dar respostas satisfatórias à questão democrática: se por um lado, o Estado de Bem-Estar Social, hegemônico em diversos países entre as décadas de 1930 a 1960, implicou na consolidação de um Estado clientelista sobreposto à sociedade civil, objeto esta de uma ação paternalística por parte de uma burocracia pouco interessada na mobilização de outros segmentos da sociedade, que não aqueles já organizados e controlados “por cima” mediante relações heterônomas (Nobre, 2004), por outro lado, o neoliberalismo, que dominou e ainda domina parte significativa dos países desde o final da década de 1970, focado na capacidade libertadora das forças do mercado, acabou por reforçar valores como o individualismo e a competitividade, se não opostos, ao menos contraditórios com aqueles fundamentais para a construção de uma vida democrática.

Centrados principalmente no aspecto institucional e tendo como horizonte normativo apenas reformas pontuais nos desenhos partidários, os chamados “modelos minimalistas” de democracia mostraram-se e ainda vêm se mostrando incapazes de darem respostas aos desejos e aspirações do homem comum e da sociedade civil organizada. Na busca da superação destes modelos, diferentes autores como Carole Pateman, C. B. Macpherson, Benjamin Barber, Jane Mansbridge e Archon Fung, entre outros, cada qual à sua maneira, defendem propostas de “democracia participativa”, muitos deles influenciados por uma concepção rousseauniana que tem como base de sustentação a ideia de “vontade geral”, segundo a qual a noção mesma de representação deve ser superada por formas de participação direta no sistema político.

Buscando um modelo alternativo, situado entre aquilo que denominou como modelos “liberal” e “republicano”, Jürgen Habermas (2004) buscou desenvolver um terceiro caminho, identificado como modelo “procedimental”, focado na ideia de deliberação. Defendendo pretensões normativas mais fortes do que a democracia liberal — a perspectiva procedimental aposta em uma esfera pública animada, como desejam os republicanos, na qual ocorram processos reais de formação da opinião e da vontade —, porém mais fracas do que o modelo republicano — apostando nas garantias estabelecidas pelo Estado liberal para a institucionalização do processo de decisão, que não deve depender do fato de os cidadãos serem suficientemente ativos ou coletivamente capazes de ação —, Habermas defende que o “assédio” às instituições liberais representativas deva ser estimulado, embora exercido sem a “intenção de conquista”, respeitando-se os limites entre as esferas do sistema político e a esfera pública envolvida no debate.

No Brasil, a discussão quanto à necessidade de ampliar os cânones democráticos para além da representação também vem ganhando força, pelo menos desde o final da década de 1970. As mobilizações que tomaram conta do país a partir deste contexto — da qual participaram, entre outros, segmentos como o “novo sindicalismo”, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), instituições científicas públicas e privadas, assim como movimentos de minorias — foram fundamentais para que instituições vinculadas à democracia participativa emergissem com força e, a despeito da composição majoritariamente conservadora da Assembleia Constituinte, entrassem de maneira destacada no próprio tecido da Constituição de 1988. No processo de transição à democracia, a nossa Carta constitucional logrou consolidar, dentro dos limites da institucionalidade democrática, instrumentos participativos, sem que, para tanto, fosse necessária a supressão dos mecanismos representativos.

As inovações participativas contidas no texto constitucional foram processadas de diversas maneiras, seja mediante a inclusão da possibilidade da realização de referendos eplebiscitos, seja pelo seu desenho descentralizador, que acabou por conferir às administrações municipais recursos e independência política para reestruturar o processo de produção de políticas públicas, possibilitando o fortalecimento de conselhos gestores e a expansão de práticas democratizadoras, como o orçamento participativo (Avritzer, 2010). Além disso, o texto constitucional também institucionalizou novos canais de participação funcional por meio das instituições do Judiciário, recuperando o tema da pedagogia cívica exercida pelo Direito, suas instituições e procedimentos, de modo a ampliar as formas da representação da sociedade civil com vias próprias para chegar à esfera pública (Werneck Vianna, 2008).

