quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O EZLN e a Luta Armada em Chiapas


O EZLN e a luta armada em Chiapas



Entrevista com Magno de Carvalho


Magno de Carvalho visitou Chiapas e esteve em contato com os guerrilheiros zapatistas: "Diziam eles: 'as armas que empunhamos hoje, não vamos depô-las jamais, nem mesmo depois de termos conquistado um governo do povo'."

Entrevistador: Que dados você pode nos fornecer sobre o surgimento do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional)?


MAGNO: Durante mais de dez anos, o EZLN se preparou para a luta armada nas montanhas e nas florestas de Chiapas (hoje, faz 12 anos). Mas o EZLN somente aparece para o mundo em 1o janeiro de 1994, quando milhares de seus milicianos tomam San Cristóbal de las Casas (capital do estado de Chiapas, com mais de cem mil habitantes), além das principais cidades do estado: Ocosingo, Chanaal, Altamirano e Las Margaritas. Nesse mesmo dia, o EZLN ataca o quartel de Rancho Nuevo, comandado pelo general Garrido, que resistiu 50 minutos em combate, até que os insurretos, comandados por Iolanda (índia tzaltil , companheira do subcomandante Marcos), invadiram o quartel e levaram mais de duzentas armas pesadas. Próximo dali, o EZLN invadiu uma penitenciária, libertando todos os prisioneiros, a maioria índios, repetindo o que haviam feito em cadeias de outras cidades também tomadas. Nestas, as prefeituras e as rádios foram os primeiros locais a serem tomados, além das prisões, dos prédios públicos, dos bancos e de algumas empresas importantes. Portavam armas modernas potentes e comunicavam-se entre si pelo rádio.

Os combates mais sangrentos se deram em Ocosingo, onde o Exército Federal Mexicano conseguiu chegar através de uma ponte que o EZLN não conseguiu derrubar. Depois, soube-se que a retomada de Ocosingo era considerada vital para as forças federais. Foi em Ocosingo onde ocorreram os maiores crimes de guerra e os mais torpes. Prisioneiros foram executados com as mãos amarradas nas costas, deitados de bruços, com tiros na nuca.
Nas cidades, a esmagadora maioria da população, passada a surpresa, não só apoiou os insurretos, como também participou da tomada de locais estratégicos. A maior parte do EZLN é composta pelas quatro etnias que habitam Chiapas: tzotziles (85.553 índios), tzetales (95.953), tojolabales (12.660) e choles (47.529).
O subcomandante Marcos comandou o ataque à capital e foi o principal porta voz do EZLN, concedendo uma entrevista coletiva internacional à imprensa em frente ao Paço Municipal ocupado. Foi a primeira vez que o EZLN falou ao mundo, apresentando as razões do conflito, acumuladas por décadas, para não falar séculos, de massacres, de fome e de luta por uma terra que pertencia ao povo.
Chiapas viveu sob a cultura maia até o século VI; mais tarde, até o século XV, sob a predominância da migração tolteca; a partir daí, passaram a ser dominados pelos aztecas, até a chegada dos espanhóis. Em torno de 75% dos índios foram dizimados nas primeiras décadas da conquista espanhola, em conseqüência das guerras, deportações e epidemias. A selva foi povoada pelos habitantes mais pobres do México. A selva Lacandona parecia uma torre de Babel, onde se falavam inúmeros idiomas indígenas, ainda que predominasse o tzeltal. As constantes expulsões e decretos que retiravam a posse das terras anteriormente conquistadas por comunidades indígenas, levaram-nos, como resposta, a constantes rebeliões.
Na década de 1960, surgiram muitas organizações guerrilheiras sob influência da vitória da revolução em Cuba. Essas organizações apareciam e desapareciam. Algumas foram destruídas pela repressão, outras se instalaram nos estados ao sul do Distrito Federal. Tudo isto sob a ditadura sanguinária do PRI. No estado de Guerrero, Lúcio Cabañas comandou um foco guerrilheiro que resistiu por anos e foi um dos maiores e o melhor organizado, influenciando o aparecimento de outros.
Em agosto de 1969, foi fundada, por nove militantes, a FLN (Frente de Libertação Nacional), que anos mais tarde daria origem ao EZLN. Cinco de seus fundadores eram originários do extinto Exército Insurgente Mexicano. A FLN combinou, na clandestinidade, três formas de luta: a política, a militar e a ideológica. Seus fins, a longo prazo, eram derrotar política e militarmente a burguesia e estabelecer um sistema socialista que, mediante a propriedade social dos meios de produção, suprimisse a exploração do homem pelo homem. A curto prazo, era integrar as lutas do proletariado urbano à dos camponeses e indígenas e formar o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
No outono de 1993, treze dos principais dirigentes da FLN fundaram, na selva, o EZLN. Além deles, havia quatro indígenas. O EZLN se tornou um dos organismos que constituíam a FLN, juntamente com os EYOL (células de estudantes e operários). Em Chiapas, foram várias as organizações camponesas e indígenas legais, semilegais e clandestinas que se formaram com a orientação pró e antizapatista. A posição da Igreja em relação ao EZLN foi sempre muito contraditória e, internamente, muito diferenciada. Muitos padres e catequistas se puseram em armas ao lado do EZLN, outros o criticam.

D. Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal de las Casas, apesar da famosa polêmica com Marcos, tem tido um papel fundamental na mediação com o governo mexicano, o que tem sido vital para o EZLN. Isto os zapatistas reconhecem. O bispo lamenta o apoio dos padres à FLN: "Esta gente veio montar um cavalo bravo e agora levam os índios à beira da tragédia". Ao que o subcomandante retruca: "Aqui não haverá ARIC (1) , não haverá palavra de Deus, não haverá Governo da República. Aqui haverá Exército de Libertação Nacional".

Em janeiro de 1993, em Prado, a FLN decide fundar o Partido das Forças de Libertação Nacional (PFLN) e realizar o seu primeiro congresso. Na sua declaração de princípios, seus objetivos são:
    • Encabeçar a luta revolucionária do povo trabalhador para a arrancar o poder da burguesia, libertar o país da dominação estrangeira e instalar a ditadura do proletariado que impeça a contra-revolução e inicie a construção do socialismo.
    • Recorrer, como forma principal, à luta político-militar, combinando-a com outras formas de ação política. Conta para isto com o EZLN que jamais haverá de claudicar no México.
Em 23 de janeiro de 1993, em Prado, foi aprovada a posição defendida pelo subcomandante Marcos de iniciar a Guerra de Libertação no México. Esta posição, a partir de então, foi submetida a longas discussões nas comunidades zapatistas num processo bastante democrático, mas que, por se tratar de uma decisão fundamental como a guerra, partia de um acordo prévio: a posição aprovada necessariamente deveria ser acatada por todos.
As consignas do Exército Zapatista, e que se expressam na declaração da selva de Lacandona, são: trabalho, terra, moradia, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, justiça e paz. Os objetivos militares são: derrotar o Exército do México e chegar à Cidade do México.
É importante frisar as diferenças da propaganda aberta feita pelo PFLN (inclusive a veiculada na imprensa socialista) e as bandeiras apresentadas pelo EZLN nos comunicados do subcomandante Marcos e pelo Comitê Clandestino Indígena Revolucionário, o que pode ser verificado na própria declaração feita na selva de Lacandona.
Não podemos esquecer, também, que Chiapas tem uma selva que emenda com a selva da Guatemala, onde, por mais de vinte anos, proliferou a guerra de guerrilha, assim como também no seu vizinho, El Salvador. O EZLN faz uma crítica dura aos seus companheiros centro-americanos que depuseram as armas, e, hoje, vários guerrilheiros destes países engrossam as fileiras do EZLN.
Não resta dúvidas de que a vitória da revolução em Cuba deu um grande alento ao nascimento da FLN, na década de 1960, assim como a outras organizações político-militares. A revolução da Nicarágua também foi muito importante, inclusive pelo apoio logístico e treinamento de líderes do EZLN. São aspectos que não podem ser desprezados na compreensão do fenômeno zapatista.
É importante também lembrar o fato de que, em 1992, com o desmoronamento da URSS e dos países do Leste europeu, apesar de que a FLN e o EZLN não tinham vinculações políticas com os regimes desses países, a crise político-ideológica chegou às montanhas e às selvas de Chiapas. Muitos abandonaram a luta naquele momento. Marcos ironizou: "o socialismo está morto, viva o conformismo, a reforma, a modernidade e o capitalismo". Mas a crise foi superada, apesar de ter sido duradoura e ter feito estragos consideráveis.

