sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Pela Pirataria na Internet



Por Wilton Cardoso, editor de Vida Miúda

A internet é, por natureza, uma biblioteca composta pelos conteúdos digitais (e digitalizáveis) de todas as épocas e culturas. Uma biblioteca total, gratuita, interativa, livre de controles e acessível a quem quer que tenha um chip plugado na rede. Esta pelo menos é a potência da internet, é no que ela pode facilmente se transformar num piscar de olhos. E o que impede a concretização desta potência? Basicamente interesses de mercado e do estado.
Internautas, artistas e programadores simpatizantes ou ativistas da cultura livre se debatem entre o velho e o novo mercado pop. Por um lado o velho mercado, formado por editoras, estúdios, gravadores e emissoras, deseja manter o status quo das rígidas leis de direitos autorais e de cópia (copyright) que o beneficia. Por outro lado, o novo mercado, formado por empresas telefônicas e sites de serviços e conteúdos como o Google, deseja a flexibilização das leis de direitos autorais e de copyright em nome de novos marcos legais que regularizem suas atividades baseadas na publicidade. Um artigo esclarecedor sobre o jogo do mercado na internet e a posição da cultura livre neste jogo pode ser lido aqui.
A crítica aos mercados não se trata de uma reclamação típica de esquerdistas frustrados e sonhadores. Vale ressaltar o quanto o novo mercado pop (ao que tudo indica, o que sairá vencedor na batalha dos mercados) coloca em risco a privacidade das pessoas, pois seu negócio é exatamente a armazenagem e o cruzamento de dados privados dos internautas para vendê-los à publicidade dirigida – e, eventualmente, entregá-los ao estado. Se o direito ao acesso livre e gratuito aos conteúdos é um assunto caro às “esquerdas”, o direito à privacidade, pelo que eu saiba, é muito estimado pelos liberais. O problema, portanto, é de todo mundo. Para saber mais sobre os riscos que o mercado e o estado trazem à privacidade do internauta, sugiro este artigo.
UM EXEMPLO CONCRETO
A internet trouxe problemas às leis de direitos autorais e de copyrightpois é impossível impedir ou controlar a cópia de conteúdo na rede. Isto por vários motivos: a cópia de conteúdo digital não tem qualidade inferior ao “original”, seu custo é praticamente zero, é rápido e fácil copiar qualquer conteúdo. Chaves de proteção são facilmente quebradas por hackers. Na verdade, a internet funciona, entre outras coisas, por meio da cópia de bytes – para ler esta página de blog, por exemplo, seu computador local está fazendo uma cópia temporária dela na memória. A cópia de conteúdo pertence, portanto, à natureza da internet.Um bom exemplo de como a internet bagunça as leis do copyright é o caso da música.
Vamos aos fatos: já é possível baixar gratuitamente qualquer música por meio de torrents ou sites de armazenamento. Todo mundo baixa/ouve (vê o clipe da) música gratuitamente e sem o menor peso na consciência de estar lesando gravadoras, autores, músicos, técnicos etc… Algumas gravadoras e artistas já entenderam que as pessoas não querem pagar por conteúdo digital/digitalizável (LPs esgotados também se tornam mp3 disponíveis para download) e disponibilizam as músicas gratuitamente para baixar. Vão ganhar o seu com shows e outros serviços, fora do ambiente da internet: veja o caso da Trama Musical.
Se for pra cobrar de alguém, a única chance é que se cobre das empresas de telecomunicações, sites de armazenamento, Youtube ou portais de torrents, que faturam com publicidade: o internauta não aceita pagar e já considera, mesmo que incosncientemente, que o acesso gratuito às músicas (a qualquer conteúdo) é um direito seu.
É altamente provável que os internautas não queiram nem mesmo se expor à publicidade para consumir música gratuitamente, pois isto significa literalmente vender sua privacidade, seus gostos, sonhos e desejos em troca de conteúdo. Negociar a privacidade é como vender a alma ao mercado por intermédio do publicitário (este padre hedonista), um negócio pior que vendê-la ao diabo. Este pelo menos remunera o mortal com riquezas terrenas, já o mercado só retribui com contas a pagar. É que ainda não há alternativas na internet à publicidade: caso surja um espaço na rede que seja gratuito, sem publicidade e livre de controles de mercado e dos governos, certamente os internautas correriam pra lá sem pestanejar.
INTERNET: TERRITÓRIO EM DISPUTA
A internet se trata, portanto, de uma mídia técnica na qual se digladiam várias potências, várias vontades de poder, vários interesses conflituosos:
1. Os do velho mercado pop, que gostaria que a rede nunca tivesse nascido e que será, provavelmente, derrotado;
2. Os do estado, sempre acometido de paranóia e desejo de controle, ávido por saber os passos de cada cidadão seu. Neste aspecto, a internet é uma ferramenta muito poderosa, pois ela grava todos os eventos da rede e o cálculo computacional proporciona um cruzamento de dados que torna o universo de controle do filme 1984uma brincadeira de criança;
3. Os do novo mercado pop, ávido pelos bancos de dados da alma de cada pessoa a fim de maximizar suas receitas publicitárias;
4. Os de artistas, programadores, hackers e internautas adeptos da cultura livre em geral, que veem na internet um espaço potencialmente livre dos controles do mercado e do estado, no qual a criatividade desenvolve toda a sua potência e a privacidade e o acesso gratuito ao conhecimento (aos conteúdos) é um direito.
É possível que outras forças surjam na internet, que algumas se extingam ou se transformem e outras permaneçam. Uma coisa é certa: a potência da rede como biblioteca total e gratuita, como espaço da cultura livre, faz parte de sua natureza maquínica e vai de encontro com o desejo das pessoas pelo acesso livre e gratuito ao conhecimento. A adesão praticamente irrestrita da população internauta à pirataria digital confirma que as pessoas já escolheram o direito à informação em detrimento ao direito de propriedade intelectual. Tacitamente as pessoas dizem:
“vamos copiar todos os conteúdos independente de leis ou vontades autorais, estatais ou mercadológicas em contrário, contra o autor, os produtores, distribuidores e o estado. Acessar, copiar e (usu)fruir gratuitamente todo e qualquer conteúdo digital ou digitalizável no ambiente da internet é legítimo, é um direito nosso. “
Por que não explicitar tal desejo coletivo numa declaração de princípios, trazendo-a para a consciência e exigindo leis que cumpram tais princípios?
CINCO PRINCÍPIOS DA CULTURA LIVRE NA INTERNET
Qualquer lei que atenda aos anseios por uma cultura livre na internet teria que se basear, pelo menos, nos seguintes princípios:
1. É direito do internauta que todo conteúdo digital/digitalizável seja disponibilizado gratuitamente na internet;
2. Todo conteúdo disponibilizado na internet poderá ser copiado de forma ilimitada;
3. É vedada a disponibilização de conteúdo com qualquer tipo de proteção contra cópias ou limitações ao uso gratuito (No máximo, poderá haver um “pague se quiser” ou “pague a mim, mas pode repassar gratuitamente”);
4. O conteúdo gratuito não pode sofrer restrições de acesso/download por conta de contratos publicitários. Obs. 1: Por outras palavras, todos os conteúdos podem ser remixados para a retirada de publicidade ou disponibilizados em ambientes livres de publicidade. Obs. 2: Este item é controverso, mas não acho que hackers, piratas e praticantes da cultura livre queiram abrir mão dele, pois é ele que dá direito ao internauta de escapar da nova indústria cultural que vive de publicidade, como o Google;
5. Se houver exploração comercial de um conteúdo na internet, o seu criador (ou criadores) terá direito de ser remunerado. Obs.1: Por outro lado, o autor não tem direito à remuneração no caso do uso não comercial da obra. Obs. 2: Outro ponto polêmico: o autor poderia criar obstáculos à fruição desinteressada de seu trabalho no ambiente da internet? O direito ao conhecimento não se sobreporia ao direito de propriedade do autor sobre sua obra, pelo menos no espaço da biblioteca total que é a internet?
Isto valeria para vídeo, imagem, som, escrita, games, programas, etc. Tudo que seja digital…
Tenho certeza que tais princípios são moralmente concretos e tecnicamente factíveis de se atingir. Moralmente, eles já estão entranhados firmemente no espírito das pessoas e são, portanto, legítimos: as pessoas já escolheram privilegiar, em detrimento dos outros direitos, o direito irrestrito ao conhecimento e à informação. Tecnicamente não há o que comentar, a internet  é, por natureza, uma biblioteca total de conteúdos digitais/digitalizáveis, gratuita e disponível a todos que tenham um chip conectado na rede: a única coisa que falta é fazer upload das obras ainda fora da rede e catalogar tudo com precisão, para evitar conteúdos em duplicidade e dificuldades na busca.
Não tenho ilusões que o mercado e o estado permitirão a aprovação de leis que atendam a estes princípios que, como disse, são legítimos e deveriam ser alçados à condição de direitos da população (global). Uma lei assim só sairá do papel quando a pirataria for tão maciça, disseminada e incontrolável que o mercado e o estado não tenham nada mais a perder. E ela vai atingir tal estágio de virulência, estejam certos disso: se existe uma praga determinada, tenaz e invencível neste mundo do Deus Mercado, é a pirataria digital.
É ela, a pirataria digital, esta guerra suja empreendida pelos vagabundos da rede, que irá efetuar a potência máxima da internet, tornando-a efetivamente uma biblioteca total.

Por Uma Jornada Mais Humana

O grande Saturnino Braga desmistifica o poder controlador do nosso tempo referente ao trabalho e organiza a ideia de que se necessita um jornada de trabalho mais humana.


Jornada de seis horas


Por Saturnino Braga

Tenho para mim que uma das conquistas mais importantes da Humanidade no século XXI será a redução da jornada de trabalho para seis horas por dia e trinta horas por semana, cheia de um relevante significado filosófico e humanístico.

Existe, sim, o trabalho prazeroso, o trabalho criativo, do trabalhador para si mesmo, a alegria sentida na obra do seu trabalho, como existe o trabalho que dignifica, aquele que se faz sem prazer mas em benefício da coletividade, com o sentimento de participação na construção do bem-estar comunitário. O trabalho do mercado, todavia, aquele que se vende por salário para o próprio sustento e da família, e é empregado na produção de mercadorias e na geração de lucro para o capital, é o trabalho mais penoso, escravizador e alienante, obrigatório ainda no estágio atual do desenvolvimento da Humanidade, e objeto de luta dos trabalhadores para a melhoria de suas condições de realização.

Este trabalho de mercado, sendo de longe o mais volumoso em nossas sociedades, acaba por condicionar, ditar mesmo as condições, como o tempo da jornada, a estabilidade e especialmente os salários, dos trabalhadores do setor público, que prestam serviço à coletividade e não ao capital. Daí porque ser este tipo de trabalho (de mercado) aquele sobre o qual se concentra a luta de emancipação dos trabalhadores em geral.

Esta luta dos trabalhadores começou há bem mais de 150 anos, quando as condições de exploração impostas pelos primeiros tempos do capitalismo e da chamada revolução industrial eram absolutamente selvagens, no limite mesmo da sobrevivência física do ser humano. O estabelecimento de condições um pouco acima desses limites inumanos, inclusive a fixação, há mais de 120 anos, de uma jornada diária de 12 horas e depois de 10 horas, custou muito esforço, coragem e sangue dos trabalhadores.