Nos últimos anos, outras inovações institucionais buscaram trazer o tema da democracia participativa para o centro da agenda política e teórica do país. A criação em 2003 do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), constituído como espaço que busca debater e, sobretudo, construir consensos entre representantes das entidades classistas de trabalhadores e empresários, além de outros setores da sociedade civil e Governo, e que garantam a efetivação dos temas considerados prioridade da agenda do governo, bem como a expansão das conferências nacionais de políticas públicas nos últimos anos, abrangendo uma enormidade de temas e mobilizando uma gama considerável de participantes, são exemplos concretos de esforços no sentido de repensar o tema da democracia nos dias atuais.

Diante deste breve quadro esboçado acima, que evidencia uma democracia que vem se consolidando nas últimas décadas mediante a combinação de instrumentos representativos e participativos, a pergunta que se faz é: há alguma necessidade de uma reforma política? Será que não atingimos um ponto ótimo, a partir do qual não se faz necessária qualquer intervenção no sistema político? Não estaríamos a caminhar para umfim da história institucional, a partir do qual basta apenas gerir o sistema, aperfeiçoando de forma reduzida os mecanismos garantidores da ordem e deixando que o sistema resolva por si só eventuais problemas? Em suma, há necessidade de mudanças no nosso sistema democrático?

De fato, é inegável e ponto a ser ressaltado que a democracia brasileira vem se expandindo de maneira significativa nos últimos anos. Alternando a experiência de regimes semidemocráticos (1945-1964) com regimes autoritários (1964-1985) e novamente democráticos (desde 1986), nosso sistema político, não obstante recuos e percalços, tem se consolidado tanto do ponto de vista do recrutamento de novos segmentos — a participação do eleitorado saltou de 16,2% da população adulta, em 1945, para 69%, em 2006 —, quanto do ponto de vista institucional (Santos, 2007). Além de ter se mostrado resistente a um processo de impeachment no início da década de 1990 e a escândalos de corrupção que assolaram o país recentemente, as duas últimas décadas, sob a hegemonia de tucanos e petistas, testemunharam o amadurecimento do nosso sistema político e das instituições representativas, que responderam bem aos processos de transição democrática e às crises políticas.

Passados mais de vinte anos da aprovação da Carta de 1988, portanto, podemos dizer que nossa institucionalidade democrática tem se robustecido, assegurando as liberdades individuais e políticas, o estabelecimento de eleições regulares e a prática da alternância de poder, fazendo com que atravessemos um momento de consolidação da rotina democrática. Contudo, é preciso ressaltar que não basta à vida democrática a rotina; nela, também se fazem necessárias a imaginação e a invenção permanentes, sob o risco da democracia se “desencantar” e funcionar como uma espécie de máquina a ser acionada a cada novo processo eleitoral. Uma democracia desencantada é aquela cujas decisões políticas se dão de “cima para baixo”, que funciona amparada apenas em suas instituições e procedimentos, exercida somente no período das eleições e que prescinde até o próximo pleito da participação da sociedade. A linguagem dessa democracia desencantada é o discurso técnico, seja do mercado, seja do Estado, que não organiza nem mobiliza a sociedade e que constrange a emergência do novo, sob o risco deste transtornar a rotina e perturbar as regras do jogo.

Nossa democracia parece, em muitos momentos, padecer desta incapacidade de imaginação e invenção. Se os últimos dezesseis anos de governos tucanos e petistas tiveram o mérito de consolidarem institucionalmente e no senso comum a estabilidade monetária e as políticas sociais como conquistas que não devem ser revogadas, ambos os partidos enfrentam hoje um déficit permanente de criatividade, no sentido de pensar alternativas e possibilidades para a reanimação da vida política do país. Os debates sobre desenvolvimento são centrados exclusivamente nas variáveis mercado e Estado, sendo relegadas a segundo plano propostas para o fortalecimento da esfera pública brasileira.

Não se trata aqui, e é importante ressaltar, de negar a importância desses processos de inclusão para a consolidação da democracia no país. Mas a vida democrática exige mais: exige mobilização da sociedade e o envolvimento da mesma para que as políticas de expansão do mercado e do Estado sejam construídas “por baixo”, com a participação autônoma daqueles diretamente atingidos por elas. Será que nossa imaginação se encerra na discussão de mais inclusão no mercado e/ou mais Estado ou menos Estado? Não seria o caso de perguntarmos: mais inclusão no mercado e mais Estado para quê?