O trabalho de construção do EZLN foi realizado durante dez anos, na selva, desde as cabeças de gado, porcos e produtos agrícolas vendidos para comprar armas modernas e potentes na América Central, até a preparação política e militar. E ficou demonstrado com as primeiras incursões do EZLN, em janeiro de 1994.





Entrevistador: Por fim, como você resumiria, em poucas palavras, seu contato com a experiência zapatista no México?



MAGNO: Um companheiro brasileiro que foi comigo a Chiapas fez um comentário que expressa bem o que esse contato significou. Ele disse: "A experiência que estou tendo nesta comunidade zapatista, no meio da selva, está sendo mais importante do que tudo o que li e ouvi em mais de vinte anos para compreender o que é socialismo e revolução".





Entrevistador: Como foi possível chegar a uma comunidade zapatista em meio à selva?



MAGNO: Saí do Brasil com contatos na cidade do México. Lá, companheiros zapatistas, com os quais discuti bastante, fizeram a ponte com os companheiros de Chiapas. Da Cidade do México, saímos de ônibus, até San Cristóbal de las Casas, capital de Chiapas, passamos pelos estados de Puebla e Oxaca; foram 18 horas de viagem. Em San Cristóbal, tanto como na Cidade do México, comentava-se a reunião de militares americanos com militares mexicanos, quando foi concluído e apresentado ao governo mexicano um plano no qual, em resumo, caso o governo aprovasse, em 15 dias, todo o exército zapatista e suas comunidades na selva e nas montanhas seriam destruídos.

A militarização era visível em toda a estrada, nos pedágios, nas barricadas de sacos de areia com metralhadoras pesadas atrás. Isto começava na saída do Distrito Federal e crescia à medida que se aproximava de Chiapas. Isto havia sido intensificado a partir de junho de 1995.
Em San Cristóbal, onde a maioria da população era formada por índios, levamos dois dias até nos encontrarmos em condições de partir para a selva, credenciados pela Comissão Nacional de Intermediação (CONAI), na diocese do bispo D. Samuel Ruiz, como observadores internacionais civis. Este credenciamento é vital para o contato com as tropas federais na selva e nas estradas.
Alugamos um jeep 4x4 e fomos receber as instruções e os mapas da selva. Ficamos sabendo o que já tínhamos ouvido dos companheiros da Cidade do México: talvez não conseguíssemos chegar até os dirigentes do EZLN, em função do aumento da militarização em Chiapas e das condições dos caminhos na selva. Mais uma vez, fomos advertidos sobre a estrada de terra na selva nessa época de chuvas: barrancos ou floresta de um lado e abismo do outro. Disseram-nos: "tem estrada hoje, amanhã não tem mais; pode ser que passem, ou que não consigam chegar; ou que cheguem e não possam voltar". É comum o desabamento nessas estradas precárias, abertas para caminhões e outros veículos militares.
Nossa meta era chegar a La Sultana, uma comunidade zapatista no coração da selva Lacandona, de onde partiram muitos guerrilheiros que morreram nos combates de Ocosingo, em janeiro de 1994. Antes dela, existem duas outras comunidades zapatistas, Prado e La Garrucha. De San Cristóbal fomos até Ocosingo, onde chegamos ao anoitecer.