A luta teve continuidade no mundo que se industrializava e elevava a produtividade do trabalhador, e há pouco menos de 100 anos chegou-se ao consenso de uma jornada diária de 8 horas. Durante mais uns 50 anos, a produtividade do trabalho continuou crescendo e a luta organizada dos operários prosseguiu, conseguindo transformar parte desta produtividade maior em elevação de salários e outras condições melhores nas áreas de previdência e saúde, sem alterar entretanto a duração da jornada.


Finalmente, nos últimos 30 ou 40 anos, a produtividade do trabalho explodiu num salto gigantesco, jamais antes imaginado, e a luta dos trabalhadores passou por derrotas sucessivas, na medida em que o capital, apropriando-se inteiramente do desenvolvimento tecnológico, logrou transformar a formidável elevação da produtividade em supressão de mão-de-obra e desemprego em massa, colocando as organizações dos trabalhadores numa posição cada vez mais enfraquecida e defensiva, perdendo continuamente conquistas importantes de antes. Ninguém pensou em transformar a redução de mão-de-obra em redução da jornada.

O crescimento dos ganhos do capital foi além de todos os limites conhecidos e imaginados, excluindo trabalhadores e globalizando a produção para empregar a mão de obra mais barata onde estivesse no planeta. Reduziram-se enormemente os gastos com salários, dando espaço para criar a espiral dos lucros meramente financeiros, cada vez maiores, gigantescos, dando voltas pelo mundo, por cima dos lucros também crescentes do setor produtivo. A demasia desse processo acabou por gerar a crise do sistema em que o mundo rico hoje se debate, e abriu portas para uma certa recuperação da expressão política da classe trabalhadora.

Neste ponto da História coloca-se então a pergunta: Se a ciência é um patrimônio da Humanidade, por que os frutos do conhecimento científico não se distribuíram entre todos os seres humanos mas foram completamente apropriados pelos donos do capital através da tecnologia? Foi o que se passou: o capital pagou bem os melhores engenheiros e tecnólogos para, a partir da ciência, desenvolver as tecnologias de automação, de informação, de comunicação, de transporte, todas voltadas para a redução de trabalhadores na produção e a busca desses trabalhadores onde ganhassem salários mais baixos. Este processo desarmou inteiramente as organizações trabalhistas onde tinham avançado mais e conquistado melhores condições, colocando-as numa precária posição defensiva. Aproveitando-se da posição de completa dominação política com o retrocesso imposto aos trabalhadores, o capital retirou os governos das funções de regulamentação que antes exerciam e que davam certa proteção aos trabalhadores por via de alguma representação que tinham nesses governos. Foi o triunfo absoluto do capital: a era do neoliberalismo e da globalização.

Entretanto, Marx tinha muita razão e o terremoto da crise abalou o triunfalismo neoliberal. O capital vai perdendo posições na hegemonia política e a velha luta dos trabalhadores vai ganhando novo impulso: a velha luta pelos salários e pela melhoria das condições de trabalho. Mais além: é uma luta pela reafirmação da democracia, seriamente ameaçada pelo comando tecnocrático do capital em desespero sobre os governos, com o fim de eliminar completamente a presença dos trabalhadores na política. É neste ponto se que abrem alternativas para as reivindicações.

Aumentar os salários dos chineses parece absolutamente necessário, apesar do custo de vida lá ser muito mais baixo por causa das interferências do Estado Socialista. No outro extremo, aumentar os salários dos trabalhadores americanos e europeus tem um outro significado, que é o de seguir automaticamente, irrefletidamente, pela rota do marquetismo, do incentivo ao consumismo capitalista, que está destruindo o nosso planeta e alienando mais e mais o ser trabalhador dos verdadeiros valores humanísticos. No meio estão os nossos trabalhadores, que ainda precisam de alguma melhoria salarial mas também já podem, e devem, juntamente com os dos países mais ricos, buscar a outra alternativa, a de melhorar substancialmente as condições de trabalho, principalmente reduzindo a jornada diária, mantendo-se o nível salarial.

Melhorar essencialmente a qualidade de vida do trabalhador não implica aumentar o consumo material acima de certos limites; não significa ter mais dinheiro para comprar um carro, roupas de grife, televisão de plasma ou o último celular, imitar maquinalmente os ricos no consumo de mercado. Mas pode ser, sim, esta nova qualidade de vida, dispor de mais duas horas por dia para si, para se dedicar ao seu aperfeiçoamento humano e cultural, para ler e estudar um pouco mais, para pensar um pouco mais, para dedicar-se mais à família, aos amigos e aos afetos, e também à política e à atividade comunitária, para cultivar mais o esporte e a saúde, para se dedicar mais à religião no caso dos religiosos, para simplesmente relaxar e melhorar o seu lazer ou contemplar mais detidamente as belezas da vida. Em uma palavra, para humanizar-se mais.


A crítica mais consistente que se faz a essa sociedade capitalista globalizada é que ela está evidentemente produzindo o homem cínico, totalmente absorvido pelo objetivo da competência operacional no mercado, pelo consumo material sofisticado e pelo lazer massificado e alienante ou estimulado pelo abuso do sexo e das drogas. Em outras palavras, o culto das virtudes do passado foi ocupado pela sacralização da competência cínica, produtora de resultados econômicos. Immanuel Kant se comprazia na afirmação das suas duas belezas supremas: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”. Não existe mais céu estrelado nem lei moral; só as aptidões consagradas em dinheiro pelo mercado.

Havia, sim, no passado, o culto ao progresso e à iniciativa do melhoramento, mas sua definição compreendia dimensões essenciais do amor e da espiritualidade, ressaltados, por exemplo, pelo positivismo inscrito em nossa bandeira. O culto de hoje é ao PIB, abrangendo, no máximo, a questão do emprego e da saúde como filamentos sociais. Todo o noticiário da mídia se esgota no PIB, na inflação e nas bolsas de um lado, e nos crimes, na corrupção e nos esportes de outro. A política, que motivava e era acompanhada com interesse, passou a ser desprezada, apequenada pelo endeusamento do mercado, e estigmatizada pelos escândalos da corrupção, esta filha natural do cinismo de todo o sistema.

São banalidades da observação cotidiana de hoje, mas ainda assim chocantes. O que fazer, todos se perguntam. Restaurar minimamente a dimensão espiritual do ser humano, abrindo-lhe, dentro da loucura competitiva, espaço e tempo para a recuperação desta dimensão essencial. Reduzir o espaço do mercado e aumentar o da política, da filosofia, da religião, do amor. Urgentemente, claro, para combater a degeneração da moral, o cinismo, a corrupção, a droga, a criminalidade e todas as patologias mentais que prosperam assustadoramente neste mundo competitivo do mercado.

Eis o fundamento mais forte do projeto das seis horas de jornada. Projeto que, ao nível do desenvolvimento atual das forças produtivas é algo inteiramente viável sob o ponto-de-vista econômico. Trata-se de uma questão eminentemente política que os sindicatos de trabalhadores, acuados na defensiva, não tiveram até agora condições de postular e defender mas que, no quadro dos próximos dias futuros, poderá ser posta na linha de frente da luta política, a partir da recuperação da presença trabalhadora nesta linha de frente.

A jornada mais curta propicia, ademais, pelo menos outros dois benefícios extremamente importantes para a economia e as sociedades pelo mundo a fora, além desta essencial humanização da vida do trabalhador. De um lado, compensando aumentos de custo, pode quase duplicar a produtividade do capital fixo, aumentando a sua utilização de 8 para 12 horas diárias, com duas turmas de 6 horas com salários iguais, sem pagamento de horas-extra. De outro, com esta utilização maior do capital, o flagelo do desemprego, uma das calamidades da vida social contemporânea, pesadamente custosa para os erários, desaparecerá do mundo durante muito tempo.

Trata-se, de fato, de uma questão eminentemente política, dificultada de um lado, pelo acirramento da competição e da reação do capital diante da crise, mas favorecida de outro pelo revigoramento da luta dos trabalhadores gravemente ameaçados e ligados mundialmente por manifestações gigantescas. Uma questão de âmbito internacional, claro, na medida em que dificilmente qualquer país, isoladamente, poderia tomar a decisão de implantar esta redução de jornada: a perda de competitividade perante as outras nações, em pouco tempo arrasaria sua economia e levaria à derrocada política. A França, por exemplo, ensaiou uma diminuta redução, sem grande significado para a vida dos seus assalariados, e viu-se obrigada a voltar atrás para não cair em desvantagem comparativa. E não se trata disso que fez a França; o que se pretende é uma redução substancial, para seis horas por dia e cinco dias por semana, sem redução salarial. Isso requer uma forte arregimentação política mundial, com um novo Marx à sua frente.

Alguns países, entretanto, podem perfeitamente avançar mais na proposição e na organização do movimento mundial em prol da nova jornada humanística. Países que contem com partidos políticos de cunho socialista bem estruturados e bem situados em relação ao poder, e com organizações sindicais bem desenvolvidas, conscientes e politicamente preparadas. Países que desfrutem de prestígio político e capacidade de liderança no mundo de hoje, e que possuam condições físicas, demográficas e econômicas para a sustentação de propostas internacionais importantes. Todo mundo já viu, aí, o Brasil enquadrado nessas condições exigidas. Acrescida de uma outra condição, também relevante: a da novidade; lideranças novas, emergentes, são mais escutadas e têm mais capacidade de mobilização para mudanças renovadoras.

Esta é uma das promessas mais relevantes e preciosas do século XXI, junto com a paz mundial e a reforma da ONU, e junto com o aperfeiçoamento da democracia com a virada para o paradigma participativo que também está em jogo. A institucionalização da economia mista, num mundo capitalista enviesado para o socialismo, com uma presença forte do Estado nos setores estratégicos, especialmente no sistema financeiro, capaz de garantir melhores condições de estabilidade, será outra realização brilhante do novo século.

O teor de renovação e alargamento da vida humana que a redução da jornada propicia faz dela uma conquista de tal maneira extraordinária que terá de passar por uma longa e profunda discussão de todos os seus aspectos e desdobramentos. Trata-se de uma mudança no núcleo central da filosofia de vida da Humanidade, no sentido, que tanto tem sido apregoado pelos humanistas, de substituição de muitas preferências ligadas ao ter para outras vinculadas ao ser do homem.

Não há sinais claros desta mudança filosófica no horizonte, a não ser as manifestações, muito fortes mas muito vagas, de insatisfação com a injustiça do sistema, e de saturação com a competição neurotizante instigada pelo consumismo fundamental do capitalismo. O sinal mais claro e bem direcionado será dado precisamente pela reivindicação organizada e mundial em favor da redução da jornada de trabalho.

O que move a iniciativa de formular claramente esta questão no momento é a perspectiva de crescimento das organizações dos trabalhadores face ao enfraquecimento do comando político internacional do capital, causado pela crise econômica que se aprofunda e se complica. E o Brasil, como acima referido, tem condições muito especiais para se posicionar na vanguarda desta reivindicação, consciente de que não a implantará sozinho mas no bojo de uma revolução democrática e trabalhista mundial.

É nesta linha de ação política que Roberto Ponciano propõe a formação de um coletivo, ou grupo de trabalho permanente, destinado a formular, discutir, aperfeiçoar a proposição da jornada de seis horas, e ampliar a sua divulgação, a mobilização dos trabalhadores para a sua implementação em escala mundial. As organizações sindicais da América do Sul bem poderiam ser um poderoso núcleo emissor desta conclamação para o resto do mundo.