É fundamental que atentemos para o fato de que a sociedade brasileira está se movendo. Ao contrário dos diagnósticos que apontam para a apatia reinante, percebemos uma sociedade que se organiza e se movimenta seja para protestar contra a precariedade das condições de vida e contra baixos salários — como evidenciam as manifestações que ocorreram recentemente nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Jirau e nas mobilizações dos bombeiros no Rio de Janeiro —, seja artisticamente — como testemunham as diversas manifestações culturais, como festas e círculos de forró, música brega, funk, samba, etc., que explodem pelas periferias do país e das grandes cidades —, potencializadas pelas novas ferramentas da internet, como o twitter. Essa movimentação ocorre no âmbito do que tenho chamado de esfera pública subalterna (Perlatto, 2010), mas não alcança a esfera pública institucionalizada pela incapacidade dos partidos políticos de interpretarem suas vontades, desejos e aspirações, organizando-as politicamente.

Encontramos-nos, portanto, diante de uma situação que demanda mudanças capazes de fortalecer os partidos políticos, elos centrais de uma vida democrática pulsante, que, tanto por questões internas — ausência de processos democráticos de deliberação, escolha de dirigentes e candidatos — quanto externas — domínio do Executivo sobre a agenda do Legislativo —, encontram-se fragilizados e pouco acessíveis ao homem comum, com suas aspirações e desejos por mudança. Nesse sentido, é que se faz necessária uma reforma política que fortaleça partidos capazes de contribuírem para a organização e animação da vida popular, de modo que os temas e atores emergentes “de baixo” possam disputar os rumos políticos do país na esfera pública institucionalizada. Esta reforma deve ser capaz de fortalecer e moralizar as instituições e a rotina da democracia representativa — mediante o estabelecimento, por exemplo, do financiamento público das campanhas —, mas deve também se abrir para ampliação das possibilidades da democracia participativa, apostando na sociedade brasileira, fonte do reencantamento permanente da nossa democracia.

Uma democracia encantada é aquela que está enraizada nas aspirações do homem comum e é alimentada por uma sociedade vibrante e por uma cultura política de participação constante. Esta forma de democracia não se move somente a partir das forças do mercado, como se acreditava na década de 1990, nem se sustenta somente com o robustecimento do Estado, como querem crer setores importantes do atual governo. A democracia encantada encontra sua força na sociedade e pressupõe criatividade, imaginação e invenção, não devendo ser encarada como uma utopia, mas como um processo de construção e experimentação permanente, que permite a todos, inclusive aqueles segmentos não organizados que também se movimentam na esfera pública subalterna, participarem frequentemente das decisões centrais sobre os rumos do país.

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Fernando Perlatto é professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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Notas:

[1] No século XIX, parte significativa do pensamento liberal já considerava inevitável a expansão e consolidação da democracia. Tal percepção pode ser comprovada na obra de Alexis de Tocqueville, A democracia na América, na qual o autor aponta para a inexorabilidade da marcha da igualdade e da liberdade, em um movimento de expansão crescente da democracia pelo mundo. Diante da sua inevitabilidade, os debates se concentram na forma que o sistema democrático deveria assumir. O “medo das massas” que toma grande parte da elite política do final do século XVIII e no decorrer do século XX será central para a associação da democracia exclusivamente com a ideia de representação. Sobre este ponto, ver Miguel (2002).

Bibliografia:

AVRITZER, Leonardo (Org.). (2010), Experiências nacionais de participação social. Belo Horizonte: Cortez Editora.
DAGNINO, Evelina (Org.) (2002), Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.
HABERMAS, Jürgen. (2004), “Três modelos normativos de democracia”. In: A inclusão do outro. Estudos de Teoria Política. São Paulo: Loyola, p.277-92.
MIGUEL, Luis Felipe. (2002), “A democracia domesticada: Bases antidemocráticas do pensamento contemporâneo”. Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 3, p. 483-511.
PERLATTO, Fernando. (2009), A interpretação como exercício normativo: intelectuais, subalternos e a esfera pública brasileira. Dissertação (Mestrado em Sociologia) — Rio de Janeiro, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
SANTOS, Wanderley Guilherme. (2007), O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de Janeiro: Rocco.
VIANNA, Luiz Werneck. (2008), “O Terceiro Poder na Carta de 1988 e a tradição Republicana: mudança e conservação”. In: Oliven, R. G. Ridenti, M. Brandão, G. M. (Org.). A Constituição de 1988 na Vida Brasileira. São Paulo: Hucitec, p. 91-109.




Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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