Nas estradas, cidades e povoados por onde passamos, vimos o que é uma ocupação militar no período atual e o que os mexicanos denominam de "guerra de baixa intensidade". Até Ocosingo, havia asfalto. Chegamos à praça do Paço Municipal de Ocosingo, a tomada mais difícil e sangrenta do EZLN, domingo, às 18 horas. Uma banda de música tocava, cerca de trezentas pessoas, a maior parte índios, assistiam tranqüilos, em silêncio. Todos estavam cercados por blindados, caminhões e pela tropa com armas leves e pesadas. Como se não bastasse, no meio do povo, uns trinta soldados federais, com seus fuzis e metralhadoras na mão, viravam-se o tempo todo, nervosos, encarando a todos. A música parou e só alguns soldados aplaudiram a banda da Polícia Militar.
Saímos um pouco da rota e passamos por Altamirano. Escolas e prédios públicos foram transformados em quartéis, protegidos por várias pilhas de sacos de areia, com soldados armados e ali entrincheirados atrás. Na estrada, os acampamentos e os comboios de veículos militares se sucediam.
Chegamos a San Miguel, comunidade indígena, conhecida como a porta da selva. Daí em diante, a estrada corria toda dentro da selva; índios caminhavam à beira da estrada, carregando sacos e feixes de lenha, amarrados a tiras passadas pela testa. Andam, por vezes, vários dias. Muitos levam produtos para vender. Nas estradas, muitos jovens trabalhavam carregando pedras durante todo o dia, nas obras de desobstrução e recuperação de desabamentos. À beira da estrada, havia acampamentos militares com tropas federais, sempre nas imediações das comunidades, nas pontes, morros, curvas e margens dos rios.
O pior trecho da estrada foi o que ficava próximo a La Sultana. Passamos por um local onde tinha havido um desabamento, e o que havia sobrado da estrada, na beira do precipício, mal dava para passar um veículo. O nosso passou ali sob o olhar atento de alguns índios. A menos de 1 km de La Sultana, avistamos uma ponte, antes dela, na cabeceira, um monte de pneus, prontos para servir de barricada ardente, colocados pelos federais. Ao nos aproximar, vimos uma casamata onde havia uma boca de cano de metralhadora pesada e também podiam ser identificados dois capacetes camuflados com galhos, folhas e bambus. Ao longo do rio, também se via, de cima da ponte, o acampamento camuflado das tropas federais. Passamos pela ponte fotografando tudo.
Chegamos a La Sultana às 17 horas (doze de viagem). Casas de tábuas com cobertura de palha de cana de palmeira; dois barracões grandes ladeavam uma clareira. Logo avistamos um barracão, com uma faixa de pano, na qual se liaCampamentos Civiles pela Paz, Justicia y Libertad. Paramos e nos apresentamos aos companheiros: um espanhol (galego), que falava português, uma alemã, uma jovem americana e duas mexicanas do Distrito Federal. O companheiro espanhol foi chamar o companheiro zapatista dirigente, encarregado da segurança da comunidade, que substituía o comandante-chefe, ausente naquele momento.
Fui avisado de que não poderia sair da área do acampamento civil enquanto não tivesse autorização dos companheiros zapatistas da comunidade (o acampamento é uma área neutra internacional).