Saturnino Braga é ex-senador da República, ex-prefeito do Rio de Janeiro e presidente de honra do Instituto Casa Grande (ICG)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O EZLN e a Luta Armada em Chiapas


O EZLN e a luta armada em Chiapas



Entrevista com Magno de Carvalho


Magno de Carvalho visitou Chiapas e esteve em contato com os guerrilheiros zapatistas: "Diziam eles: 'as armas que empunhamos hoje, não vamos depô-las jamais, nem mesmo depois de termos conquistado um governo do povo'."

Entrevistador: Que dados você pode nos fornecer sobre o surgimento do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional)?


MAGNO: Durante mais de dez anos, o EZLN se preparou para a luta armada nas montanhas e nas florestas de Chiapas (hoje, faz 12 anos). Mas o EZLN somente aparece para o mundo em 1o janeiro de 1994, quando milhares de seus milicianos tomam San Cristóbal de las Casas (capital do estado de Chiapas, com mais de cem mil habitantes), além das principais cidades do estado: Ocosingo, Chanaal, Altamirano e Las Margaritas. Nesse mesmo dia, o EZLN ataca o quartel de Rancho Nuevo, comandado pelo general Garrido, que resistiu 50 minutos em combate, até que os insurretos, comandados por Iolanda (índia tzaltil , companheira do subcomandante Marcos), invadiram o quartel e levaram mais de duzentas armas pesadas. Próximo dali, o EZLN invadiu uma penitenciária, libertando todos os prisioneiros, a maioria índios, repetindo o que haviam feito em cadeias de outras cidades também tomadas. Nestas, as prefeituras e as rádios foram os primeiros locais a serem tomados, além das prisões, dos prédios públicos, dos bancos e de algumas empresas importantes. Portavam armas modernas potentes e comunicavam-se entre si pelo rádio.

Os combates mais sangrentos se deram em Ocosingo, onde o Exército Federal Mexicano conseguiu chegar através de uma ponte que o EZLN não conseguiu derrubar. Depois, soube-se que a retomada de Ocosingo era considerada vital para as forças federais. Foi em Ocosingo onde ocorreram os maiores crimes de guerra e os mais torpes. Prisioneiros foram executados com as mãos amarradas nas costas, deitados de bruços, com tiros na nuca.
Nas cidades, a esmagadora maioria da população, passada a surpresa, não só apoiou os insurretos, como também participou da tomada de locais estratégicos. A maior parte do EZLN é composta pelas quatro etnias que habitam Chiapas: tzotziles (85.553 índios), tzetales (95.953), tojolabales (12.660) e choles (47.529).
O subcomandante Marcos comandou o ataque à capital e foi o principal porta voz do EZLN, concedendo uma entrevista coletiva internacional à imprensa em frente ao Paço Municipal ocupado. Foi a primeira vez que o EZLN falou ao mundo, apresentando as razões do conflito, acumuladas por décadas, para não falar séculos, de massacres, de fome e de luta por uma terra que pertencia ao povo.
Chiapas viveu sob a cultura maia até o século VI; mais tarde, até o século XV, sob a predominância da migração tolteca; a partir daí, passaram a ser dominados pelos aztecas, até a chegada dos espanhóis. Em torno de 75% dos índios foram dizimados nas primeiras décadas da conquista espanhola, em conseqüência das guerras, deportações e epidemias. A selva foi povoada pelos habitantes mais pobres do México. A selva Lacandona parecia uma torre de Babel, onde se falavam inúmeros idiomas indígenas, ainda que predominasse o tzeltal. As constantes expulsões e decretos que retiravam a posse das terras anteriormente conquistadas por comunidades indígenas, levaram-nos, como resposta, a constantes rebeliões.
Na década de 1960, surgiram muitas organizações guerrilheiras sob influência da vitória da revolução em Cuba. Essas organizações apareciam e desapareciam. Algumas foram destruídas pela repressão, outras se instalaram nos estados ao sul do Distrito Federal. Tudo isto sob a ditadura sanguinária do PRI. No estado de Guerrero, Lúcio Cabañas comandou um foco guerrilheiro que resistiu por anos e foi um dos maiores e o melhor organizado, influenciando o aparecimento de outros.
Em agosto de 1969, foi fundada, por nove militantes, a FLN (Frente de Libertação Nacional), que anos mais tarde daria origem ao EZLN. Cinco de seus fundadores eram originários do extinto Exército Insurgente Mexicano. A FLN combinou, na clandestinidade, três formas de luta: a política, a militar e a ideológica. Seus fins, a longo prazo, eram derrotar política e militarmente a burguesia e estabelecer um sistema socialista que, mediante a propriedade social dos meios de produção, suprimisse a exploração do homem pelo homem. A curto prazo, era integrar as lutas do proletariado urbano à dos camponeses e indígenas e formar o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
No outono de 1993, treze dos principais dirigentes da FLN fundaram, na selva, o EZLN. Além deles, havia quatro indígenas. O EZLN se tornou um dos organismos que constituíam a FLN, juntamente com os EYOL (células de estudantes e operários). Em Chiapas, foram várias as organizações camponesas e indígenas legais, semilegais e clandestinas que se formaram com a orientação pró e antizapatista. A posição da Igreja em relação ao EZLN foi sempre muito contraditória e, internamente, muito diferenciada. Muitos padres e catequistas se puseram em armas ao lado do EZLN, outros o criticam.

D. Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal de las Casas, apesar da famosa polêmica com Marcos, tem tido um papel fundamental na mediação com o governo mexicano, o que tem sido vital para o EZLN. Isto os zapatistas reconhecem. O bispo lamenta o apoio dos padres à FLN: "Esta gente veio montar um cavalo bravo e agora levam os índios à beira da tragédia". Ao que o subcomandante retruca: "Aqui não haverá ARIC (1) , não haverá palavra de Deus, não haverá Governo da República. Aqui haverá Exército de Libertação Nacional".

Em janeiro de 1993, em Prado, a FLN decide fundar o Partido das Forças de Libertação Nacional (PFLN) e realizar o seu primeiro congresso. Na sua declaração de princípios, seus objetivos são:
    • Encabeçar a luta revolucionária do povo trabalhador para a arrancar o poder da burguesia, libertar o país da dominação estrangeira e instalar a ditadura do proletariado que impeça a contra-revolução e inicie a construção do socialismo.
    • Recorrer, como forma principal, à luta político-militar, combinando-a com outras formas de ação política. Conta para isto com o EZLN que jamais haverá de claudicar no México.
Em 23 de janeiro de 1993, em Prado, foi aprovada a posição defendida pelo subcomandante Marcos de iniciar a Guerra de Libertação no México. Esta posição, a partir de então, foi submetida a longas discussões nas comunidades zapatistas num processo bastante democrático, mas que, por se tratar de uma decisão fundamental como a guerra, partia de um acordo prévio: a posição aprovada necessariamente deveria ser acatada por todos.
As consignas do Exército Zapatista, e que se expressam na declaração da selva de Lacandona, são: trabalho, terra, moradia, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, justiça e paz. Os objetivos militares são: derrotar o Exército do México e chegar à Cidade do México.
É importante frisar as diferenças da propaganda aberta feita pelo PFLN (inclusive a veiculada na imprensa socialista) e as bandeiras apresentadas pelo EZLN nos comunicados do subcomandante Marcos e pelo Comitê Clandestino Indígena Revolucionário, o que pode ser verificado na própria declaração feita na selva de Lacandona.
Não podemos esquecer, também, que Chiapas tem uma selva que emenda com a selva da Guatemala, onde, por mais de vinte anos, proliferou a guerra de guerrilha, assim como também no seu vizinho, El Salvador. O EZLN faz uma crítica dura aos seus companheiros centro-americanos que depuseram as armas, e, hoje, vários guerrilheiros destes países engrossam as fileiras do EZLN.
Não resta dúvidas de que a vitória da revolução em Cuba deu um grande alento ao nascimento da FLN, na década de 1960, assim como a outras organizações político-militares. A revolução da Nicarágua também foi muito importante, inclusive pelo apoio logístico e treinamento de líderes do EZLN. São aspectos que não podem ser desprezados na compreensão do fenômeno zapatista.
É importante também lembrar o fato de que, em 1992, com o desmoronamento da URSS e dos países do Leste europeu, apesar de que a FLN e o EZLN não tinham vinculações políticas com os regimes desses países, a crise político-ideológica chegou às montanhas e às selvas de Chiapas. Muitos abandonaram a luta naquele momento. Marcos ironizou: "o socialismo está morto, viva o conformismo, a reforma, a modernidade e o capitalismo". Mas a crise foi superada, apesar de ter sido duradoura e ter feito estragos consideráveis.

O trabalho de construção do EZLN foi realizado durante dez anos, na selva, desde as cabeças de gado, porcos e produtos agrícolas vendidos para comprar armas modernas e potentes na América Central, até a preparação política e militar. E ficou demonstrado com as primeiras incursões do EZLN, em janeiro de 1994.





Entrevistador: Por fim, como você resumiria, em poucas palavras, seu contato com a experiência zapatista no México?



MAGNO: Um companheiro brasileiro que foi comigo a Chiapas fez um comentário que expressa bem o que esse contato significou. Ele disse: "A experiência que estou tendo nesta comunidade zapatista, no meio da selva, está sendo mais importante do que tudo o que li e ouvi em mais de vinte anos para compreender o que é socialismo e revolução".





Entrevistador: Como foi possível chegar a uma comunidade zapatista em meio à selva?



MAGNO: Saí do Brasil com contatos na cidade do México. Lá, companheiros zapatistas, com os quais discuti bastante, fizeram a ponte com os companheiros de Chiapas. Da Cidade do México, saímos de ônibus, até San Cristóbal de las Casas, capital de Chiapas, passamos pelos estados de Puebla e Oxaca; foram 18 horas de viagem. Em San Cristóbal, tanto como na Cidade do México, comentava-se a reunião de militares americanos com militares mexicanos, quando foi concluído e apresentado ao governo mexicano um plano no qual, em resumo, caso o governo aprovasse, em 15 dias, todo o exército zapatista e suas comunidades na selva e nas montanhas seriam destruídos.