O companheiro Cláudio veio até o acampamento. Fiz as apresentações. Falamos dos nossos objetivos com aquela viagem e da nossa expectativa em conversar com os companheiros do EZLN.

Entrevistador: E como você conseguiu a permissão e o contato com o EZLN?

MAGNO: Cláudio me explicou que para ele não havia dúvidas quanto à importância da nossa conversa, mas que tudo era decidido em assembléia, e que ele iria defender que, ainda naquela noite, após a assembléia, pudéssemos ter uma conversa com os zapatistas. Esta foi a primeira lição prática do funcionamento democrático dos zapatistas.

Mais tarde, a 500 metros dali, teve lugar a assembléia. Usavam apenas uma vela no centro, para evitar se tornarem alvos de balas dos federais. Era uma assembléia só de homens. Explicaram-me que já estava convocada assim, pois a discussão era sobre tarefas específicas dos homens, como os resultados das buscas do corpo de um menino morto, na véspera, no rio, em acidente. Coisas importantes, como as relativas à guerra, são freqüentadas por todos, inclusive as crianças que, a partir dos nove anos, aproximadamente, já têm treinamento militar na selva.
Após um tempo de discussão, chamaram-nos. Apenas seis falavam espanhol; os demais falavam tzotil ou tzeltal, as duas etnias que compunham a comunidade de La Sultana que hoje é composta por 350 pessoas. Aproximadamente 150 pessoas participavam da reunião. Apresentamo-nos, identificamo-nos politicamente e falamos de nossos objetivos. Respondi a várias perguntas sobre o Brasil, sobre a nossa esquerda e o porquê de não haver, no Brasil, uma resistência organizada contra a violência, a falta de terra e a fome. Aquilo que eu falava era traduzido duas vezes, e assim também era o retorno.
Impressionou-me duas coisas: a consciência de todos sobre a necessidade da internacionalização da luta e de uma organização revolucionária única, em especial na América Latina; a total descrença nos partidos de "esquerda" que disputam espaço na institucionalidade burguesa. Disseram: "não lutam pelos pobres e sim por espaços políticos para eles mesmos".
Após a assembléia, voltamos ao acampamento civil. Mais tarde, chegaram quatro dirigentes zapatistas e realizamos uma conversação, que durou horas. Primeiro, os companheiros explicaram bem como viviam e como viviam as comunidades da selva. Falaram do seu sofrimento, da falta de condições mínimas para sobrevivência, da fome, da carência de professores para as crianças e de atendimento médico para as comunidades, das perseguições, das expulsões da terra, da falta de meios para produção agrícola e da brutal violência da polícia, dos capangas, dos usurpadores das terras e, atualmente, das forças federais. Falaram também dos constantes assassinatos dos indígenas, principalmente, dos líderes camponeses. Tudo isto, segundo eles, fazia parte do cotidiano de suas vidas. Disseram que, em virtude de toda essa situação, resolveram dizer basta a quinhentos anos de violência dos poderosos, que havia já liquidado milhões de indígenas e camponeses. Por tudo isto, diziam eles, "as armas que empunhamos hoje, não vamos depô-las jamais, nem mesmo depois de termos conquistado um governo do povo". Há em todos, sem exceção, sejam dirigentes ou milicianos de base, a convicção da vitória sobre as forças oficiais.
Quando perguntei sobre a superioridade das armas das forças federais que nos combates de janeiro demonstraram seu poderio bélico, com bombardeios aéreos, tropas de pára-quedistas cortando a retaguarda nas entradas da selva, além de todo o poderio militar terrestre, um deles, o companheiro Antonio, respondeu-me com toda a tranqüilidade e na forma indígena de expressar:




Os aviões que voam hoje, um dia cairão. Na véspera de nossa chegada, aviões de guerra passaram horas fazendo vôos razantes sobre La Sultana, sucedidos por helicópteros, o que é comum. Eles agora assustam muito nossas crianças, mas não nos assustam mais. Os blindados, os caminhões e canhões, que andam nos caminhos, um dia param. Na selva não entram: La carretera es de ellos, la selva de nosostros. Se nos atacam, nos embrenhamos todos, e lá eles não vão.



É importante lembrar que, quando as tropas do EZLN passaram a recuar para a selva, os combates se deram até os limites desta, salvo raros bombardeios aéreos. O exército governista não entrou na selva, e todos sabem; o exército mexicano não tem treinamento nem armamento para combater uma guerra de guerrilhas. Para isso, dependeriam do apoio maciço de exércitos estrangeiros, tais como o americano.
Uma companheira, "observadora civil" da cidade do México que acompanhou nossa conversa, comentou após a reunião, com os olhos cheios de lágrimas: "temo que esta convicção da invencibilidade deles na selva seja apenas fruto da ingenuidade", e lembrou do napalm jogado nas selvas do Vietnã, junto com os bombardeios. Sobre isto, outro companheiro, docente da Universidade do México, disse-nos: "atacar com toda a força agora será como dar umpuñetazo (soco) num prato de sopa, ela vai se espalhar por todos os lados". Fiquei pensando que no caso do Vietnã, antes da declaração de guerra por parte dos EUA, Kennedy havia aprovado um plano do Pentágono Americano de muitos milhões de dólares, que envolvia aviões, a sétima frota, etc., para fazer com que o vietcongue se rendesse entre doze e quinze dias.
Os quatro dirigentes zapatistas deixaram muito claro que a luta deles vai avançar até a derrubada do governo, do regime e do sistema, até alcançar a paz numa sociedade em que todos sejam iguais. Os companheiros se foram naquela noite muito escura e nos deixaram a pensar em tudo o que havia sido dito ali.

Foi no dia seguinte que pudemos ver melhor como vivia uma comunidade zapatista na selva. Cada família tem sua própria plantação de milho, feijão, café, verduras, etc., "porque cada um é livre para plantar o que mais gosta de consumir", nos disseram. Entretanto, os "meios de produção" são coletivos. Uma companheira, "observadora civil", contou-nos que, a partir de campanhas realizadas em outro país para arrecadar alimentos, havia chegado a La Sultana, entre outras coisas arrecadadas, quinze vestidos europeus muito bonitos. Na assembléia da noite, foi decidido que os vestidos ficariam pendurados, até que chegassem mais vestidos e que se pudesse fornecer um para cada mulher.





Entrevistador: Como você resumiria, em poucas palavras, seu contato com a experiência zapatista no México?



MAGNO: Um companheiro brasileiro que foi comigo a Chiapas fez um comentário que expressa bem o que esse contato significou. Ele disse:




A experiência que estou tendo nesta comunidade zapatista, no meio da selva, está sendo mais importante do que tudo o que li e ouvi em mais de vinte anos para compreender o que é socialismo e revolução.



Entrevistador: Para concluir, o que a aplicação do projeto neoliberal tem a ver com a eclosão da luta armada e o surgimento do EZLN?



MAGNO: Tem tudo a ver, apesar de que o EZLN começou a ser construído a partir de 1993. O México foi o país do chamado Terceiro Mundo onde primeiro e mais aceleradamente se aplicaram as medidas neoliberais, que lá se iniciaram com a privatização do sistema bancário. Segundo Noam Chomsky, professor do Departamento de Filosofia e Lingüística do Instituto de Tecnologia de Massachussets (EUA), considerado, por muitos, um dos cientistas sociais contemporâneos mais importantes:

Durante a última década de reforma econômica neoliberal, o número de pessoas que vivem em extrema pobreza nas zonas rurais aumentou em um terço. Assim como os salários reais no setor manufatureiro, recebido pelos trabalhadores, caíram violentamente — o produto bruto proporcional recebido pelos trabalhadores diminui mais de uma terça parte desde meados dos anos 70. O desemprego no setor manufatureiro cresceu drasticamente e aumentará muito.
Chomsky cita um estudo feito pelo diário mexicano El Financiero que prevê que o México perderá quase a quarta parte de sua indústria manufatureira e 14% de seus empregos durante os próximos dois anos. Chomsky cita também a rápida erosão dos direitos trabalhistas ganhos a força, com medidas tomadas para a redução de custos das empresas, e com a marginalização crescente de setores da população. Chomsky lembra que mesmo os defensores do TLC (NAFTA) reconhecem que cerca de 70% da força de trabalho sofrerá perdas nos seus salários, em especial os menos qualificados.
Os teóricos da burguesia dizem que em Chiapas nasce a guerrilha pós-comunista. Sebastião Tigüera, brasileiro, analista político, residente há muitos anos no México, questiona: "Como uma forma de luta que para o consenso conservador estava ‘fora de moda’ logra ganhar tanta simpatia no seio de amplos setores sociais?". Tigüera diz que o aparecimento do EZLN constitui um verdadeiro fenômeno social que atinge e questiona todos os pressupostos das teses neoliberais e, de forma profunda, os pilares da dominação político-ideológica das classes dominantes hoje.
De volta ao Brasil, o Correio Brasiliense (jornal que fez uma longa entrevista comigo sobre minha viagem a Chiapas) anuncia, em manchete, que a guerra no México poder-se-ia generalizar com a explosão do movimento em todo o país. Diz que a inteligência militar no México teme a eclosão de luta guerrilheira nos estados de Michoacam, México, Puebla, Oaxaca e Guerrero (neste último, no dia 28 de julho, houve um massacre de camponeses pela polícia). Segundo estas próprias fontes, no estado de Guerrero, em Tecpan de Galeana e Cyula de Benitz, "os grupos clandestinos têm cerca de dez mil homens armados cada um e que o governo teme um ataque à Cidade do México, alíás a maior do mundo, com mais de 21 milhões de habitantes no Distrito Federal e dez milhões na grande México (cerca de 25% da população do país vive na capital, grande parte originária do campo).
O que posso dizer, para finalizar, é que Chiapas e o EZLN apontam para nós, trabalhadores e oprimidos do mundo, o único caminho que nos resta seguir.

NOTAS

1. Organização camponesa, infiltrada pelo PRI, que nega a luta armada.



Magno de Carvalho é da Direção Nacional da FASUBRA.

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