A militarização era visível em toda a estrada, nos pedágios, nas barricadas de sacos de areia com metralhadoras pesadas atrás. Isto começava na saída do Distrito Federal e crescia à medida que se aproximava de Chiapas. Isto havia sido intensificado a partir de junho de 1995.
Em San Cristóbal, onde a maioria da população era formada por índios, levamos dois dias até nos encontrarmos em condições de partir para a selva, credenciados pela Comissão Nacional de Intermediação (CONAI), na diocese do bispo D. Samuel Ruiz, como observadores internacionais civis. Este credenciamento é vital para o contato com as tropas federais na selva e nas estradas.
Alugamos um jeep 4x4 e fomos receber as instruções e os mapas da selva. Ficamos sabendo o que já tínhamos ouvido dos companheiros da Cidade do México: talvez não conseguíssemos chegar até os dirigentes do EZLN, em função do aumento da militarização em Chiapas e das condições dos caminhos na selva. Mais uma vez, fomos advertidos sobre a estrada de terra na selva nessa época de chuvas: barrancos ou floresta de um lado e abismo do outro. Disseram-nos: "tem estrada hoje, amanhã não tem mais; pode ser que passem, ou que não consigam chegar; ou que cheguem e não possam voltar". É comum o desabamento nessas estradas precárias, abertas para caminhões e outros veículos militares.
Nossa meta era chegar a La Sultana, uma comunidade zapatista no coração da selva Lacandona, de onde partiram muitos guerrilheiros que morreram nos combates de Ocosingo, em janeiro de 1994. Antes dela, existem duas outras comunidades zapatistas, Prado e La Garrucha. De San Cristóbal fomos até Ocosingo, onde chegamos ao anoitecer.
Nas estradas, cidades e povoados por onde passamos, vimos o que é uma ocupação militar no período atual e o que os mexicanos denominam de "guerra de baixa intensidade". Até Ocosingo, havia asfalto. Chegamos à praça do Paço Municipal de Ocosingo, a tomada mais difícil e sangrenta do EZLN, domingo, às 18 horas. Uma banda de música tocava, cerca de trezentas pessoas, a maior parte índios, assistiam tranqüilos, em silêncio. Todos estavam cercados por blindados, caminhões e pela tropa com armas leves e pesadas. Como se não bastasse, no meio do povo, uns trinta soldados federais, com seus fuzis e metralhadoras na mão, viravam-se o tempo todo, nervosos, encarando a todos. A música parou e só alguns soldados aplaudiram a banda da Polícia Militar.
Saímos um pouco da rota e passamos por Altamirano. Escolas e prédios públicos foram transformados em quartéis, protegidos por várias pilhas de sacos de areia, com soldados armados e ali entrincheirados atrás. Na estrada, os acampamentos e os comboios de veículos militares se sucediam.
Chegamos a San Miguel, comunidade indígena, conhecida como a porta da selva. Daí em diante, a estrada corria toda dentro da selva; índios caminhavam à beira da estrada, carregando sacos e feixes de lenha, amarrados a tiras passadas pela testa. Andam, por vezes, vários dias. Muitos levam produtos para vender. Nas estradas, muitos jovens trabalhavam carregando pedras durante todo o dia, nas obras de desobstrução e recuperação de desabamentos. À beira da estrada, havia acampamentos militares com tropas federais, sempre nas imediações das comunidades, nas pontes, morros, curvas e margens dos rios.
O pior trecho da estrada foi o que ficava próximo a La Sultana. Passamos por um local onde tinha havido um desabamento, e o que havia sobrado da estrada, na beira do precipício, mal dava para passar um veículo. O nosso passou ali sob o olhar atento de alguns índios. A menos de 1 km de La Sultana, avistamos uma ponte, antes dela, na cabeceira, um monte de pneus, prontos para servir de barricada ardente, colocados pelos federais. Ao nos aproximar, vimos uma casamata onde havia uma boca de cano de metralhadora pesada e também podiam ser identificados dois capacetes camuflados com galhos, folhas e bambus. Ao longo do rio, também se via, de cima da ponte, o acampamento camuflado das tropas federais. Passamos pela ponte fotografando tudo.
Chegamos a La Sultana às 17 horas (doze de viagem). Casas de tábuas com cobertura de palha de cana de palmeira; dois barracões grandes ladeavam uma clareira. Logo avistamos um barracão, com uma faixa de pano, na qual se liaCampamentos Civiles pela Paz, Justicia y Libertad. Paramos e nos apresentamos aos companheiros: um espanhol (galego), que falava português, uma alemã, uma jovem americana e duas mexicanas do Distrito Federal. O companheiro espanhol foi chamar o companheiro zapatista dirigente, encarregado da segurança da comunidade, que substituía o comandante-chefe, ausente naquele momento.
Fui avisado de que não poderia sair da área do acampamento civil enquanto não tivesse autorização dos companheiros zapatistas da comunidade (o acampamento é uma área neutra internacional).

O companheiro Cláudio veio até o acampamento. Fiz as apresentações. Falamos dos nossos objetivos com aquela viagem e da nossa expectativa em conversar com os companheiros do EZLN.

Entrevistador: E como você conseguiu a permissão e o contato com o EZLN?

MAGNO: Cláudio me explicou que para ele não havia dúvidas quanto à importância da nossa conversa, mas que tudo era decidido em assembléia, e que ele iria defender que, ainda naquela noite, após a assembléia, pudéssemos ter uma conversa com os zapatistas. Esta foi a primeira lição prática do funcionamento democrático dos zapatistas.

Mais tarde, a 500 metros dali, teve lugar a assembléia. Usavam apenas uma vela no centro, para evitar se tornarem alvos de balas dos federais. Era uma assembléia só de homens. Explicaram-me que já estava convocada assim, pois a discussão era sobre tarefas específicas dos homens, como os resultados das buscas do corpo de um menino morto, na véspera, no rio, em acidente. Coisas importantes, como as relativas à guerra, são freqüentadas por todos, inclusive as crianças que, a partir dos nove anos, aproximadamente, já têm treinamento militar na selva.
Após um tempo de discussão, chamaram-nos. Apenas seis falavam espanhol; os demais falavam tzotil ou tzeltal, as duas etnias que compunham a comunidade de La Sultana que hoje é composta por 350 pessoas. Aproximadamente 150 pessoas participavam da reunião. Apresentamo-nos, identificamo-nos politicamente e falamos de nossos objetivos. Respondi a várias perguntas sobre o Brasil, sobre a nossa esquerda e o porquê de não haver, no Brasil, uma resistência organizada contra a violência, a falta de terra e a fome. Aquilo que eu falava era traduzido duas vezes, e assim também era o retorno.
Impressionou-me duas coisas: a consciência de todos sobre a necessidade da internacionalização da luta e de uma organização revolucionária única, em especial na América Latina; a total descrença nos partidos de "esquerda" que disputam espaço na institucionalidade burguesa. Disseram: "não lutam pelos pobres e sim por espaços políticos para eles mesmos".
Após a assembléia, voltamos ao acampamento civil. Mais tarde, chegaram quatro dirigentes zapatistas e realizamos uma conversação, que durou horas. Primeiro, os companheiros explicaram bem como viviam e como viviam as comunidades da selva. Falaram do seu sofrimento, da falta de condições mínimas para sobrevivência, da fome, da carência de professores para as crianças e de atendimento médico para as comunidades, das perseguições, das expulsões da terra, da falta de meios para produção agrícola e da brutal violência da polícia, dos capangas, dos usurpadores das terras e, atualmente, das forças federais. Falaram também dos constantes assassinatos dos indígenas, principalmente, dos líderes camponeses. Tudo isto, segundo eles, fazia parte do cotidiano de suas vidas. Disseram que, em virtude de toda essa situação, resolveram dizer basta a quinhentos anos de violência dos poderosos, que havia já liquidado milhões de indígenas e camponeses. Por tudo isto, diziam eles, "as armas que empunhamos hoje, não vamos depô-las jamais, nem mesmo depois de termos conquistado um governo do povo". Há em todos, sem exceção, sejam dirigentes ou milicianos de base, a convicção da vitória sobre as forças oficiais.
Quando perguntei sobre a superioridade das armas das forças federais que nos combates de janeiro demonstraram seu poderio bélico, com bombardeios aéreos, tropas de pára-quedistas cortando a retaguarda nas entradas da selva, além de todo o poderio militar terrestre, um deles, o companheiro Antonio, respondeu-me com toda a tranqüilidade e na forma indígena de expressar:




Os aviões que voam hoje, um dia cairão. Na véspera de nossa chegada, aviões de guerra passaram horas fazendo vôos razantes sobre La Sultana, sucedidos por helicópteros, o que é comum. Eles agora assustam muito nossas crianças, mas não nos assustam mais. Os blindados, os caminhões e canhões, que andam nos caminhos, um dia param. Na selva não entram: La carretera es de ellos, la selva de nosostros. Se nos atacam, nos embrenhamos todos, e lá eles não vão.



É importante lembrar que, quando as tropas do EZLN passaram a recuar para a selva, os combates se deram até os limites desta, salvo raros bombardeios aéreos. O exército governista não entrou na selva, e todos sabem; o exército mexicano não tem treinamento nem armamento para combater uma guerra de guerrilhas. Para isso, dependeriam do apoio maciço de exércitos estrangeiros, tais como o americano.
Uma companheira, "observadora civil" da cidade do México que acompanhou nossa conversa, comentou após a reunião, com os olhos cheios de lágrimas: "temo que esta convicção da invencibilidade deles na selva seja apenas fruto da ingenuidade", e lembrou do napalm jogado nas selvas do Vietnã, junto com os bombardeios. Sobre isto, outro companheiro, docente da Universidade do México, disse-nos: "atacar com toda a força agora será como dar umpuñetazo (soco) num prato de sopa, ela vai se espalhar por todos os lados". Fiquei pensando que no caso do Vietnã, antes da declaração de guerra por parte dos EUA, Kennedy havia aprovado um plano do Pentágono Americano de muitos milhões de dólares, que envolvia aviões, a sétima frota, etc., para fazer com que o vietcongue se rendesse entre doze e quinze dias.
Os quatro dirigentes zapatistas deixaram muito claro que a luta deles vai avançar até a derrubada do governo, do regime e do sistema, até alcançar a paz numa sociedade em que todos sejam iguais. Os companheiros se foram naquela noite muito escura e nos deixaram a pensar em tudo o que havia sido dito ali.

Foi no dia seguinte que pudemos ver melhor como vivia uma comunidade zapatista na selva. Cada família tem sua própria plantação de milho, feijão, café, verduras, etc., "porque cada um é livre para plantar o que mais gosta de consumir", nos disseram. Entretanto, os "meios de produção" são coletivos. Uma companheira, "observadora civil", contou-nos que, a partir de campanhas realizadas em outro país para arrecadar alimentos, havia chegado a La Sultana, entre outras coisas arrecadadas, quinze vestidos europeus muito bonitos. Na assembléia da noite, foi decidido que os vestidos ficariam pendurados, até que chegassem mais vestidos e que se pudesse fornecer um para cada mulher.





Entrevistador: Como você resumiria, em poucas palavras, seu contato com a experiência zapatista no México?



MAGNO: Um companheiro brasileiro que foi comigo a Chiapas fez um comentário que expressa bem o que esse contato significou. Ele disse:




A experiência que estou tendo nesta comunidade zapatista, no meio da selva, está sendo mais importante do que tudo o que li e ouvi em mais de vinte anos para compreender o que é socialismo e revolução.



Entrevistador: Para concluir, o que a aplicação do projeto neoliberal tem a ver com a eclosão da luta armada e o surgimento do EZLN?



MAGNO: Tem tudo a ver, apesar de que o EZLN começou a ser construído a partir de 1993. O México foi o país do chamado Terceiro Mundo onde primeiro e mais aceleradamente se aplicaram as medidas neoliberais, que lá se iniciaram com a privatização do sistema bancário. Segundo Noam Chomsky, professor do Departamento de Filosofia e Lingüística do Instituto de Tecnologia de Massachussets (EUA), considerado, por muitos, um dos cientistas sociais contemporâneos mais importantes:

Durante a última década de reforma econômica neoliberal, o número de pessoas que vivem em extrema pobreza nas zonas rurais aumentou em um terço. Assim como os salários reais no setor manufatureiro, recebido pelos trabalhadores, caíram violentamente — o produto bruto proporcional recebido pelos trabalhadores diminui mais de uma terça parte desde meados dos anos 70. O desemprego no setor manufatureiro cresceu drasticamente e aumentará muito.
Chomsky cita um estudo feito pelo diário mexicano El Financiero que prevê que o México perderá quase a quarta parte de sua indústria manufatureira e 14% de seus empregos durante os próximos dois anos. Chomsky cita também a rápida erosão dos direitos trabalhistas ganhos a força, com medidas tomadas para a redução de custos das empresas, e com a marginalização crescente de setores da população. Chomsky lembra que mesmo os defensores do TLC (NAFTA) reconhecem que cerca de 70% da força de trabalho sofrerá perdas nos seus salários, em especial os menos qualificados.
Os teóricos da burguesia dizem que em Chiapas nasce a guerrilha pós-comunista. Sebastião Tigüera, brasileiro, analista político, residente há muitos anos no México, questiona: "Como uma forma de luta que para o consenso conservador estava ‘fora de moda’ logra ganhar tanta simpatia no seio de amplos setores sociais?". Tigüera diz que o aparecimento do EZLN constitui um verdadeiro fenômeno social que atinge e questiona todos os pressupostos das teses neoliberais e, de forma profunda, os pilares da dominação político-ideológica das classes dominantes hoje.
De volta ao Brasil, o Correio Brasiliense (jornal que fez uma longa entrevista comigo sobre minha viagem a Chiapas) anuncia, em manchete, que a guerra no México poder-se-ia generalizar com a explosão do movimento em todo o país. Diz que a inteligência militar no México teme a eclosão de luta guerrilheira nos estados de Michoacam, México, Puebla, Oaxaca e Guerrero (neste último, no dia 28 de julho, houve um massacre de camponeses pela polícia). Segundo estas próprias fontes, no estado de Guerrero, em Tecpan de Galeana e Cyula de Benitz, "os grupos clandestinos têm cerca de dez mil homens armados cada um e que o governo teme um ataque à Cidade do México, alíás a maior do mundo, com mais de 21 milhões de habitantes no Distrito Federal e dez milhões na grande México (cerca de 25% da população do país vive na capital, grande parte originária do campo).
O que posso dizer, para finalizar, é que Chiapas e o EZLN apontam para nós, trabalhadores e oprimidos do mundo, o único caminho que nos resta seguir.

NOTAS

1. Organização camponesa, infiltrada pelo PRI, que nega a luta armada.



Magno de Carvalho é da Direção Nacional da FASUBRA.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

''A Farsa Democrática'' e o Desafio de Inventar a Democracia Futura




Por Samir Amin*


Ante o que chama de “a farsa democrática”, Samir Amin levanta uma questão essencial: “Assim sendo... Renunciar às eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que deem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para elas?” Para Samir Amin, aí está o desafio que temos de enfrentar.

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O voto universal é conquista recente, das lutas dos trabalhadores no século 19 em alguns países europeus (Inglaterra, França, Países Baixos e Bélgica), que aos poucos estendeu-se por todo o mundo. Hoje, desnecessário dizer, a reivindicação do poder supremo, delegado a uma Assembleia eleita, corretamente, em base pluripartidária – seja assembleia legislativa ou constituinte, segundo as circunstâncias – define a aspiração democrática e (supostamente, digo eu) garante a realização da democracia.

O próprio Marx investiu grandes esperanças nesse voto universal, “via pacífica possível rumo ao socialismo”. Já escrevi que, quanto a esse ponto, a história tem desmentido as esperanças de Marx (cf. Marx et la démocratie).

Creio que não é difícil identificar a razão do fracasso da democracia eleitoral: todas as sociedades, até hoje, são fundadas num duplo sistema de exploração do trabalho (sob diferentes formas) e de concentração do poder do Estado em benefício da classe dirigente. Essa realidade fundamental produziu uma relativa “despolitização/desculturação” de vastos segmentos da sociedade. E essa produção, concebida e posta em prática, em grande parte, para cumprir a função de sistema que se esperava que cumprisse, é, simultaneamente, a condição para que o sistema seja reproduzido, sem outras mudanças “se não as que se podem controlar e absorver, e são condição de estabilidade do próprio sistema.” O que se define como “o país profundo” significa, de fato, o país mais profundamente adormecido. Eleições e voto universal, nessas condições, é vitória garantida de todos os conservadorismos (ainda que reformistas).

Por isso jamais se viu mudança na história produzida por esse modo de governo fundado no “consenso” (conservador, consenso para nada mudar). Todas as mudanças de cunho realmente transformador da sociedade, mesmo as reformas (radicais) sempre foram produto de lutas, levadas avante por grupos que, em termos eleitorais, muitas vezes manifestaram-se como “minorias”. Sem a iniciativa dessas minorias que são o elemento motor da sociedade, não há mudança possível. As lutas em questão, assim empreendidas, sempre terminam – quando as alternativas que proponhas sejam clara e corretamente definidas – por arrastar as “maiorias” (silenciosas, no início), até serem consagradas pelo voto universão, que sempre vem depois – nunca antes – da vitória.

No nosso mundo contemporâneo, o “consenso” (a partir do qual o voto universal definiu as fronteiras) é mais conservador do que jamais antes. Nos centros do sistema mundial, esse consenso é pró-imperialista. Não no sentido de que implique necessariamente ódio ou desprezo a outros povos que são vítimas desse “consenso”, mas no sentido, mais banal, de que se aceita a punção da renda imperialista, porque ela é a condição de reprodução de toda a sociedade, garantia de sua “opulência”, sempre em contraste com a miséria dos outros. Nas periferias, as respostas dos povos ao desafio (à pauperização produzida pelo deslocamento da acumulação capitalista/imperialista) ainda são confusas, no sentido de que sempre veiculam uma dose de ilusões passadistas fatais.

Nessas condições, os poderes dominantes recorrem a “eleições” como o meio por excelência de refrear o movimento, de extinguir o potencial de radicalização das lutas. “Eleições: arapuca para tolos” – diziam alguns em 1968, com bastante razão, confirmada por muitos fatos. Hoje, eleitas em altíssima velocidade, já há assembleias constituintes na Tunísia e no Egito: para estabilizar o país, “pôr fim à desordem”, quer dizer: mudar, para nada mudar.

Assim sendo... Renunciar às eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que deem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para elas. Aí está o desafio que temos de enfrentar.

O décor teatral da farsa democrática

Esse décor teatral foi inventado pelos pais fundadores dos EUA, com a intenção declarada com perfeita lucidez, de evitar que a democracia eleitoral não se transformasse em instrumento que o povo pudesse usar para questionar a ordem social fundada na propriedade privada (e na escravidão!). Nesse espírito, a Constituição está baseada na eleição de um presidente (uma espécie de “rei eleito”) que concentra os poderes essenciais. O “bipartidarismo” ao qual a campanha eleitoral presidencial leva inevitavelmente, tende então cada vez mais a ser o que sempre foi: expressão de um “partido único” – desde o final do século 19, o partido do capital dos monopólios – sempre em busca do voto de “clientelas” que, só elas, supõem-se diferentes umas das outras.

A farsa democrática manifesta-se também mediante uma possível “alternância” (no caso dos EUA, entre Democratas e Republicanos), sem que jamais se chegue a cogitar de real alternância, porque não se veem alternativas radicalmente diferentes. E, sem a possibilidade real de alternativa real, não há democracia. A farsa fundamenta-se na ideologia do “consenso” – que, por definição, nega o conflito real entre interesses diferentes e diferentes visões de futuro. A invenção das “primárias”, que convocam o conjunto do corpo eleitoral (membros ditos de direita ou de esquerda!) a manifestar-se para escolher cada um dos dois falsos adversários, só faz tornar ainda mais evidente a deriva rumo à aniquilação de qualquer potencial de renovação que houvesse nas eleições.

Jean Monnet, autêntico antidemocrata (motivo pelo qual é celebrado em Bruxelas como fundador da “nova democracia europeia”!), perfeitamente consciente do que queria (copiar o modelo dos EUA), empreendeu todos os esforços – tradição escrupulosamente mantida na União Europeia – para retirar todos os poderes das Assembleias eleitas, em benefício de “comitês de tecnocratas”.

Não há dúvidas de que a farsa democrática funciona satisfatoriamente bem nas sociedades opulentas da tríade imperialista (EUA, Europa Ocidental, Japão), porque é mantida pela renda imperialista (vide meu livro La loi de la valeur mondialisée [A lei mundializada do valor]). Mas a farsa democrática também é reforçada, em seu potencial para convencer, pelo consenso que há em torno da ideologia do “indivíduo” e pelo real respeito aos “direitos” (conquistados nas lutas, o que raramente alguém se lembra de assinalar); pela prática da independência do poder Judiciário (outra vez, o modelo dos EUA, fundado na eleição de juízes que, por isso, têm de ‘agradar’ “a opinião pública”, trabalha contra aquela independência); e pela complexa institucionalização da pirâmide, como garantia de direitos.

A história da farsa democrática na Europa continental nada teve de semelhante a esse fluxo de águas tranquilas que se viu nos EUA. No século 19 (e até, mesmo, 1945), os combates pela democracia, tanto os inspirados pela burguesia capitalista e classes médias, quanto os conduzidos pelas classes operárias e populares, tiveram de enfrentar as fortes resistências dos “antigos regimes”, o que explica os seus avanços e recuos caóticos. Para Marx, essa resistência teria sido obstáculo desconhecido nos EUA – com vantagem para os EUA. Estava errado. Não estimou corretamente que, num modo capitalista “puro” (como o dos EUA, se comparado ao europeu), a “sobredeterminação” das instâncias – quer dizer, evoluções próprias da superestrutura ideológica e política, que se ajustam automaticamente a evoluções que interessem aos monopólios capitalistas que governam da sociedade – facilmente produziria o que sociólogos convencionais chamam de “totalitarismo”. E “totalitarismo” é conceito que se aplica ao mundo capitalista, mais que a qualquer outro (vide o que escrevi sobre “subdeterminação” e as aberturas que oferece.)

No século 19 na Europa (mas também nos EUA nessa época, embora em grau menor), os blocos históricos construídos para assegurar o poder do capital eram forçados pelo peso de coisas complexas e mutáveis – a diversidade das classes e dos segmentos de classes. Por isso, os conflitos eleitorais davam então a impressão de que funcionassem realmente democraticamente. Mas progressivamente, com a dominação pelos monopólios substituindo a diversidade dos blocos capitalistas, aquela aparência de funcionamento democrático também se esvaiu. E o vírus liberal [orig. Le virus libéral], título de um de meus trabalhos] fez o resto do serviço: alinhar cada vez mais a Europa, ao modelo dos EUA.

O conflito entre as grandes potências capitalistas contribuiu para cimentar os segmentos dos blocos históricos, levando ao domínio pelo capital, mediante o recurso ao “nacionalismo”. Aconteceu até – especialmente, por exemplo, nos casos de Alemanha e Itália – de o “consenso nacionalista” substituir o programa democrático da revolução burguesa. Essa deriva está hoje quase completada.

Os partidos comunistas da 3ª Internacional tentaram, a seu modo, opor-se àquela deriva, apesar de a ‘alternativa’ proposta (o modelo soviético) ser bem pouco atraente. Tendo fracassado na tentativa de construir blocos alternativos duradouros, os comunistas afinal capitularam e renderam-se, submissos, ao sistema da farsa democrática eleitoral. Ao fazê-lo, a esquerda radical que seus herdeiros constituíram (na Europa, o grupo da esquerda unida ao parlamento de Bruxelas) renunciou a qualquer possibilidade de verdadeira “vitória eleitoral”; e passou a contentar-se com sobreviver nos assentos marginais reservados às “minorias” (5% ou 10%, no máximo, do “corpo eleitoral”). Transformada em eleitos marginais, cuja única preocupação é manter esses assentos miseráveis dentro do sistema – o que se chama “estratégia”, mas não é – a esquerda radical, de fato, renunciou a ser esquerda. Nem chega a surpreender, nessas circunstâncias, que a esquerda já faça o jogo dos demagogos neofascistas.

A submissão à farsa democrática é assumida por um discurso autodefinido como “pós-moderno” o qual, simplesmente, se recusa a reconhecer a importância dos efeitos de destruição. Que importariam as eleições? O essencial está acontecendo noutra parte, dizem, “na sociedade civil” (conceito confuso ao qual voltarei), onde os indivíduos estão convertidos em “sujeito da história”, como o vírus liberal diga que são – mesmo que não sejam! A “filosofia” de Negri, que já critiquei noutros artigos, manifesta essa deserção.

Mas a farsa democrática, que não é rejeitada nas sociedades opulentas da tríade imperialista, não funciona nas periferias do sistema. Aqui, na zona das tempestades, a ordem que há não tem legitimidade suficiente para estabilizar a sociedade. A alternativa desenhar-se-á então em filigrana nos “levantes do sul”, que marcaram o século 20 e seguem seus caminhos pelo século 21?

Teorias e práticas das vanguardas e dos despotismos iluminados

A tempestade é portadora potencial de avanços revolucionários, mas não é sinônimo imediato de revolução.

As respostas dos povos das periferias, inspiradas pelo ideal do socialismo radical – pelo menos na origem (Rússia, China, Vietnã, Cuba) – ou da libertação nacional e do progresso social (à época da Conferência de Bandoung na Ásia e na África [1], na América Latina), não são simples. Elas associam, em diferentes graus, componentes de vocação progressista universalista e outros, de natureza passadista. Destrinçar as interferências conflitantes e/ou complementares entre essas tendência ajudará a formular – adiante, nesse artigo – as formas possíveis de autênticos avanços democráticos.

Os marxismos históricos da 3ª Internacional (o marxismo-leninismo russo e o maoísmo chinês) rejeitaram deliberadamente e integralmente o passadismo. Optaram por uma visada voltada para o futuro, em espírito de emancipação no pleno sentido da palavra. Essa opção foi sem dúvida facilitada na Rússia, pela longa preparação que permitiu aos “ocidentalistas” (burgueses) vencer os “eslavófilos” e os “eurasianos” (aliados do Antigo Regime), na China, pela revolução dos Taipings (escrevi sobre isso em La Commune de Paris et la Révolution des Taipings).

Simultaneamente, esses marxismos históricos optaram, de saída, por uma conceptualização do papel das “vanguardas” na transformação das sociedades. Deram forma institucionalizada a essa opção, simbolizada pelo “partido”. Não se pode dizer que a opção tenha sido ineficaz. Bem ao contrário disso, ela com certeza esteve na base das vitórias daquelas revoluções. A hipótese de que a vanguarda minoritária ganharia o apoio da imensa maioria mostrou que tinha fundamento. Mas a história posterior se encarregaria de mostrar os limites dessa eficácia. Porque o fato de o essencial dos poderes se ter concentrado nas mãos dessas “vanguardas” não é absolutamente estranho às derivas posteriores dos sistemas “socialistas” que se pretendia criar e instituir.

A teoria da prática dos marxismos históricos em questão teriam sido práticas de “despotismos iluminados”? Não se pode saber, se não se fixar precisamente quais foram e o que progressivamente vieram a ser os objetivos desses despotismos iluminados. Em todo caso, foram, até o fim, “antipassadistas” – como o comprova o comportamento deles em relação à religião, declarada puro obscurantismo (já escrevi sobre essa questão em L’internationale de l’obscurantisme).

O conceito de “vanguarda” foi menos adotado nas sociedades revolucionárias consideradas que em outras sociedades. Estava na base do que vieram a ser os partidos comunistas de todo o mundo, dos anos 1920 aos anos 1980, e encontrou lugar nos regimes nacionais populares do Terceiro Mundo contemporâneo.

Por toda a parte, esse conceito de “vanguarda” dava à teoria e à ideologia importância decisiva, a qual, por sua vez, implicava valorizar o papel dos “intelectuais” (revolucionários, é claro), ou seja, da intelligentsia. Intelligentsia não é sinônimo de classes médias educadas, menos ainda de quadros, burocratas, tecnocratas ou universitários (as chamadas “elites”, no jargão anglo-saxão). Intelligentsia é um grupo social que não emerge como tal senão em condições especiais que se observam em algumas sociedades e passam a ser ativo importante, muitas vezes decisivo. Fora da Rússia e da China, encontra-se fenômeno análogo na França, na Itália e em outros países, mas com certeza não há nem na Grã-Bretanha nem nos EUA, nem, em geral, na Europa do Norte.

Na França, durante a maior parte do século 20, a intelligentsia teve lugar importante na história do país, reconhecido pelos melhores historiadores. Pode ter sido efeito indireto da Comuna de Paris, durante a qual o ideal da construção de um estágio mais avançado da civilização, ao sair do capitalismo, manifestou-se mais claramente que em qualquer outro ponto do mundo (cf. meu artigo sobre a Comuna).

Na Itália, o Partido comunista de antes do fascismo cumpriu funções análogas. Como Luciana Castallina observa com lucidez, os comunistas – uma vanguarda fortemente apoiada pela classe operária, mas sempre minoritária em termos eleitorais – realmente construíram, sozinhos, a democracia italiana. Tiveram, “na oposição” – à época – um poder real na sociedade, muito mais considerável do que teriam depois, “no governo”! O verdadeiro suicídio, que só se explica pela mediocridade dos líderes que sucederam Berlinguer, fez sumir, com eles mesmos, o Estado e a democracia na península.

Esse fenômeno da intelligentsia jamais existiu nos EUA e na Europa protestante do Norte. O que aqui se chama “a elite” – a seleção do termo é significativa – é composta exclusivamente de servidores do sistema, ainda que sejam “reformadores”. A filosofia empirista/pragmatista, que aqui ocupa toda a cena do pensamento social, com certeza reforçou os efeitos conservadores da reforma protestante cuja crítica propus noutro estudo (L’Eurocentrisme, modernité, religion, démocratie). O anarquista alemão Rudolf Rocker é dos raros pensadores europeus que expôs reflexão próxima da minha; mas a moda exige – por Weber e contra Marx – que a reforma protestante seja celebrada sem exame, como avanço progressista!

Nas sociedades periféricas em geral, além dos casos flagrantes de Rússia e China, e por idênticas razões, iniciativas das “vanguardas”, quase sempreintelligentsistas, favoreceram a reunião e o apoio de grandes maiorias populares. A forma mais frequente dessas cristalizações políticas cujas intervenções foram decisivas no “despertar do Sul” foi a do (ou dos) “populismo”. Teoria e prática traçadas pelas “elites” (à moda anglo-saxônica, “pró-sistema”), mas defendidas e em certo sentido reabilitadas por Ernesto Laclau com argumentos sólidos, boa parte dos quais assumirei.

É claro que há tantos “populismos” quanto experiências históricas chamadas “populistas”. Os populismos são frequentemente associados a personagens “carismáticos”, cuja “autoridade” do pensamento é aceita sem muita discussão. Os reais avanços (sociais ou nacionais) que lhes são associados em algumas condições levaram-me a classificar esses regimes como “nacionais populares”. Fique desde já claro que esses avanços jamais foram mantidos nem por uma prática democrática convencional, “burguesa”, menos ainda por um conjunto de práticas mais avançadas, como as que apresentarei, pelo menos nas linhas gerais possíveis, adiante, nesse artigo. Foi o caso da Turquia de Ataturk, que provavelmente iniciou o modelo para o Oriente Médio, depois do Egito nasserista, os regimes do partido Baas da primeira fase, da Argélia da FLN. Experiências análogas, em condições diferentes, foram desenvolvidas nos anos 1940 e 1950 na América Latina. A “fórmula”, porque responde a carências e possibilidades reais, está longe de ter perdido seu potencial de renovação.

Classificarei portanto de boa vontade como “nacionais populares” algumas experiências em curso na América Latina, sem deixar de assinalar que, no plano da democratização, essas experiências sem dúvida trouxeram avanços que não se viram nas que as precederam.

Propus algumas análises sobre as razões do sucesso dos avanços obtidos nesse quadro em alguns países do Oriente Médio (Afeganistão, Iêmen do Sul, Sudão, Iraque) que pareciam mais promissores que outros, mas também as razões dos fracassos dramáticos.

Seja como for, é preciso não generalizar nem simplificar, como faze a maioria dos comentaristas ocidentais obcecados pela “questão democrática”, ela mesma já reduzida à fórmula do que descrevi como “farsa democrática”. Nos países da periferia, essa farsa assume muitas vezes traços de extrema caricatura. Sem serem “democratas”, alguns líderes de regimes nacionais populares foram “grandes reformadores” (progressistas), carismáticos ou não. Nasser é um belo exemplo. Mas outros nada foram além de polichinelos inconsistentes, como Gaddafi, ou déspotas vulgares “não iluminados” (e, além disso, sem qualquer carisma), como Ben Ali, Moubarak e vários outros. De fato, esses ditadores não conduziram experiências nacionais populares. Nada fizeram além de organizar a pilhagem de seus países por máfias associadas pessoalmente ao próprio ditador. Nesse sentido, foram, como Suharto e Marcos, agentes executivos das potências imperialistas as quais, além do mais, sustentaram seus poderes até o final.

O passadismo, inimigo da democracia

Os limites de cada uma e de todas as experiências nacionais populares (ou “populistas”) dignas do nome originam-se nas condições objetivas que caracterizam as sociedades da periferia do mundo capitalista/imperialista contemporâneo. São experiências diversas, evidentemente. Mas além da diversidade há convergências importantes que permitem projetar alguma luz sobre as razões de seus sucessos além de seus recuos.

A persistência de aspirações “passadistas” não é produto do “atrasismo” sólido dos povos considerados (o discurso habitual sobre o tema), mas meio para que se possa aferir corretamente o desafio. Todos os povos e nações das periferias não só foram submetidos a uma feroz exploração econômica pelo capital imperialista, mas também foram, por isso mesmo, submetidos a uma também feroz agressão cultural. A dignidade da cultura, da língua, dos costumes, da história foi-lhes negada com muito visível desprezo. Não surpreende que essas vítimas do colonialismo externo ou interno (os povos nativos da América) associem naturalmente a libertação social e política à restauração da dignidade nacional.

Mas, por sua vez, essas aspirações legítimas induzem também a que os povos se voltem para o passado, e exclusivamente para o passado, na esperança de lá encontrarem a resposta às questões de hoje e de amanhã. Há risco real de o movimento de despertar e de libertação de vários povos acabar preso em impasses trágicos, no caso de o “passadismo” ser tomado como eixo central da renovação buscada.

A história do Egito contemporâneo ilustra à perfeição a transformação da complementaridade necessária entre a perspectiva universalista aberta para o futuro e associada à restauração da dignidade do passado, num conflito entre duas opções formuladas em termos absolutos: ou bem “ocidentalizar-se” (no sentido vulgar do termo, renegando o passado), ou bem “voltar ao passado” (sem crítica).

O vice-rei Mohamed Ali (1804-1849) e os quedivas [2] até os anos 1870s optaram por uma modernização aberta à adoção de fórmulas de modelos europeus. Não se pode dizer que essa opção fosse uma “ocidentalização” de pacotilha. Os chefes do estado egípcio davam importância à industrialização modernizante do país, não à adoção, unicamente, do modelo de consumo dos europeus. Interiorizaram a assimilação dos modelos europeus associando-os à renovação da cultura nacional e contribuindo para fazê-la mover-se no sentido do laicismo, e a prova está nos seus esforços para apoiar a renovação da língua. Claro que o modelo europeu em questão era o modelo capitalista e sem dúvida não avaliavam a exata medida do caráter imperialista daquele modelo. Mas não se pode recriminá-los por isso. E quando o quediva Ismail proclamou seu objetivo – “fazer do Egito um país europeu” – ultrapassou Ataturk em 50 anos; e planejava associar aquela “europeização” ao renascimento nacional, não à negação desse renascimento.

As insuficiências do Nahda [“Renascimento Árabe”] cultural da época (sua incapacidade para compreender o que fora o Renascimento europeu), e o caráter “passadista” que dominava os conceitos do Nahda, sobre os quais escrevi, não são segredo para ninguém.

Saldo disso é precisamente a visão predominantemente passadista que se imporá ao movimento de renovação nacional no final do século 19. Ofereci uma explicação para isso: a derrota do projeto “modernista” que ocupara o proscênio entre 1800 e 1870 levou o Egito a regredir. E a ideologia da recusa daquele declínio cristalizou-se naquele momento de regressão, com todas as deformações que isso implicava. Os fundadores no novo Partido Nacional (Al hisb al watani), no final do século 19, Mustafá Kamel e Mohamed Farid, escolheram o passadismo como eixo central de seu combate, como se vê, dentre outras evidências, em suas ilusões “otomanistas” (apoiar-se em Istambul contra os ingleses).

A história provaria o erro dessa escolha. A revolução nacional e popular de 1919-1920 não foi conduzida pelo Partido Nacionalista, mas por seu adversário “modernista”, o Partido Wafd. Taha Hussein retoma então o slogan do quediva Ismail: “europeizar o Egito”; apoiar para essa finalidade a nova Universidade e marginalizar o Azhar [uma das principais mesquitas e entidades islâmicas do Egito].

A tendência passadista, herdada do Partido Nacionalista, logo deslizaria para a insignificância. Seu líder – Ahmad Hussein –, nos anos 1930 já não passa de chefe de um partido minúsculo, que pouco depois seria atraído pelo fascismo. Mas a tendência passadista reapareceria fortemente presente, outra vez, entre os oficiais livres que, em 1952, derrubariam o rei.

As ambiguidades do projeto de Nasser são o resultado desse recuo, no debate sobre a natureza do desafio. Nasser tenta associar alguma modernização, que mais uma vez não era de pacotilha, fundada na industrialização, ao apoio a algumas das ilusões passadistas. Pouco importa que o projeto de Nasser inscreva-se – ou tenha suposto que se inscrevesse – numa perspectiva “socialista”, evidentemente desconhecida no século 19. A atração que o passadismo exercia sobre ele continua lá. As opções relacionadas à “modernização do Azhar”, que já critiquei, são prova disso.

O conflito entre as visões “modernistas, universalistas” de uns e as visões “passadistas integralistas” de outros ainda ocupam o proscênio no Egito. As primeiras são defendidas, principalmente, pela esquerda radical (no Egito, de tradição comunista, forte nos anos imediatamente posteriores à II Guerra Mundial), ouvidas pelas classes médias esclarecidas, sindicatos operários e, ainda mais, pelas novas gerações. O passadismo tende mais à direita, com os Irmãos da Fraternidade Muçulmana, que adotou posições extremas na interpretação mais arcaica do Islã (promovida pela Arábia Saudita), o wahabismo.

Não é difícil chamar a atenção para o contraste que há entre essa evolução, que fechou o Egito num impasse, e a via adotada pela China depois da revolução dos Taipings [3], que o maoísmo retomou e aprofundou: a construção do futuro passa pela crítica radical do passado. “A emergência” no mundo moderno e, portanto, a proposição de respostas eficazes ao desafio, inclusive o engajamento na via da democratização – cujas linhas gerais exporei adiante, nesse artigo – são condicionadas pela recusa a fazer do passadismo o eixo central da renovação.

Não é pois por acaso que a China está hoje na vanguarda dos países “emergentes”. Tampouco é acaso que, na região do Oriente Médio, a Turquia, não o Egito, inclua-se no mesmo pelotão. A Turquia – mesmo a do Partido AKP “islâmico” – beneficia-se da ruptura que, ao seu tempo, foi o kemalismo. Mas a diferença entre a China e a Turquia é diferença decisiva: a escolha “modernista” da China já se inscreve numa perspectiva que se deseja “socialista” (e a China está em conflito com o hegemonismo dos EUA, quer dizer, com o imperialismo coletivo da Tríade), perspectiva que veicula oportunidades de progresso, enquanto a “modernidade” da Turquia contemporânea, que não cogita de sair da lógica da globalização contemporânea, é via sem futuro. Seu sucesso é só aparente e provisório.

A associação entre a tendência modernista e a tendência passadista que se encontra em todos os países do grande Sul (as periferias), evidentemente em fórmulas diversas. A confusão produzida por essa associação aparece numa de suas manifestações mais visíveis na profusão de discursos ineptos sobre “as formas do passado que se pretendiam democráticas”, trazidas a nu, sem crítica. A Índia independente faz o elogio dos panchayat [4]; os muçulmanos, dashura; os africanos, da “árvore que fala”, como se essas formas da vida social do passado tivessem algo a ver com os desafios do mundo moderno. A Índia é a maior democracia (por número de eleitores) do planeta? Ou essa democracia eleitoral ainda é e continuará a ser farsa, enquanto não se fizer a crítica radical do sistema de castas (herdado, também ele, do passado), até aboli-lo? A shura continua a ser veículo para pôr em ação a Xaria, interpretada no sentido mais reacionário, inimigo da democracia.

Os povos da América Latina enfrentam hoje esse mesmo problema. Compreende-se facilmente a legitimidade das reivindicações “dos indígenas”, se se sabe o que foi o colonialismo interno ibérico. Alguns discursos indigenistas pouco criticam os passados locais envolvidos na questão. Mas outros, sim, criticam aqueles passados e fazem avançar os conceitos ao associar, de modo radicalmente progressista, as exigências universalistas e o potencial que se acumula na evolução do que se herda do passado. Nesse sentido, os debates bolivianos são, provavelmente, muito ricos. A análise crítica dos discursos indigenistas em questão, feita por François Houtart (El concepto de Sumai Kwasai) acende nossas lanternas. A ambiguidade aparece muito destacada nesse estudo notável, que passa em revista o que me parece ser a provável totalidade dos discursos sobre o tema.

A contribuição – negativa – do passadismo na construção do mundo moderno é de tal ordem, que pode ser detectada não só nos povos das periferias. Na Europa, além de seu quarto noroeste, as burguesias estavam enfraquecidas demais para engajar-se em revoluções como na Inglaterra ou na França. O objetivo “nacional” – particularmente na Alemanha e na Itália, depois também na direção do leste e do sul do continente – serviu como meio de mobilização e de guarda-chuva para compromissos “meio-burgueses/meio velhos regimes”. O passadismo mobilizado aqui não foi “religioso”, mas “étnico”, fundado numa definição etnocêntrica da nação (na Alemanha) ou numa leitura mitológica da história romana (na Itália). O desastre está aí à vista – o fascismo e o nazismo –, a ilustrar o caráter arquirreacionário, com certeza antidemocrático, do passadismo nessas formas “nacionais”.

A alternativa universalista: a autêntica e plena democratização e a perspectiva socialista

Falarei aqui de democratização, não de democracia. A democracia, reduzida como está nas fórmulas impostas pelos poderes dominantes, já não passa de farsa. A farsa eleitoral produz um parlamento “esgoto” impotente, com o governo como único responsável frente ao FMI e à OMC, quer dizer, frente aos instrumentos dos monopólios da tríade imperialista. A farsa democrática está agora completada pelo “discurso-dos-direitos-do-homemista”, que insiste no respeito ao direito de protestar, sob a estrita condição de que o protesto jamais ponha em questão o poder supremo dos monopólios. E o protesto também já foi criminalizado, associado, como foi, ao “terrorismo”.

A democratização, concebida em contraponto como plena, quer dizer, dizendo respeito a todos os aspectos da vida, inclusive, claro, à gestão da economia, tem de ser processo sem fronteiras e sem limites, produzido pelas lutas e pela imaginação criadora dos povos. A democratização só tem sentido e autenticidade, se mobiliza essas potências inventivas, na perspectiva de construir um estágio mais avançado da civilização humana. Não pode pois vir fechada num formulário (“blue print”) prêt-à-porter. Nem por isso é desnecessário propor algumas linhas diretrizes do movimento, quanto ao rumo geral e para que se definam objetivos estratégicos possíveis, etapa a etapa.

A luta pela democratização é luta. Exige portanto mobilização, organização, escolha de ações, visão estratégica, sentido de tática, politização das lutas. Claro que essas formas não podem ser decretadas antes, a partir de dogmas santificados. Mas é indispensável identificá-las e não há como fugir disso. Porque se trata, bem claramente, de forçar o sistema de poder que aí está a recuar, tendo, como objetivo, substituí-lo por outro sistema de poderes. Sem dúvida, deve-se abandonar a fórmula da “revolução” que substitui de vez o poder do capital pelo poder do povo, santificado. São possíveis avanços revolucionários, fundados sobre os avanços de novos poderes, populares, reais, que fazem recuar os que continuarem a defender os princípios que reproduzem a desigualdade. Além do mais, Marx jamais formulou qualquer teoria “da revolução solene e solução definitiva”. Sempre, ao contrário, insistiu na longa transição caracterizada por esse conflito de poderes: os velhos em declínio e os novos em formação.

Abandonar a questão do poder é jogar fora o bebê com a água do banho. Acreditar que a sociedade possa ser transformada sem destruição, ainda que progressista, do sistema do poder que há, é crença da mais completa ingenuidade. Porque os poderes que há, longe de serem “desconstituídos” pela mudança social, são sempre capazes de capturar o novo, submetê-lo, integrá-lo como reforço – não como enfraquecimento – do poder do capital.

A triste deriva do “ecologismo”, que é hoje campo aberto à expansão do capital, é prova disso. Eludir a questão do poder, é pôr os movimentos numa situação que não lhes permite passar à ofensiva, condená-los a posições defensivas, de resistir às ofensivas dos que têm o poder e privá-los, portanto, da iniciativa. (...)

As lutas sociais e políticas (indissociáveis) poder-se-iam propor-se alguns grandes objetivos estratégicos, que apresentarei (adiante) ao debate teórico e político, confrontado sempre à prática das lutas, aos seus avanços e recuos.

Para começar, reforçar os poderes dos trabalhadores nos seus locais de trabalho, nas suas lutas cotidianas contra o capital. É, digamos, a vocação dos sindicatos. Sim, mas só se os sindicatos forem instrumentos de lutas reais. O que já não são, sobretudo os “grandes sindicatos”, pressupostos “fortes”, porque se assemelham a grandes maiorias entre os trabalhadores envolvidos. Essa força aparente é a verdadeira fraqueza dos sindicatos, porque os sindicatos creem-se obrigados a “ajustar-se” às reivindicações consensuais, sempre muito, muito modestas. Quem se surpreende por as classes operárias na Alemanha e na Grã-Bretanha (países de “sindicatos fortes”, como se ouve dizer) terem aceito ajustes drásticos que o capital lhes impôs ao longo dos últimos 30 anos, enquanto os “sindicatos franceses”, minoritários e considerados fracos, – conseguiram resistir melhor (ou menos mal)? Essa realidade nos lembra, simplesmente, que as organizações de militantes, sempre minoritárias por definição (a classe não pode ser constituída só de militantes!), conseguem, muito mais que os sindicatos “de massa” (e, portanto, de não militantes), arrastar maiorias para as lutas.

Outro terreno de lutas possíveis para estabelecer poderes novos, são os poderes locais. Nesse domínio, contudo, não farei generalizações rápidas, seja pela afirmação de que a descentralização é sempre um avanço democrático, seja, pelo contrário, pela afirmação de que a centralização é necessária para “mudar o poder”. A descentralização pode ser capturada por “sumidades locais”, em geral tão reacionárias quanto os agentes do poder central. Mas a descentralização também pode, conforme as estratégias postas em ação pelas forças progressistas em luta e as condições locais – favoráveis aqui, desfavoráveis ali –, completar e substituir os avanços na criação de novos poderes populares. A Comuna de Paris incluiu, com seu projeto de federalismo comunal. Oscommunards sabiam que retomavam, nessa questão, a tradição montagnarde dos Jacobinos de 1793. Porque esses, diferente do que se diz sem pensar (quantas vezes já se ouviu dizer que os “centralistas” jacobinos completaram a obra da Monarquia?!), foram federalistas (como esquecer a Festa da Federação?). A “centralização” foi obra posterior da reação termidoriana, concluída por Bonaparte.

A “descentralização” continua a ser termo dúbio, oposto como absoluto a outro termo absoluto, “centralização”. Associar um ao outro é desafio que está posto, nos combates pela democratização.

A questão dos poderes múltiplos – locais e centrais – é crucialmente importante nos países “heterogêneos”, ou por alguma razão histórica, ou qualquer outra. Nos países andinos e, mais geralmente, na América dita latina – e que deveria ser chamada de indo-afro-latina – a construção de poderes específicos (e dizer específicos é dizer que gozam de alguma margem de autonomia real) é condição para o renascimento das nações indígenas, renascimento sem o qual a emancipação social não tem sentido algum.

O feminismo e o ecologismo são outros terrenos de conflitos entre as forças sociais engajadas na perspectiva da emancipação global da sociedade e os poderes conservadores ou reformistas dedicados a perpetuar as condições da reprodução capitalista. Não cabe, evidentemente, considerá-los lutas “específicas”, porque as reivindicações aparentemente específicas que essas lutas promovem e a transformação global da sociedade são indissociáveis. Mas nem todos os movimentos feministas e ecologistas entendem assim.

A articulação das lutas nos diversos terrenos aqui evocados – e em outros – convida a construir formas institucionalizadas da interdependência entre todos os campos. Trata-se, uma vez mais, de mostrar imaginação criadora. Não é necessário esperar que a legislação vigente o permita, para criar sistemas institucionalizados (“informais”, se não sempre “ilegais”) por exemplo de negociação social permanente e “obrigatória” de fato, empregados/patronato; por exemplo de controle, que imponha a paridade homem/mulher; por exemplo, que toda decisão importante de investimento (privado ou estatal) seja submetido a avaliação séria, do ponto de vista ecológico.

Avanços reais nas direções propostas aqui criam uma dualidade de poderes – como a que Marx imaginou para a longa transição do socialismo ao comunismo, etapa mais avançada da civilização humana. Esses avanços levariam as “eleições” por sufrágio universal a tomar rumo completamente diferente do previsto na democracia-farsa. Mas aqui, outra vez, só fazem sentido eleições que se realizem depois das vitórias, nunca antes.


As propostas aqui sugeridas – e muitas outras possíveis – não se inscrevem no discurso dominante sobre “a sociedade civil”. De fato, andam no sentido oposto. O discurso sobre “a sociedade civil”, parente próximo dos delírios do “pós-modernismo” à Negri, é herdeiro direto da tradição da ideologia do consenso à moda dos EUA que sempre o promoveu em todo o planeta, retomado sem crítica por dezenas de milhares de ONGs e por seus representantes que se impõem em grandes números nos Fóruns Sociais. Essa ideologia aceita o regime (vale dizer: o capitalismo dos monopólios), no que tem de essencial – e serve de modo muito útil ao poder do capital. Como que lhe azeita as engrenagens. Assim o próprio capital gera uma falsa “oposição” sem qualquer capacidade para mudar o mundo. Por mais que aquela falsa “oposição” se apresente como agente de mudança, nada jamais muda.

Três conclusões

1. O vírus liberal tem efeitos devastadores. Produziu um “ajuste ideológico” que serve muito bem à expansão capitalista a qual sempre gera mais barbárie. Mas convenceu grandes maiorias – inclusive nas gerações mais novas – de que é hora de “viver no presente”, colher o que o imediato oferece, esquecer o passado, não pensar no futuro, sob o pretexto de que a imaginação utópica engendraria monstros. Convenceu vastas maiorias de que o sistema que há seria compatível com “o desenvolvimento do indivíduo” (o que absolutamente ele não é). Formulações acadêmicas pretensamente “novas” – os “pós”, pós-modernismo, pós-colonialismo, estudos culturais, elucubrações à Negri – garantem alvarás de legitimidade à capitulação do espírito crítico e da imaginação inventiva.

O desarranjo que essa prática de submissão interiorizada implica está, sem dúvida, na origem, dentre outros, da “renovação religiosa” (ressurgimento de interpretações religiosas e pararreligiosas conservadoras e reacionárias, “comunitaristas”, ritualistas. O “monoteísmo” dá o braço, sem problema algum, ao “moneyteísmo” – assunto sobre o qual já escrevi. Excluo evidentemente as interpretações religiosas que mobilizam o sentido que dão à espiritualidade, para legitimar a tomada de posição ao lado das forças sociais que lutam por emancipação. Mas as forças religiosas reacionárias são majoritárias, as forças religiosas progressistas são minoritárias, quando não marginalizadas. Outras formulações ideológicas não menos reacionárias também preenchem o vazio criado pelo vírus liberal: por exemplo, dentre outros, todos os “nacionalismos” e os comunitarismos étnicos e paraétnicos.

2. A diversidade é, muito felizmente, bela realidade do mundo. Mas elogiar a diversidade ‘em si’ leva a confusões perigosas.

De minha parte, proponho que se considerem à parte as “diversidades herdadas” (do passado), que, afinal, é o que são, e que só depois de demorado exame crítico poderão ser (ou não) reconhecidas eficazes para o projeto de emancipação. Proponho que não se misturem essas diversidades e outras – que visam a inventar o futuro e lutar pela emancipação. Porque também há diversidades cá do nosso lado, de análises e substratos culturais e ideológicos e propostas de estratégias de luta.

Na 1a. Internacional, lá estavam Marx, Proudhon, Bakunin. A 5a. Internacional deve fazer da diversidade um trunfo. Imagino que não pode “eliminar”, mas deve reunir e integrar: marxistas de diferentes escolas (inclusive alguns passavelmente “dogmáticos”); reformadores radicais autênticos que, mesmo assim, preferem reforçar objetivos viáveis mais próximos que perspectivas distantes; teólogos da libertação; pensadores e militantes que queiram inscrever as renovações nacionais que promovem, na perspectiva da emancipação universal; feministas e ecologistas que também se inscrevam nessa perspectiva. A condição fundamental que permitirá que esse reagrupamento de combatentes realmente trabalhe pela mesma causa é a tomada de consciência do caráter imperialista do sistema que há. A 5a. Internacional tem de ser muito claramente anti-imperialista. Não se pode satisfazer com “intervenções humanitárias” com as quais os poderes dominantes tentam substituir a solidariedade e o apoio às lutas de libertação dos povos, das nações e dos estados das periferias. Além desse reagrupamento, devem-se buscar alianças amplas com todas as forças e movimentos em luta contra as derivas da democracia-farsa.

3. Se insisto na dimensão anti-imperialista dos combates a fazer, é porque essa é a condição da possibilidade de construir uma convergência entre as lutas do Norte e do Sul do planeta. Já disse que a fraqueza – pelo mínimo que se diga – da consciência anti-imperialista no Norte é a principal causa da limitação dos avanços que os povos das periferias conseguiram até agora, e mais ainda de seus recuos.

Construir a perspectiva de convergência das lutas é empreitada difícil. É preciso não subestimar os perigos mortais que há nessas dificuldades.

No Norte, uma dessas dificuldades é a adesão ainda grande à ideologia do consenso que legitima a farsa democrática, aceitavam graças aos efeitos corruptores do rentismo imperialista. Mesmo assim, a própria ofensiva do capital dos monopólios contra os próprios trabalhadores do Norte, que está em curso, poderia ajudar na direção de os trabalhadores tomarem consciência de que os monopólios imperialistas são inimigos comuns, de todos. Os movimentos que se estão criando e reconstruindo em tempos politizados e organizados conseguirão fazer ver que os monopólios capitalistas têm de ser expropriados e nacionalizados na direção de serem socializados? Se não nos aproximarmos desse ponto de ruptura, o poder de última instância dos monopólios do capitalismo/imperialismo continuará intacto. As derrotas que o Sul poderia infligir àqueles monopólios, fazendo recuar a sangria operada pelo rentismo imperialista só reforçariam as chances de os povos do Sul livrarem-se também de suas cadeias.

Mas no Sul persiste o conflito de expressões da visão do futuro: universalistas ou passadistas? Enquanto esse conflito não se decidir a favor dos primeiros, os povos do Sul só conseguirão obter, em suas lutas de libertação, vitórias frágeis, limitadas e vulneráveis.

O bloco histórico progressista universalista só ganhará corpo, se se fizerem avanços sérios no Norte e no Sul, nos rumos aqui sugeridos.


*Samir Amin é diretor do Fórum do Terceiro Mundo, associação internacional de intelectuais da África, Ásia e América Latina, com sede em Dakar, Senegal, que visa a fortalecer os esforços intelectuais e os laços entre os países do Terceiro Mundo.


Referências

Para referências que podem ajudar o leitor a refazer o percurso da formação dos conceitos utilizados nesse texto (em francês e inglês), verhttp://www.pambazuka.org/fr/category/features/74822/print.

[1] Na Conferência de Bandung (18-24/4/1955), reuniram-se na Indonésia, os líderes de 29 estados asiáticos (Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Camboja, Laos, Líbano, Ceilão, República Popular da China, Filipinas, Japão, Índia, Paquistão, Turquia, Síria, Israel, República Democrática do Vietnã, Irã, Iraque, Vietnã do Sul, Nepal, Iêmen do Norte) e africanos (Etiópia, Líbia, Libéria e Egito), países que, juntos, tinham então população total de 1,35 bilhões de habitantes (mais em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/51624/Bandung-Conference [NTs]).

[2] Quediva (do persa “soberano”; خديوي em árabe) era o título de vice-rei conferido pelo Império Otomano ao paxá do Egito (mais emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Quediva [NTs]).

[3] Guerra civil, no sul da China, que durou de 1850 a 1864, liderada por um cristão convertido, Hong Xiuquan, que se apresentava como irmão mais jovem de Jesus Cristo, contra a dinastia Qing, dos Manchu. Houve cerca de 20 milhões de mortos, sobretudo civis, num dos conflitos militares mais mortais de toda a história. Mao Tse Tung, em Política e Tática, fala dessa revolta de Taiping, como um dos primeiros levantes revolucionários heróicos contra um regime feudal corrupto [NTs, com informações de http://en.wikipedia.org/wiki/Taiping_Rebellion].

[4] Panchayat, lit. “assembleia” (ayat) de “cinco” (panch) anciãos sábios e respeitados, escolhidos e aceitos por comunidades locais. Governos contemporâneos da Índia descentralizaram várias funções administrativas para o nível local, dando poder político a gram panchayats eleitos [NTs, com informações de http://en.wikipedia.org/wiki/Panchayati_raj].


Tradução do coletivo Vila Vudu